FENÔMENO DA SERENDIPIDADE E SUA ADMISSIBILIDADE NO PROCESSO PENAL BRASILEIRO

 

Amanda Medicis Miolla[1]

Andréa de Oliveira Pelegrini[2]

 

 

RESUMO: O presente artigo visa estudar de maneira objetiva o fenômeno da serendipidade, que se observa quando em uma investigação criminal acerca de determinado delito, são descobertas provas pertinentes a outra infração ou novas autorias. E ainda analisar sua validade. A pesquisa utiliza uma abordagem da letra da lei, definições doutrinárias e entendimentos jurisprudenciais.

Palavras-chave: Serendipidade. Encontro fortuito. Conexão. Continência. Provas. Validade.

1 INTRODUÇÃO

 

 

Pretende-se com o desenvolvimento desse trabalho discutir, no âmbito do Direito Processual Penal, a temática concernente ao fenômeno da serendipidade, também chamado de encontro fortuito de provas.

Este instituto é perfeitamente visualizado tanto no âmbito das interceptações telefônicas, quanto na busca e apreensão. Tendo como principal questão a validade da prova obtida por esse meio probatório, visto que há divergências se esse meio seria adequado para servir como prova para fatos e pessoas encontradas fortuitamente, ou apenas uma “notitia criminis”.

É válido ressaltar que não há legislação pertinente ao tema no ordenamento jurídico atual, o que acarreta divergência doutrinaria e jurisprudencial.

 

 

2 TEORIA DO ENCONTRO FORTUITO DE PROVAS NO PROCESSO PENAL: A SERENDIPIDADE

A palavra serendipidade originária do inglês “serendipity” tem o significado de “descobrir coisas por acaso”. Seria como sair em busca de uma determinada coisa e descobrir outra (ou outras). A expressão deriva da lenda oriental “Os três príncipes de Serendip”, que ao viajarem fizeram descobertas sem nexo com seu alvo principal.

O encontro fortuito de provas no processo penal divide-se em dois prismas: serendipidade de primeiro e segundo grau. Vide:

Quanto ao primeiro, é dizer que durante a produção de provas, numa persecução penal, visando encontrar provas acerca de determinado fato delituoso e/ou sua autoria, é encontrado elemento distinto do objetivo final ou sobre outrem, mas que lhe seja conexo ou continente, conforme os artigos 76 e 77 do Código de Processo Penal. Exemplificando: um juiz autoriza a violação do sigilo fiscal de um suspeito para obter provas de um crime contra a ordem tributária. Porém, em razão dessa quebra, é descoberta, porventura, a prática de um peculato.

Quanto ao segundo, em oposição ao anterior, os fatos descobertos não possuem qualquer conexão ou continência.

3 DAS PROVAS NO PROCESSO PENAL

                                          

 

A palavra prova deriva do latim “probatio” que significa aquilo que atesta a veracidade ou a autenticidade de algum fato.

Um dos princípios norteadores que regem o direito processual penal brasileiro é a busca da verdade real, ou seja, a confirmação de um fato.

A respeito de sua admissão, o Código Processual Penal Brasileiro, adota o sistema exemplificativo, ou seja, aceitando além das provas nominadas (previstas no diploma), as inominadas.

As provas são dirigidas ao juiz, que se vale do livre convencimento motivado, ponderando-as e tendo o dever de fundamentar as suas decisões.

3.1 Prova Ilícita

 

 

O direito à prova não é absoluto, uma vez que encontra limitações na própria Constituição Federal e também no artigo 157 do Código Processual Penal vigente, que conceitua prova ilícita. Vide, respectivamente:

Art. 5º, inciso LVI - são inadmissíveis, no processo, as provas obtidas por meios ilícitos;

Art. 157.  São inadmissíveis, devendo ser desentranhadas do processo, as provas ilícitas, assim entendidas as obtidas em violação a normas constitucionais ou legais.

As provas ilícitas são uma espécie das chamadas provas vedadas, pois não podem ser trazidas ou invocadas a juízo como justificativa de um direito. E, por essa razão, encontram-se dentro das provas ilegais, próximas às ilegítimas.

Importante observar que há diferença entre provas ilícitas e ilegítimas: as ilícitas são obtidas com infringência ao direito constitucional ou legal; enquanto as ilegítimas são aquelas que desrespeitam as regras de direito processual.

Diferença não só encontrada nas definições, mas também nas consequências de cada uma delas: a prova obtida por meio ilícito é a sua retirada do processo, ao contrário do que se observa em provas processualmente ilegítimas, que permanecem no processo, mas não poderão receber valoração, por serem nulas.

