Desde as sociedades mais primitivas, o homem viveu em contato com o Direito Penal, o qual passou a ser parte integrante da vida humana, vez que surge para proteger os bens mais importantes e essenciais ao indivíduo e à sociedade.

Com o intuito de proteger os bens, valores e interesses mais significativos da sociedade, a pena torna-se o instrumento de coerção de que se vale o Direito Penal para a proteção de bens extremamente valiosos, não do ponto de vista econômico, mas, sim, político.

A origem das penas é anterior à própria criação da sociedade organizada. Surgiu desde as mais antigas civilizações, constituindo-se remotamente em espécie de vingança privada, possuindo até mesmo caráter divino com práticas de diversas atrocidades em nome dos deuses, onde predominavam a prática de torturas, penas de morte, prisões desumanas, banimentos e outras.

Foi com o intuito de estatização da vingança privada já reinante, que o Estado como “munus publicum” chamou para si a aplicação deste Direito e juntamente com ele o poder/dever de aplicação da pena aos violadores do bem jurídico tutelado, com a finalidade de defender toda a coletividade em busca de uma sociedade mais pacífica, harmônica e justa, que, apesar de no início manter certa desproporção, começou a deixar claro quem ditava as regras, configurando, assim, verdadeiro “jus puniendi” na aplicação das penas.

“Por causa da desproporção, as lutas entre os grupos, famílias e tribos eram brutas, o que exterminavam e enfraqueciam diversas delas. Surge, então, a primeira conquista no terreno repressivo, o talião, que delimitava a reação à ofensa a um mal idêntico ao praticado. Tal pena aparece no Código de Hamurabi (olho por olho, dente por dente), na Lei das XII Tábuas e outras legislações. Foi o início da preocupação com a justa retribuição”.[1]

No curso da história da humanidade foram adotados diversos métodos de punição e retribuição às condutas consideradas desviantes. A prisão, longe de ter sido o principal artifício punitivo, nem sempre teve a mesma finalidade. Durante a Idade Média, por exemplo, era decretada somente de forma cautelar; o cárcere destinava-se à custódia do investigado enquanto não fosse proferido o seu julgamento. Nesse período, concorriam duas modalidades de pena: a fiança e os suplícios corporais. Naturalmente, a alternativa econômica resumia-se a um privilégio das elites, de forma que, às massas empobrecidas, somente restavam os castigos físicos, as forcas e fogueiras, realizados na forma de espetáculos públicos.

A adoção de métodos penais característicos em períodos históricos específicos seria explicável, segundo Rusche e Kirchheimer, pela instrínseca relação entre a punição e o modelo de organização socioeconômico de cada sociedade. Segundo este princípio, “todo sistema de produção tende a descobrir formas punitivas que correspondem às suas relações de produção[2]”.

Os autores esclarecem:

“É evidente que a escravidão como forma de punição é impossível sem uma economia escravista, que a prisão com trabalho forçado é impossível sem a manufatura ou a indústria, que fianças para todas as classes da sociedade são impossíveis ser uma economia monetária. De outro lado, o desaparecimento de um dado sistema de produção faz com que a pena correspondente fique inaplicável. Somente um desenvolvimento específico das forças produtivas permite a introdução ou a rejeição de penalidades correspondentes[3]”.

O capitalismo mercantilista foi marcado pela excessiva utilização da pena de morte, vez que era preciso identificar o inimigo e eliminá-lo. Os interesses do Estado Absoluto se confundiam com os interesses do monarca, deveriam ser observados a qualquer custo, não representando, portanto, o respeito ao ser humano – mormente à vida – qualquer óbice a tal objetivo.

A disputa de mercados e de matérias-primas, que durante o industrialismo incipiente fez com que recrudescessem as guerras, também levou a submissão das massas e a seu adestramento funcional para o poder industrial, o que trouxe como consequência uma limitação qualitativa no poder punitivo; em outras palavras, punia-se com penas menos cruéis, mas não com menos intensidade quantitativa.



[1] MAGGIO, Paula Rodrigues , 2003, p. 55.

