UNIVERSIDADE ESTADUAL DE MONTES CLAROS

FICHAMENTO

COULANGES, Fustel de. A Cidade Antiga. 2. ed. Tradução de Jean Melville. São Paulo (SP): Editora Martin Claret, 2008.

 

A obra é um estudo sobre o culto, o direito as instituições e a sociedade da civilização greco-romana. Retrata os costumes, a cultura, a dinâmica e as transformações que aconteceram ao longo do tempo nessas sociedades e como elas influenciaram as sociedades existentes hoje. Busca a natureza da alma humana através da história.

Acreditava-se que a morte não era a decomposição do ser e sim uma mudança de vida, que o espírito era imortal, continuava perto dos vivos e que poderia ajudá-los de alguma forma. A cerimônia fúnebre determinava como a alma se comportaria na eternidade, aquele que não tinha esse ritual respeitado estava condenado ao sofrimento eterno. Surgiu então, a necessidade de um ritual de sepultamento e de uma sepultura, as pessoas se preocupavam muito com a forma que seriam tratadas após a morte. “Nas cidades antigas a lei punia os grandes culpados com um castigo considerado terrível, ou seja, a privação da sepultura. Punia-se assim a própria alma, condenando-a a um suplício quase eterno.” (p.17-18) Os mortos eram considerados deuses e seus túmulos templos. O lar era a igreja do homem antigo, pois seus mortos eram sepultados em casa.

A religião era ensinada de geração em geração, os cultos eram prestados no interior da casa em frente a um altar onde queimava o fogo sagrado, uma chama que representava a vida da família. O que regulava as normas familiares, o direito, a moral e os costumes era a religião.

A primeira organização de caráter social estabelecida pela religião foi o casamento. A mulher se desligava da sua família e da sua religião doméstica para se unir a do seu esposo. O casamento significava uma aliança de culto e crenças, era sagrado, não se admitia a poligamia e o divórcio era quase inexistente. Somente outra cerimônia religiosa desligava os laços construídos através do casamento. A família deveria propagar-se sempre para que os mortos fossem lembrados e a religião não acabasse. Por isso, o casamento era obrigatório. “O grande interesse da vida humana está em continuar a descendência para com esta se continuar o culto” (p. 54)

O filho homem era esperado, pois ele era quem levaria a diante a religião e a herança da família. A adoção de filhos era permitida nos casos em que a família não possuía um filho para dar continuidade à descendência, ele era iniciado na religião da nova família quebrando todos os vínculos com a antiga, inclusive o vínculo de receber herança. O parentesco não era determinado pelos laços sanguíneos, era determinado pelos laços de culto. Somente os homens herdavam os bens e celebravam os rituais religiosos, observando sempre o direito de primogenitura.

 O pai possuía direitos e deveres. Era o sacerdote, administrava os bens e aplicava o castigo quando algum membro da família cometia um crime, podendo aplicar inclusive a pena de morte. “Quão grande terá sido o poder dessa religião! Quanto o dever religioso ultrapassa todos os mais deveres!” (p. 56) 

O direito de propriedade surgiu através da religião, era o mais importante de todos. “De todas essas crenças, de todos esses usos, de todas essas leis resulta claramente que foi a religião doméstica quem ensinou o homem a apropriar-se da terra e lhe assegurou o direito sobre ela.” (p. 74-75) O fogo sagrado e o túmulo eram os maiores bens da família, eram inalienáveis. O lugar do túmulo era automaticamente propriedade inviolável da família, ali era fixada moradia enquanto a família existisse.

O território era sempre marcado e protegido, já que as cerimônias religiosas não podiam ser vistas por alguém que não pertencesse à família. “Cada família tem a sua religião, seus deuses e sacerdócio. No isolamento religioso se funda a lei; seu culto é segredo.” (p. 122) Até os escravos precisavam ser iniciados na religião para poderem pertencer a casa. Os escravos libertos passavam a serem tratados como homens livres, mas continuavam sob o domínio religioso do senhor e eram chamados de clientes.

