Por Joseilton Silveira do Nascimento.

Aluno do 2° Período do Curso de Direito da UNIT

Servidor Publico Federal

Palavras-chave: Anencefalia. Aborto. Dignidade Humana.

Sumário

  1. Introdução.
  2. Do Quadro Clínico do Feto Anencefálico e da Gestante.

2.1. Do Feto Portador de Anencefalia.

2.2. Da Gestante.

  1. O Estrito Legalismo e a Ausência de Tutela de Bem Jurídico.
  2. O Princípio da Dignidade Humana no Contexto de um Estado Democrático de Direito.
  3. Gravidez de Feto Anencefálico e o Direito à Autonomia da Vontade da Gestante.
  4. Conclusão.

1 - Introdução

É grande o número de casos que são submetidos à Justiça para proferir decisão acerca da legitimidade ou não da conduta da gestante em interromper a gravidez quando o feto é portador de anencefalia. O tema divide a opinião doutrinária e dos tribunais.

Verifica-se que o estudo do tema em comento contribui bastante para a construção de um Estado Democrático de Direito, visto que põe em evidência a questão da importância em se colocar o princípio da dignidade humana como norteador da correta interpretação e aplicação das normas jurídicas de um sistema jurídico comprometido com a democracia.

O presente artigo pretende demonstrar que o aplicador do Direito, pelo fato de assumir o compromisso de concretizar os valores do Estado Democrático de Direito, deve assegurar à mulher, gestante de um feto portador de anencefalia, o direito de escolher se vai ou não prosseguir com a gravidez, já que se trata de feto que perecerá dentro de alguns poucos dias.

2 - Do Quadro Clínico do Feto Anencefálico e da Gestante

2.1 – Do Feto Portador de Anencefalia

Anencefalia é definida na literatura médica como a má-formação fetal congênita por defeito do fechamento do tubo neural, durante a gestação, de modo que o feto não apresenta os hemisférios cerebrais e o córtex, havendo apenas resíduo do tronco encefálico.

Apesar dos avanços da medicina, não existe, diante dessa anomalia, a menor chance de sobrevida, em razão da ausência da atividade cerebral. O tronco cerebral fatalmente perecerá, em razão da relação de interdependência entre esse órgão e o cérebro. Sua atividade não consegue subsistir sem a presença do cérebro.

Não há nada a fazer, nenhum tratamento que possa reverter a inviabilidade desse feto. Pesquisas revelam que 50% (cinqüenta por cento) dos fetos anencefálicos morrem ainda no período intra-uterino. Para aqueles que conseguem resistir até o parto, existe a possibilidade de sobrevivência por apenas alguns dias separado do ventre materno, mas sua morte num curto espaço de tempo é inevitável.

2.2 – Da Gestante

A gestante também, pelo fato de carregar no seu ventre um feto anencefálico, se encontra numa situação delicada. Trata-se de uma gravidez que envolve maiores riscos à saúde da gestante. Aumenta-se a probabilidade de ocorrência de pré-eclampsia e eclampsia, em virtude da maior incidência dessas doenças hipertensivas neste tipo de gravidez. Além disso, a permanência do feto anencefálico no ventre da gestante é um fator de risco a sua própria vida, haja vista o alto índice de óbito intra-útero desses fetos.

Todavia, ao contrário do feto anencefálico, é possível fazer algo para resguardar a saúde da mãe e amenizar o seu sofrimento, em decorrência da triste notícia de que seu filho não irá sobreviver. Nesse caso, existe uma única indicação terapêutica médica, que é a antecipação do parto antes de chegar a termo.

3 – O Estrito Legalismo e a Ausência de Tutela de Bem Jurídico.