Destarte, determinadas provas ilícitas podem ser concomitantemente ilegítimas, caso a lei processual também impeça a sua criação.

As provas ilícitas por derivação são aquelas obtidas através de uma prova ilícita substancial. Um clássico exemplo é a confissão conseguida mediante tortura.

A prova principal, por ter sido obtida de forma ilícita, contamina as demais provas advindas dela. Identificando-se, deste modo, a Teoria dos Frutos da Árvore Envenenada – Fruits of the poisonous tree – originada na Suprema Corte Americana e incorporada ao sistema brasileiro, pela seguinte disposição normativa:

§ 1º São também inadmissíveis as provas derivadas das ilícitas, salvo quando não evidenciado o nexo de causalidade entre umas e outras, ou quando as derivadas puderem ser obtidas por uma fonte independente das primeiras.

 

4 VALIDADE DA PROVA FORTUITA

Para que a prova encontrada seja considerada lícita, no processo penal brasileiro, é preciso que haja a conexão ou continência em relação ao delito investigado ou sua autoria, além da forma que a diligência fora realizada, assim, se houve desvio de finalidade, ela não será válida. Como exemplifica Eugenio Pacelli: quando na investigação de um crime contra fauna, os policiais munidos de mandado judicial de busca e apreensão entram em determinada casa para cumprirem a ordem, é esperado e exigido que apenas busquem os animais silvestres, (CPP, art. 243, inc. II). Se os policiais passam a revirar gavetas ou armários, as provas não relacionadas ao mandado serão consideradas ilícitas.

Isso evitaria um possível abuso de autoridade por parte do Estado ao utilizar uma medida cautelar (busca e apreensão) para uma diligência, mas, por conveniência e discricionariedade excessivas, venha ferir direitos constitucionais para investigar outros delitos na oportunidade, como a intimidade.

Quando não for conexo ou continente, não poderá ser usada nos autos, será meramente uma “notitia criminis” de um novo fato. 

 

4.1 Na interceptação telefônica

A interceptação telefônica é regulada pela lei nº 9.296 de 1996, e é um meio probatório no processo penal brasileiro. Tem a necessidade de autorização judicial, não podendo ser utilizada caso tenha outros meios disponíveis para a formação de prova, e só é admitida quando se tratar de crimes cuja pena seja de reclusão.

Quando autorizada, tem de estar no pedido os motivos que ensejarem, e as pessoas que terão suas conversas interceptadas, salvo impossibilidade de fazê-lo.

Durante a interceptação podem vir à tona conversas que apontem a ocorrência de novos crimes, até então desconhecidos, praticados ou não por um dos interlocutores. Tal prova não poderia ser descartada, uma vez que adquirida licitamente, por óbvio, se não autorizada, as informações colhidas não poderão ser utilizadas como visto anteriormente.

No denegado Habeas Corpus 144.137/ES, relator Ministro Marco Aurélio Bellizze, da quinta turma, que fora proposto para declarar a ilicitude de tal meio probatório, fica claro que os tribunais superiores pátrios aceitam o fenômeno estudado e as provas encontradas, quando houver conexão, integrarão os autos do processo.

II - Sobreleva destacar que, em consonância com autorizada doutrina e, especialmente, com a jurisprudência dos Tribunais superiores, é lícita a prova de crime diverso, obtida por meio de interceptação de ligações telefônicas de terceiro (este compreendido como aquele que se comunicou com o investigado ou que utilizou a linha telefônica monitorada), não mencionado na autorização judicial de escuta, desde que relacionada (é dizer, que exista conexão ou continência) com o fato criminoso objeto da investigação; (grifo nosso)

4.2 Na busca e apreensão

 

 

A serendipidade já foi identificada pela Sexta Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ), no RHC 45.267, em um cumprimento de mandado de busca e apreensão, este autorizava o confisco de documentos e mídias em determinado imóvel que pertencia à ré, suspeita de receber gratificação em razão de cargo público. Acontece que, ao decorrer do mandado, os policiais encontraram material que fora identificado como do marido da investigada.

Após a análise do conteúdo, constataram-se indícios de que ele também participava do esquema. Dessa maneira, passou a ser investigado, e buscou reconhecer, por meio de habeas corpus, a ilegalidade da prova encontrada em sua residência.

A ponderação da desembargadora Marilza Maynard, ainda que se tratando de prova fortuitamente obtida, foi de considerá-la pela dificuldade de a polícia identificar a quem pertenciam os materiais, uma vez que moravam sob o mesmo teto.

5 DIREITO COMPARADO

 

 

Sobre a validade da prova fortuitamente encontrada, tanto o ordenamento jurídico Brasileiro, quanto o Espanhol, ainda não possuem um entendimento pacificado, ao contrário do que se verifica na Alemanha e Itália.