Com o passar do tempo as relações sociais entre as pessoas foram mudando. As famílias continuavam conservando a religião, mas adquiriram um maior desenvolvimento em relação ao direito privado. Por isso, foram formando aos poucos as gens, uma organização ainda baseada na família, mas que permitia a associação entre as pessoas. Era uma espécie de dinasta, o nome das gens significava a origem da pessoa. As famílias que possuíam um culto em comum começaram asse reunir para celebrá-lo, era o surgimento das fratarias ou cúrias. As fratarias se associaram e formaram tribos e as tribos, cidades.

Cada frataria ou cúria tinha um chefe, [...] cuja principal função era a de presidir os sacrifícios. [...] A frataria tinha assembléias, as suas deliberações, e podia promulgar decretos. Na frataria, como na família, havia um deus, um culto, um sacerdote, uma justiça e um governo. Era uma pequena sociedade modelada exatamente sobre a família. (p. 130)

Uma nova religião com deuses da natureza física foi se formando aos poucos. Ela permitia que famílias diferentes cultuassem o mesmo deus, fez surgir uma nova moral que não se limitava a ensinar os deveres da família, o fogo sagrado passou a ser o altar e não mais divindade e o lugar de culto passou a ser o templo. Politicamente, continuaram a funcionar pequenos governos que a partir dos quais surgiu um governo em comum.

A cidade era uma confederação que respeitou durante muito tempo a independência das famílias. Tudo isso facilitou a vida em sociedade e o surgimento das cidades, porque as pessoas passaram a respeitar o culto de cada uma. Cidadão era todo homem que participa do culto religioso da cidade, dessa participação vinham seus direitos civis e políticos. Estrangeiro era aquele que não tinha acesso ao culto, os deuses da cidade não o protegiam e não tinha direto de invocá-los. 

Cidade e Urbe não eram palavras sinônimas no mundo antigo. Cidade era a associação religiosa e política das famílias e tribos, Urbe era o santuário dessa sociedade. O fundador era quem realizava o culto, sem o qual a cidade não podia ser fundada. O primeiro passo era escolher o local, essa escolha ficava entregue aos deuses, oferecia um sacrifício aos deuses e uma cerimônia de fundação era realizada. O fundador era o sacerdote, depois de morto era cultuado como um deus comum para todos os habitantes. Todo homem que prestara algum serviço à cidade, tornava-se um deus para essa cidade. Cada cidade possuía seus próprios deuses. A principal cerimônia religiosa da cidade era um banquete em honra aos deuses, com toda a população presente. Para tudo o que era sagrado havia uma festa.

O líder religioso do da cidade era também o rei.  Ele precisava ser sacerdote, magistrado e chefe militar ao mesmo tempo. A hereditariedade era no principio a regra de sucessão do poder.  Esse processo acontecia de maneira pacifica, pois a realeza não foi inventada por ambição de alguém, mas por necessidade religiosa das pessoas. Mais tarde, uma revolução acabou com a monarquia, aconteceu quando as crenças antigas sobre o regime social já estavam enfraquecidas e o interesse da maioria entrou em conflito. Quando a monarquia foi restabelecida, os novos governantes se tornavam apenas chefes políticos que subiam ao poder através de eleição ou força. A revolução fez surgir a figura do magistrado.

Eles eram juízes tanto no incesto quanto no celibato. Como na adoção dizia respeito à religião, esta só poderia fazer com o prévio consentimento do pontífice. Fazer testamento era infringir a ordem estabelecida pela religião, para a sucessão dos bens e para transmissão do culto; assim, originariamente, o testamento tinha também de ser autorizado pelo pontífice. Como era a religião que marcava os limites de cada propriedade, quando houvesse litígio entre dois vizinhos, deviam queixar-se perante o pontífice ou perante os sacerdotes chamados irmão arvais. Eis o motivo porque os mesmos homens eram, ao mesmo tempo, pontífices e jurisconsultos: o direito e a religião se confundiam em uma só coisa. (p. 207)

A lei surgiu baseada na religião. Os antigos códigos tinham suas leis e punições de acordo com o que era correto para a religião. As leis regulavam o culto e as relações civis. Durante muito tempo não eram escritas eram transmitidas verbalmente de pai para filho, quando começam a serem escritas, isso acontecia em um ato sagrado. Não era um homem quem legislava, e sim a religião. O Direito não era nada mais que uma das faces da religião, não possuía senso de justiça. 