Não há consenso nos tribunais quanto à legitimidade ou não da escolha da mulher grávida de feto anencéfalo em antecipar o parto. Decisões Judiciais contrárias à interrupção da gravidez, em seus argumentos utilizam dos métodos da hermenêutica tradicional. Servem-se da interpretação literal dos artigos 124 e 128 do Código Penal, como podemos verificar na Decisão do STJ no Habeas Corpus nº 32.159-RJ(2003/0219840-5), onde foi concedida a ordem em favor do nascituro, para evitar o "aborto não previsto nas hipóteses legais". Segue abaixo fragmento da Decisão acima citada:

"1. A eventual ocorrência de abortamento fora das hipóteses previstas no Código Penal acarreta a aplicação de pena corpórea máxima, irreparável, razão pela qual não há se falar em impropriedade da via eleita, já que, como é cediço, o writ se presta justamente a defender o direito de ir e vir, o que, evidentemente, inclui o direito à preservação da vida do nascituro.

2. Mesmo tendo a instância de origem se manifestado, formalmente, apenas acerca da decisão liminar, na realidade, tendo em conta o caráter inteiramente satisfativo da decisão, sem qualquer possibilidade de retrocessão de seus efeitos, o que se tem é um exaurimento definitivo do mérito. Afinal, a sentença de morte ao nascituro, caso fosse levada a cabo, não deixaria nada mais a ser analisado por aquele ou este Tribunal.

3. A legislação penal e a própria Constituição Federal, como é sabido e consabido, tutelam a vida como bem maior a ser preservado. As hipóteses em que se admite atentar contra ela estão elencadas de modo restrito, inadmitindo-se interpretação extensiva, tampouco analogia in malam partem. Há de prevalecer, nesses casos, o princípio da reserva legal.

4. O Legislador eximiu-se de incluir no rol das hipóteses autorizativas do aborto, previstas no art. 128 do Código Penal, ocaso descrito nos presentes autos. O máximo que podem fazer os defensores da conduta proposta é lamentar a omissão, mas nuncaexigir do Magistrado, intérprete da Lei, que se lhe acrescente mais uma hipótese que fora excluída de forma propositada pelo Legislador.

5. Ordem concedida para reformar a decisão proferida pelo Tribunal a quo, desautorizando o aborto; outrossim, pelas peculiaridades do caso, para considerar prejudicada a apelação interposta, porquanto houve, efetivamente, manifestação exaustiva e definitiva da Corte Estadual acerca do mérito por ocasião do julgamento do agravo regimental."

A doutrina conceitua o aborto como "a cessação da gravidez, antes do tempo normal, causando a morte do feto ou embrião (Nucci, Guilherme de Souza.).

O cerne da questão gira em torno de um suposto conflito entre o direito à vida do nascituro e o direito à integridade física e moral da gestante. Todavia na hipótese de feto portador de anencefalia esse conflito é apenas aparente, pois na verdade não existem interesses do nascituro a serem tutelados. A ausência da atividade cerebral caracteriza a morte no Direito Pátrio, conforme se depreende da leitura da Lei n° 9.437/97, que trata do transplante de órgãos. Então, como podemos entender que existe vida, em sentido jurídico, no feto que nunca chegou a ter atividade cerebral, e que inevitavelmente nunca chegará a ter?

Fica evidente, desse modo, a inconstitucionalidade da interpretação literal dos dispositivos do Código Penal que culmina na incriminação da conduta da gestante de feto anencefálico em interromper a gravidez, visto que ao Direito Penal cabe somente a proteção dos bens jurídicos considerados fundamentais para a convivência em sociedade. Não existindo violação a esse bem jurídico, não há permissão para a ingerência do Estado.

4 – O Princípio da Dignidade Humana no Contexto de um Estado Democrático de Direito.

Partindo dos ensinamentos de Immanuel Kant, podemos entender a dignidade humana como uma prerrogativa que todo ser humano possui de ser respeitado como um fim em si mesmo, não podendo, dessa forma,ser tratado como mero instrumento ou objeto, na busca pela realização da vontade alheia. Partindo desse raciocínio, podemos constatar que o direito à autonomia da vontade é uma das razões principais da dignidade humana.

