Incide ITBI sobre a transmissão de imóveis cujos valores ultrapassem o capital social?

Karla Giuliane Gomes Gracia e Mozaniel Vaz da Silva

1 DESCRIÇÃO DO CASO

Com o objetivo de integrar a sociedade empresária Heavy Metal Ltda (situada em São Luís/MA), em 2015, Hetfiel Participações S/A promoveu a integralização da sua parcela de capital com o oferecimento de um imóvel do valor de R$ 750.000,00 - sendo que a sua parcela do capital social corresponde a R$ 500.000,00. Contudo, com a justificativa de que o valor da propriedade ultrapassou o capital social, a Secretaria do Município de São Luís não emitiu a guia do recolhimento do ITBI referente ao imóvel com imunidade total. Pois entende que a imunidade prevista no artigo 156, parágrafo 2º, I, da CF/88 se restringe ao valor do imóvel suficiente à integralização do capital social. Tendo desta forma, cobrado do valor excedente o referido tributo. 

O problema do caso envolve a possibilidade ou não da imunidade total referente ao ITBI com respeito a transmissão de imóveis cujo valor ultrapassa o capital social, com base na Constituição Federal e na legislação específica. 

2 IDENTIFICAÇÃO E ANÁLISE DO CASO

2.1 Descrição das Decisões Possíveis e Argumentos Capazes de Fundamentá-las

  1. Qual a regra-matriz de incidência tributária do ITBI? 

A regra-matriz é “um esquema lógico-semântico, revelador do conteúdo normativo, que pode ser utilizado na construção de qualquer norma jurídica (em sentido estrito)” (CARVALHO, 2009, p. 281). Mais especificamente a regra-matriz de incidência, ainda nas palavras de Aurora Carvalho (2009, p. 284), refere-se às “normas padrões de incidência, produzidas para serem aplicadas em casos concretos, que se inscrevem entre as regras gerais e abstratas […]”; e esta regra possui alguns critérios, são eles: critério material, critério espacial, critério temporal, critério pessoal (sujeito ativo e passivo), critério prestacional e critério quantitativo. 

Aplicando ao caso concreto analisado, o critério material é instituir impostos; o critério espacial é o município (São Luís); o critério temporal é a transmissão do bem imóvel; o critério pessoal revela-se pelo sujeito ativo Secretaria do Município de São Luís (o próprio município) e sujeito passivo: contribuinte; critério prestacional é pagar o imposto e critério quantitativo é o valor venal de R$ 250.000,00 (diferença entre o valor do imóvel e capital social) com alíquota de 2% com base na lei nº 5822 de 20/12/2013.

  1. Qual o conceito de imunidade tributária? 

Nas palavras de Eduardo Sabbag (2010, p. 37) as imunidades tributárias “são mandamentos que afastam  a tributação, por vontade do legislador constituinte, que assim se manifesta visando homenagear certos valores inalienáveis da pessoa”. Ou seja, são imunidades dadas pelo próprio constituinte que deixam imunes do pagamento de tributo determinados entes, instituições ou partidos, por exemplo. 

  1. Qual o limite de interpretação das normas tributárias imunizantes? 

Pelo fato de serem constitucionais, consideradas até mesmo cláusulas pétreas, a interpretação das normas tributárias imunizante deve ser feita “de forma ampla e teleológica, não no sentido de ‘estender’ o sentido da norma jurídica, mas de buscar o exato alcance e sentido do que a nossa lei maior quis trazer” (MAZZA, 2011, p.1). 

A imunidade tributária tem como objetivo resguardar valores constitucionais, como a liberdade religiosa ou direitos sociais e, portanto, a interpretação deve ser feita de forma a preservar tais valores. Há ainda jurisprudência nesse sentido. 