Mas como tudo mudou! As classes foram confundidas, ‘os maus foram colocados acima dos bons’. A justiça é alterada; as leis antigas deixam de vigorar e são substituídas por leis estranhas e novas. A riqueza tornou-se o único objeto dos desejos humanos, por que apenas ela lhes confere poder. (p. 304)

Em uma sociedade estabelecida sobre tais princípios, a liberdade individual não existia, a vida privada não fugia da onipotência do Estado, tal era o seu poder que ordenava a inversão dos sentimentos naturais e era obedecido. Os antigos não conheciam a liberdade de vida privada, nem a de educação, nem a religiosa, o homem não tinha nenhuma concepção do que era liberdade.

Como a evolução das cidades, a regra da indivisibilidade e o direito de primogenitura foram acabando. A separação das gens enfraqueceu a antiga família sacerdotal, o que tornou mais fácil as outras transformações. O cliente começou a alcançar o direito de propriedade e a plebe se constituiu em sociedade.  Após muitas lutas entre as classes sociais a eleição passou a não mais pertencer aos deuses, mas ao povo.

O regime democrático foi necessário para que o pobre tivesse amparo e o rico um freio, concedeu-se direitos a todos os homens livres. As leis passaram a ser feitas pelos homens sem serem determinadas pela religião. “Outra consequência é que a lei, que antes era parte da religião e, por isso, patrimônio das famílias sagradas, dali em diante foi propriedade comum de todos os cidadãos.” (p. 334) O conceito de divindade mudou. O homem não mais quis crer sem conhecer nem ser governado sem discutir suas instituições. O voto foi instituído, assembleias discutiam o interesse público, a lei se tornou flexível, mudou o papel do governo e a política se tornou mais importante que a religião.

A população romana era uma mistura de várias raças, seu culto uma união muitos cultos, seu lar uma associação de diferentes lares. Roma era uma das a únicas cidades cuja religião municipal não se isolava das demais e que a cada dia se desenvolvia mais, o que possibilitou que com o tempo se tornasse um dos maiores impérios da história da humanidade, o responsável pela difusão do cristianismo.

Roma foi a única cidade que com a guerra soube aumentar a população aumentou sua população. Sua política era ignorada de todo resto do mundo greco-itálico; juntou a si todos a quem venceu.Trouxe para seus muros os habitantes das cidades conquistadas e, aos poucos os fez romanos. Ao mesmo tempo, enviava colonos para os países conquistados, e como tal processo Roma se difundia por toda parte porque seus colonos, embora formassem cidades distintas do ponto de vista político, conservavam com a metrópole uma dependência religiosa; e isso era o bastante para que esses povos se vissem obrigados a subordinar a sua política á de Roma, a obedecer-lhe e a ajudá-la em todas as suas guerras. (p. 389)

Cristo ensinou que seu reino não era terreno. Separou a religião do Estado sem que a obediência civil fosse deixada. “Estabelece-se a crença: constitui-se a sociedade humana. Modifica-se a crença: a sociedade atravessou uma série de revoluções. A crença desaparece: a sociedade muda de aspecto. Esta foi a lei dos tempos antigos.”(p. 418)

O templo passou a ficar aberto a quem quer que acredite em Deus. O sacerdócio deixou de ser hereditário, porque religião já não era um patrimônio. O cristianismo marcou o fim da sociedade antiga.

 

Montes Claros, 17 de setembro de 2009.