O Estado Democrático de Direito surgiu em meio à reação ao estrito legalismo e ao Estado Totalitário. É produto da consciência de que o menosprezo à necessidade de respeitar todo ser humano, como pessoa dotada de dignidade, colaborou para que atitudes autoritárias dos nazistas fossem capazes de construir histórias de horror, durante a 2ª Guerra Mundial. A experiência histórica também ensinou que o formalismo jurídico, quando não comprometido com valores éticos que respeitem a dignidade humana, pode se colocar a serviço de quaisquer finalidades, inclusive do terror totalitário, como fizeram os carrascos de Hittler, à época do nazismo. Esse novo paradigma de Estado, portanto, tem como seu principal fundamento a defesa da dignidade humana. Ancorada nessa mesma ideologia, a Constituição de 1988 consagrou, logo em seu primeiro artigo, o princípio da dignidade humana como fundamento do Estado brasileiro, in verbis:

Art. 1 – A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos:

(...)

III – a dignidade da pessoa humana:

(...)

5 – Gravidez de Feto Anencefálico e o Direito à Autonomia da Vontade da Gestante.

Limitar o direito de livre escolha da mãe de decidir se vai ou não prosseguir com a gestação de um feto anencefálico, além do que já foi dito em relação aos danos à saúde, poderá lhe causar dor, sofrimento psicológico. A triste lembrança de que o feto que se encontra no seu ventre não irá sobreviver, após separação do ventre, gera sofrimento, frustração, angústia. Muitas vezes essas mães passam por situações desagradáveis no dia-a-dia do seu convívio social, quando são obrigadas a responder perguntas que em princípio seriam normais e até prazerosas, mas que, no caso de feto anencefálico, causam constrangimentos. Basta imaginar os momentos em que surgem perguntas do tipo: "...como vai o bebê?, ou " É menino ou menina,... quando nasce?". Perguntas aparentemente simples, mas que causam bastante sofrimento para as gestantes de feto anencéfalo.

Some-se a isso, o fato de presenciarmos sempre, através dos meios de comunicação, a violência moral praticada por alguns segmentos da sociedade, contrários a antecipação de parto, contra a gestante de feto anencefálico. A partir do momento que tomam conhecimento da pretensão em interromper a gravidez, a gestante fica sujeita a escutar, em ocasiões diversas, palavras ofensivas à sua imagem e a sua honra, violando, com isso, a sua integridade moral, protegida pelo artigo 5, inc. X, da Constituição Federal de 1988.

Assim, verifica-se que a restrição arbitrária ou desproporcional à autonomia da vontade gestante fere de morte o princípio da dignidade humana, bem como constitui violação a prerrogativas da personalidade, como o direito à integridade física e moral, direitos inerentes à dignidade humana.

Em consonância com a hermenêutica principiológica, o Min. Marco Aurélio, do Supremo Tribunal Federal, em medida liminar, proferiu decisão, na Argüição de Descumprimento de Preceito Fundamental nº 54-DF, nos seguintes termos:

"(...)