 

 

5.1 Direito Alemão

 

 

Para o direito alemão, ainda que não haja conexão ou continência entre o crime investigado e o encontrado, poderá ser considerado uma prova licita, desde que o novo delito descoberto esteja no rol daqueles que autorizam em (abstrato) a interceptação telefônica.

5.2 Direito Italiano

 

 

Na Itália, a prova fortuitamente encontrada pode ser usada em qualquer crime, desde que o fato descoberto tenha conexão com crime de aprisionamento necessário.

5.3 Direito Espanhol

 

 

Assim como o Brasil, os espanhóis utilizam o mesmo critério: conexão. Ou seja, só será licita a prova que tiver conexão ou continência com o crime ou o autor investigado.

5.3.1 Caso Hercules Club Fútbol

 

 

Em 2010, em uma interceptação telefônica que estava em andamento, um empresário espanhol, que estava sendo investigado sobre uma ação que versava sobre concussão, fraude e tráfico de influências, falando com uma terceira pessoa sobre seu clube de futebol, confessou que havia comprado goleiros do outro time para que o time Hércules subisse para a primeira divisão.

O ministério público pedia o envio das gravações que lhe foi negado pelo Juiz do caso, que justificou sua decisão como sendo uma invasão à intimidade e segredo de comunicações, tal caso descoberto não fazia parte do contexto fático, a que se destinava tal interceptação.

Houve o recurso, sendo confirmada a sentença anteriormente prolatada, ou seja, denegatória. O fundamento foi basicamente o mesmo: essa conversação não estava abrangida pelo que realmente era procurado. Condizendo-se, assim, com o segundo grau de serendipidade, isto é, serviria apenas como “notitia criminis”.

6 CONCLUSÃO

 

 

Por conseguinte, é evidente a semelhança dos entendimentos entre o direito espanhol e brasileiro a respeito do encontro fortuito de provas no processo penal.

Em ambos, o entendimento é de que no acontecimento do fenômeno, caso haja conexão ou continência com o crime investigado, o fato novo encontrado terá natureza jurídica de prova. O que é perfeitamente válido, pois tutela-se o princípio constitucional do devido processo legal, além dessa nova prova só aparecer nos autos se obtida de forma lícita, já que uma prova ilícita torna as demais também.

Porém, o fenômeno, verificado comumente nas interceptações telefônicas e nos mandados de busca e apreensão, ainda gera polêmicas quando se tratar de um fato novo não conexo ou que contenha continência, cabendo ao judiciário através de seus ditames no caso in concreto decidir tratar-se de mera notitia criminis ou prova.

7 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

AVOLIO, Luiz Francisco Torquato. Provas ilícitas: interceptações telefônicas e gravações clandestinas. 2. ed., rev., atual. e ampl. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1999. 239 p. ISBN 85-203-1789-8

BARROS, Antônio Milton de. Da prova no processo penal: apontamentos gerais. 1. ed. São Paulo: Ed. Juarez de Oliveira, 2001. 106 p. ISBN 85-7453-203-7

BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília: Senado, 1988.

BRASIL. Presidência da República. Código de Processo Penal. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/Del3689Compilado.htm

Leia mais: http://jus.com.br/artigos/20274/reflexos-e-consequencias-juridicas-do-principio-da-nao-auto-incriminacao/2#ixzz3jrUFbKks

CARNAUBA, Maria Cecília Pontes. Prova ilícita. São Paulo: Saraiva, 2000. 109 p. ISBN 85-02-03085-X.

CENTRO UNIVERSITÁRIO “ANTONIO EUFRÁSIO DE TOLEDO”. Normalização de apresentação de monografias e trabalhos de conclusão de curso. 2007 – Presidente Prudente, 2007, 110p.

FERRACINI, Luiz Alberto. Da prova penal e sua interpretação jurisprudencial. Leme: LED, 1995. 160p.

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584.

SILVA, César Dario Mariano da. Provas ilícitas: princípio da proporcionalidade, interceptação e gravação telefônica, busca e apreensão, sigilo e segredo, confissão, comissão parlamentar de inquérito. 5. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2007. 151 p. ISBN 978-85-309-2607-6

TEIXEIRA, Adenilton Luiz. Da prova no processo penal. Rio de Janeiro: Forense, 1998. 70p. ISBN 85-309-0474-5



[1] Discente do 3º ano do curso de Direito do Centro Universitário “Antonio Eufrásio de Toledo” de Presidente Prudente. [email protected]

[2] Discente do 3º ano do curso de Direito do Centro Universitário “Antonio Eufrásio de Toledo” de Presidente Prudente. [email protected]