Através das imunidades tributárias procura-se resguardar certos princípios e postulados que a Constituição consagra como preceitos básicos do regime político. Elas preservam valores que se encontram juridicamente prestigiados, com a finalidade de evitar perturbações que poderiam surgir com a tributação. Em assim sendo, a interpretação de uma norma imunizante demanda da utilização do elemento teleológico, sem o que a realização do princípio nela inserido poderia restar prejudicado. – Ap 103.674/8. TJ MG, 4ª C Civ, Rel. Des. Corrêa Marins. Nossos Tribunais – COAD n. 16/99, p.241. (MAZZA, 2011, p.1). 

  1. Incide a imunidade tributária prevista no artigo 156, § 2º, I, da CF/88 quando o imóvel superar o valor do capital social integralizado? 
  • Não há incidência de ITBI sobre a transmissão de imóveis cujos valores ultrapassem o capital social. 

Como mostra o artigo 156, II, da Constituição Federal, o ITBI é um imposto cuja competência é dos municípios, sobre a “transmissão inter vivos, a qualquer título, por ato oneroso, de bens imóveis, por natureza ou acessão física, e de direitos reais sobre imóveis, exceto de garantia, bem como cessão de direitos a sua aquisição”.

Quando há a criação de uma sociedade empresária, o capital social é necessário para a constituição desta empresa, e a sua integralização pode ser feita, por exemplo, por meio de dinheiro, títulos de crédito e bens imóveis. No caso de bens imóveis, tema central deste case, a Constituição prevê no artigo 156, §2º, I, a imunidade de sua cobrança “sobre a transmissão de bens ou direitos incorporados ao patrimônio de pessoa jurídica em realização de capital” . (CORDEIRO, 2012)

Contudo, o ITBI pode ser cobrado, segundo o artigo 37 do Código Tributário Nacional “quando a pessoa jurídica adquirente do imóvel tenha como atividade preponderante a venda ou locação de propriedade imobiliária ou a cessão de direitos relativos à sua aquisição” - o que não é o caso Heavy Metal Ltda, uma sociedade empresária Metalúrgica. A questão é que o valor do imóvel é superior ao capital social da Hetfield Participações S/A e a Secretaria do Município de São Luís deseja cobrar o ITBI sobre esse valor excedente; mas, isso é indevido visto que não há qualquer limitação neste sentido na CF nem no CTN, tampouco na Lei nº 5822 de 20/12/2013. (SABBAG, 2010)

Inclusive, há um recurso extraordinário em trâmite, de uma empresa em São João Batista, Santa Catarina que passa pela mesma situação da empresa Heavy Metal Ltda, a defesa da empresa Usframa Participações Societárias foi a seguinte: 

No extraordinário, protocolado com alegada base nas alíneas a e c do permissivo constitucional, a empresa argui ofensa aos artigos 1º, 5º, incisos II e XXXVI, 37, cabeça, 156, § 2º, inciso II, e 170, inciso IV, do Diploma Maior. Sustenta não haver, na Carta Federal, qualquer limitação no tocante à observância da imunidade do ITBI na realização de capital, não podendo o Fisco nem o Poder Judiciário restringir a incidência, sob pena de ofensa ao princípio da legalidade. Segundo aduz, a sociedade empresária foi regularmente formalizada, consubstanciando ato jurídico perfeito, e esclarece que outro Município do mesmo Estado tem reconhecido a imunidade sem qualquer ressalva, o que gera insegurança jurídica. Ressalta que a Carta de 1988, ante o princípio da livre iniciativa, previu a mencionada imunidade com o objetivo de facilitar a entrada de pessoas naturais e jurídicas no mercado, permitindo a integralização de capital social não só mediante a disponibilidade de dinheiro, mas também por meio de transmissão de bens imóveis sem a incidência de imposto. Sublinha ser a maioria do empresariado brasileiro representado por pequenas e médias empresas que não possuem capital elevado. Aponta a incoerência de possibilitar um benefício fiscal sem que seja viável a grande parte dos cidadãos. Defende que o dinamismo das relações societárias não deve encontrar obstáculos no Estado, salvo nos casos descritos em lei, pois ele depende do mercado para arrecadar tributos e, assim, desenvolver políticas públicas. (BRASÍLIA, Supremo Tribunal Federal, Recurso Extraordinário nº 796.376/SC, Relator: Marco Aurélio, 2015).