[2] RUSCHE, George; KIRCHHEIMER, Otto. Punição e Estrutura Social, p. 69-70.

[3] RUSCHE, George; KIRCHHEIMER, Otto. Punição e Estrutura Social, p. 69-70.

Com a evolução da sociedade, a punição foi paulatinamente deixando de ser um espetáculo de morte em praça pública. Começaram a surgir pensadores que levantavam a bandeira de que o rito de suplício e sofrimento que levava a morte ao apenado, bem como a pena de morte, igualava-se ao crime cometido, sendo que muitas vezes o ultrapassava em brutalidade, e que tal procedimento deveria ser afastado, pois a pena de morte imposta não se apoiava em nenhum direito, conforme Cesare Beccaria, em sua célebre obra dos Delitos e das Penas, ao declarar que a pena de morte era inútil, conforme abaixo se observa de forma veemente pelo expoente doutrinador:

“A morte de um cidadão apenas pode ser considerada necessária por duas razões: nos instantes confusos em que a nação está na dependência de recuperar ou perder a sua liberdade, nos períodos de confusão quando se substituem as leis pela desordem; e quando um cidadão, embora sem a sua liberdade, pode ainda, graças às suas relações e ao seu crédito, atentar contra a segurança pública, podendo a sua existência acarretar uma revolução perigosa no governo estabelecido.” (BECCARIA, 1764, p. 52).

Beccaria defendeu a existência de uma proporcionalidade entre as penas e os delitos, suas ideias foram um verdadeiro embrião para o nascimento de uma legislação penal mais humana, dando os primeiros passos para o surgimento do sistema prisional com a finalidade de ressocializar o infrator, tornando-o apto para o retorno ao convívio social.

De fato, observa-se que a ideia de estabelecimentos prisionais representou um verdadeiro avanço ao direito de punir. O sistema penitenciário surgiu com a necessidade de reabilitação e recuperação dos que feriam as regras sociais, com o fim de abolir as penas desumanas e proporcionar ao apenado chances de reinserção social, objetivando principalmente uma reforma moral e uma preparação do recluso para sua vida em sociedade, conforme se observa em NORONHA (1999, p. 202) “Os estabelecimentos penitenciários representam a evolução do direito de punir e conter os agressores do crime. A sanção penal percorreu um longo caminho histórico até chegar à condição atual, qual seja a pena privativa de liberdade”.

O modelo de penitenciária moderno se desenvolve especificamente nas “whorkhouses” (casas de correção): instituições de trabalho forçado criadas no período de germinação do capitalismo[1]. Estes estabelecimentos são desenvolvidos inicialmente na Europa, a partir dos séculos XV e XVI, em um contexto de crescimento populacional e de intensificação do êxodo rural ocasionado pela política de cercamento de campos.

Expropriados dos seus meios de produção e de subsistência, os camponeses passam a se concentrar nas cidades e, inadaptados à disciplina do trabalho assalariado, dão origem à formação de uma massa de desocupados urbanos, que logo se torna uma população de mendigos, vagabundos e ladrões. Nessa conjuntura, as “whorkhouses” aparecem como solução para o problema de exclusão social causado pelo capitalismo ascendente que estava à sua disposição. Assim, o Estado passa a fazer um uso pragmático da força de trabalho que estava à sua disposição, limpando os indesejáveis das cidades, ao mesmo tempo que supria a carência de mão de obra nas fábricas[2].

Segundo Rusche e Kirchheimer, essas casas de correção eram uma espécie de combinação entre as casas de assistência aos pobres, oficinas de trabalho e instituições penais. Seu objetivo principal era disciplinar a força de trabalho ociosa, tornando-a socialmente útil. Eram ocupadas por moradores de rua, prostitutas, ladrões, enfim, por membros dos segmentos marginalizados[3].

Com o surgimento do sistema fabril, as casas de correção vão gradualmente perdendo a importância. A moderna sociedade industrial requer o trabalho livre como condição necessária para o emprego da força de trabalho, de forma que, aos poucos, os presos deixam de ser usados para preencher as lacunas do mercado.