Em questão está a dimensão humana que obstaculiza a possibilidade de se coisificar uma pessoa, usando-a como objeto. Conforme ressaltado na inicial, os valores em discussão revestem-se de importância única. A um só tempo, cuida-se do direito à saúde, do direito à liberdade em seu sentido maior, do direito à preservação da autonomia da vontade, da legalidade e, acima de tudo, da dignidade da pessoa humana. O determinismo biológico faz com que a mulher seja a portadora de uma nova vida, sobressaindo o sentimento maternal. São nove meses de acompanhamento, minuto a minuto, de avanços, predominando o amor. A alteração física, estética, é suplantada pela alegria de ter em seu interior a sublime gestação. As percepções se aguçam, elevando asensibilidade. Este é o quadro de uma gestação normal, que direciona a desfecho feliz, ao nascimento da criança. Pois bem, a natureza, entrementes, reserva surpresas, às vezes desagradáveis. Diante de uma deformação irreversível do feto, há de se lançar mão dos avanços médicos tecnológicos, postos à disposição da humanidade não para simples inserção, no dia-a-dia, de sentimentos mórbidos, mas, justamente, para fazê-los cessar. No caso da anencefalia, a ciência médica atua com margem de certeza igual a 100%. Dados merecedores da maior confiança evidenciam que fetos anencefálicos morrem no período intra-uterino em mais de 50% dos casos. Quando se chega ao final da gestação, a sobrevida é diminuta, não ultrapassando período que possa ser tido como razoável, sendo nenhuma a chance de afastarem-se, na sobrevida, os efeitos da deficiência. Então, manter-se a gestação resulta em impor à mulher, à respectiva família, danos à integridade moral e psicológica, além dos riscos físicos reconhecidos no âmbito da medicina. Como registrado na inicial, a gestante convive diuturnamente com a triste realidade e a lembrança ininterrupta do feto, dentro de si, que nunca poderá se tornar um ser vivo. Se assim é - e ninguém ousa contestar -, trata-se de situação concreta que foge à glosa própria ao aborto - que conflita com a dignidade humana, a legalidade, a liberdade e a autonomia de vontade. A saúde, no sentido admitido pela Organização Mundial da Saúde, fica solapada, envolvidos os aspectos físico, mental e social. Daí cumprir o afastamento do quadro, aguardando-se o desfecho, o julgamento de fundo da própria argüição de descumprimento de preceito fundamental, no que idas e vindas do processo acabam por projetar no tempo esdrúxula situação. Preceitua a lei de regência que a liminar pode conduzir à suspensão de processos em curso, à suspensão da eficácia de decisões judiciais que não hajam sido cobertas pela preclusão maior, considerada a recorribilidade. O poder de cautela é ínsito à jurisdição, no que esta é colocada ao alcance de todos, para afastar lesão a direito ou ameaça de lesão, o que, ante a organicidade do Direito, a demora no desfecho final dos processos, pressupõe atuação imediata. Há, sim, de formalizar-se medida acauteladora e esta não pode ficar limitada a mera suspensão de todo e qualquer procedimento judicial hoje existente. Há de viabilizar, embora de modo precário e efêmero, a concretude maior da Carta da República, presentes os valores em foco. Daí o acolhimento do pleito formulado para, diante da relevância do pedido e do risco de manter-se com plena eficácia o ambiente de desencontros em pronunciamentos judiciais até aqui notados, ter-se não só o sobrestamento dos processos e decisões não transitadas em julgado, como também o reconhecimento do direito constitucional da gestante de submeter-se à operação terapêutica de parto de fetos anencefálicos, a partir de laudo médico atestando a deformidade, a anomalia que atingiu o feto. É como decido na espécie."

6 - Conclusão

Diante do que foi exposto, podemos concluir que é dever do aplicador do direito assegurar a liberdade de escolha da mãe em interromper ou não a gravidez, antes de chegar a termo, na hipótese de feto anencefálico. Assim, estará seguindo seu papel no contexto de um Estado Democrático de Direito, concretizando os princípios e valores constitucionais, dentre eles, o princípio da Dignidade da Pessoa Humana, principal fundamento da República Federativa do Brasil.

Referências Bibliográficas:

NUCCI, Guilherme de Souza. Manual de Direito Penal. Vol. 1. 5ª Edição.São Paulo. Editora Revista dos Tribunais. 2009.

BARROSO, Luís Roberto. Lições Complementares de Direito Constitucional (Direitos Humanos e Direitos Fundamentais). 3ª Edição. Salvador. Editora Jus PODIVM. 2008.

VIEIRA, José Ribas. Direitos à Intimidade e à Vida Privada (Laboratório de Análise de Jurisprudência do Supremo Tribunal Federal). Curitiba. Juruá Editora. 2008.

GOMES, Sérgio Alves. Hermenêutica Constitucional (Um Contributo à Construção do Estado Democrático de Direito). Curitiba. Juruá Editora. 2008.

BUSATO, Paulo César. Tipicidade material, aborto e anencefalia.

FERNANDES, Maíra Costa. Interpretação da Gravidez de Feto Anencefálico: Uma Análise Constitucional. Disponível na Internet: http://www.mundojuridico.adv.br. Acesso em 14/04/2010.

STJ: Habeas Corpus nº 32.159-RJ(2003/0219840-5).

STF: Argüição de Descumprimento de Preceito Fundamental nº 54-DF.