Desta forma, observa-se que não há incidência do ITBI sobre o valor excedente do imóvel integralizado ao capital social da sociedade empresária. 

  • Há incidência de ITBI sobre a transmissão de imóveis cujos valores ultrapassem o capital social.  

Com base no artigo 36 do Código Tributário Nacional, o ITBI “não incide sobre a transmissão dos bens […] quando efetuada para sua incorporação ao patrimônio de pessoa jurídica em pagamento de capital nela subscrito”. Com esta leitura, subtende-se que a imunidade está limitada ao valor necessário para integralizar o capital, que no caso em questão é de R$ 500.000,00; e portanto, sobre o valor excedente (R$ 250.000,00) deverá ser cobrado o imposto.  

Ainda sobre o caso da empresa de Santa Catarina, citado anteriormente, o TJ/SC defendeu esse posicionamento alegando que 

[…] a intenção do constituinte foi facilitar a criação de novas sociedades e a movimentação dos bens correspondentes ao respectivo capital. Consignou haver, no artigo 36 do Código Tributário Nacional, menção de que a não incidência estaria restrita ao capital subscrito, não sendo razoável a concessão de imunidade quanto ao valor total do imóvel incorporado, se excedente. Assentou que a empresa não atua no comércio de imóveis, inexistindo razão para a incorporação de bens de quantia superior ao valor nominal das cotas. (BRASÍLIA, Supremo Tribunal Federal, Recurso Extraordinário nº 796.376/SC, Relator: Marco Aurélio, 2015).

Portanto, o imposto deve ser cobrado sobre o valor excedente, ficando imune apenas o valor do capital social. 

2.2 Descrição dos critérios e valores

O caso perpassa por valores constitucionais referentes às imunidades tributárias, bem como pela regra-matriz de incidência do ITBI. Além de conceitos e referências do Direito Tributário com base na Constituição Federal, Código Tributário Nacional e legislações específicas. 

REFERÊNCIAS

BRASÍLIA, Supremo Tribunal Federal, Recurso Extraordinário nº 796.376/SC, Relator: Marco Aurélio, 2015. Disponível em: <http://www.stf.jus.br/portal/jurisprudenciaRepercussao/verPronunciamento.asp?pronunciamento=5455003>. Acesso em março de 2015. 

CARVALHO, Aurora Tomazini de. Teoria geral do Direito (o construtivismo lógico-semântico). São Paulo: PUC, 2009. 623 p. Tese de Doutorado em Filosofia do Direito - Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, 2009. 

CORDEIRO, Roberta Cirino Augusto. A integralização do capital social de uma sociedade limitada através de imóveis. Disponível: <http://www.migalhas.com.br/dePeso/16,MI165996,61044-A+integralizacao+do+capital+social+de+uma+sociedade+limitada+atraves>. Acesso em março de 2015. 

MAZZA, Willame Parente. Interpretação das normas de imunidade tributária. Revista Jus Navigandi, Teresina, ano 16, n. 3054, 11 nov. Interpretação das normas de imunidade tributária. Revista Jus Navigandi, Teresina, ano 16, n. 3054, 11 nov. 2011. Disponível em: <http://jus.com.br/artigos/20403>. Acesso em março de 2015.

SABBAG, Eduardo. Direito Tributário - Elementos do Direito. vol. 3. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2010. 

Vade Mecum compacto / obra coletiva de autoria da Editora Saraiva com a colaboração de Luiz Roberto Curia, Lívia Céspedes e Juliana Nicoletti. 13. ed. São Paulo: Saraiva, 2015.