A adoção de métodos penais característicos em períodos históricos específicos seria explicável, segundo Rusche e Kirchheimer, pela intrínseca relação entre a punição e o modelo de organização socioeconômica de cada sociedade. Segundo este princípio, “todo sistema de produção tende a descobrir formas punitivas que correspondem às suas relações de produção[4]”. Os autores esclarecem:

É evidente que a escravidão como forma de punição é impossível sem uma economia escravista, que a prisão com trabalho forçado é impossível sem a manufatura ou a indústria, que fianças para todas as classes da sociedade são impossíveis sem uma economia monetária. De outro lado, o desparecimento de um dado sistema de produção faz com que a pena correspondente fique inaplicável. Somente um desenvolvimento específico das forças produtivas permite a introdução ou a rejeição de penalidades correspondentes[5].

Dessa forma, o surgimento da pena de prisão coincide com a gênese do modo de produção capitalista e, portanto, pode ser compreendida a partir da relação capital/trabalho assalariado. Melossi e Pavarini demonstram que o cárcere e a fábrica são instituições complementares que constituem a matriz histórica do capitalismo, uma vez que o trabalhador é controlado pela disciplina do capital e o sujeito marginalizado do mercado de trabalho pela disciplina da prisão.

A sociedade capitalista necessita do controle da classe trabalhadora. As pessoas que não possuem meios de produção, só têm como alternativa a venda da força de trabalho para garantir a própria subsistência. Assim, quando empregadas, são obrigadas a se submeter à autoridade do capitalista. Aqueles que permanecem marginalizados do mercado de trabalho, formando o exército de reserva, não possuem uma função direta na reprodução do capital, mas são necessários para manter os salários em níveis baixos para a máxima obtenção de lucro. O controle que incide sobre eles, então, é o do cárcere, que funciona como instituição auxiliar da fábrica.

A pena privativa de liberdade, que nos primórdios do capitalismo fora utilizada como forma de adestramento e disciplina da mão de obra recalcitrante para os fins de produção, passou, na Revolução Industrial, a funcionar como meio de contenção dos excluídos pelo sistema e de combate ao proletariado que se fortalecia e passou a exigir direitos.

Em seguida, com o industrialismo avançado, foi paulatinamente perdendo seu viés repressivo de neutralização dos não adaptados à exploração capitalista para, no âmbito do Estado caritativo, produzir conformação social, ou seja, as gritantes diferenças sociais deveriam ser aceitas, posto que a inconformidade com tal estado de coisas era diagnosticada como um mal a ser tratado através do sistema penal.



[1] SANTOS, Juarez Cirino dos. Direito Penal: Parte Geral, p. 459-460.

[2] SANTOS, Juarez Cirino dos. Direito Penal: Parte Geral, p. 459-460.

[3] RUSCHE, George; KIRCHHEIMER, Otto. Punição e Estrutura Social, p. 69-70.

[4] RUSCHE, George; KIRCHHEIMER, Otto. Punição e Estrutura Social, p. 20.

[5] RUSCHE, George; KIRCHHEIMER, Otto. Punição e Estrutura Social, p. 20-21.

E a legitimação do sistema valia-se de um discurso tão humanitário e com fins tão nobres, como é o caso do discurso ressocializador que propunha a recuperação do homem delinquente para a volta de uma vida plena no meio social, totalmente reintegrado, que se tornava difícil contestá-lo quanto a suas reais intenções.

Assim sendo, tem-se consciência que durante a revolução industrial, na teoria era admitida e na prática se utilizava – oficial e declaradamente – a pena privativa de liberdade com fins intimidatórios, de castigo retributivo e, até mesmo, como forma de emenda, sobressaindo, entretanto, ante a massificação de tal instrumento de controle social, o fim de neutralização das classes miseráveis que teimavam em investir contra a propriedade da burguesia industrial nascente.

Através do discurso oficial de proteger-se a propriedade de todos, viga mestra do discurso liberal pautado na igualdade jurídica, desenvolver-se-ia a função oculta de proteger os interesses econômicos da classe burguesa que se encontrava no poder, como soer acontecer até os presentes dias[1].

Percebe-se, com clareza meridiana, que o discurso oficial ou ideológico declarava ser a finalidade do cárcere a repressão e a redução da criminalidade, quando, na verdade, os fins colimados eram o de tratar seletivamente a criminalidade com o objetivo maior de manter a submissão das classes dominadas pelos que se encontravam no poder e, concomitantemente e consequentemente, a imunização destes mesmos sujeitos poderosos – na melhor das hipóteses, instrumental – em relação à delinquência por eles praticada[2].

Vê-se, portanto, que a pena de prisão não surge como um produto da imaginação punitiva do ser humano. Ao contrário, nasce como uma extensão da disciplina da fábrica, funcionando como um instrumento do capitalismo na formação de sujeitos dóceis e úteis para o trabalho. De outro lado, a supressão do tempo de liberdade como medida retributiva pela conduta delituosa é também uma lógica própria do capitalismo, que utiliza o salário como valor de troca pelo tempo de trabalho agregado ao bem de produção. O sistema prisional, portanto, o cárcere, reproduz uma lógica estrutural do capitalismo, assim, uma forma de punição característica deste Modo de Produção.

Do exposto, compreende-se que, da mesma forma que as relações de trabalho pretensamente evoluíram, passando do escravismo e do feudalismo para o capitalismo, sendo que nesta última forma de produção a exploração se dá de forma dissumulada pelo contrato de trabalho assumido de forma “livre”, a pena privativa de liberdade, também disfarçada pela pretensa igualdade jurídica, propugnada pelo pensamento liberal, acaba por dissimular a imposição de uma violenta submissão de um classe por outra – a burguesia oprimindo o proletariado -, da mesma forma que os suplícios e a pena de morte o fizeram durante o período dos regimes de escravidão e feudal[3].

A despeito do seu discurso de neutralidade, o direito penal e o sistema prisional acabam por reproduzir as desigualdades de classes que sustentaram/sustentam o modo de produção capitalista, acompanhando-o em todas as fases: Capitalismo Liberal, Estado de bem-estar social e o neoliberalismo.



[1] GUIMARÃES, Cláudio Alberto Gabriel. Funções da pena privativa de liberdade no sistema penal capitalista, p. 173.

[2] GUIMARÃES, Cláudio Alberto Gabriel. Funções da pena privativa de liberdade no sistema penal capitalista, p. 173.

[3] GUIMARÃES, Cláudio Alberto Gabriel. Funções da pena privativa de liberdade no sistema penal capitalista, p. 175.

Finalizando o período de revolução industrial, com o fortalecimento do movimento operário, a pena privativa de liberdade, doravante, inicia mais um processo de transformação. O cárcere, a partir de então, terá de que produzir conformação social, em um ambiente de amplo descontentamento popular, que acabou por dar origem ao estado de bem-estar social, no qual o discurso ressocializador fortificou-se a fim de legitimar o controle dos indivíduos que não assimilassem as diretrizes do poder burguês, então em ascensão. No estado neoliberal, que marca o capitalismo contemporâneo, o método de execução das sanções penais permaneceu intimamente vinculado à ideologia como aos interesses econômicos emanados das classes dominantes.

As profundas mudanças nos rumos da economia irão sempre influenciar decisivamente a elaboração teórica e a prática do Direito Penal nos novos momentos do modo de produção capitalista. É um porvir no qual o Estado precisa, preponderantemente, articular mecanismos que produzem conformação social de maneira pacífica. É politicamente conveniente que se diminua a repressão explícita da classe trabalhadora[1].

É uma eterna alquimia entre o econômico e o político que ao longo dos anos, em turnos de revezamento no que pertine à preponderância dos interesses – quando estes não coincidem inteiramente -, vem alcançando seu objetivo principal: dar sustentação ao modo de produção capitalista[2].



[1] GUIMARÃES, Cláudio Alberto Gabriel. Funções da pena privativa de liberdade no sistema penal capitalista, p. 196.

[2] GUIMARÃES, Cláudio Alberto Gabriel. Funções da pena privativa de liberdade no sistema penal capitalista, p. 196.