Evolução das Normas Societárias e Tributárias sobre Demonstrações Financeiras

Marcel Desmonts da Silva Filho

RESUMO: As demonstrações financeiras são relatórios contábeis que visam fornecer informações sobre a posição patrimonial e financeira, o resultado e o fluxo financeiro de uma entidade, as quais são úteis para uma ampla variedade de usuários na tomada de decisões. O presente artigo traz uma análise sobre a evolução das normas societárias e tributárias sobre demonstrações financeiras. Para tanto, o estudo se inicia através da análise da relação existente entre o Direito e a Contabilidade, para mais adiante tratar das normas que se referem às demonstrações financeiras e, por fim, trará alguns comentários sobre a convergência contábil ao IFRS.

PALAVRAS-CHAVE: Demonstrações Financeiras; Demonstrações Contábeis; Direito e Contabilidade.

Sumário: 1 Introdução; 2 Relação entre Direito e Contabilidade; 3 Evolução das normas fiscais e societárias sobre demonstrações financeiras; 3.1 Convergência contábil ao IFRS; 4 Conclusão; 5 Referências Bibliográficas.

1.      Introdução

As demonstrações financeiras são representações da posição patrimonial e financeira de uma entidade, tendo por objetivo o fornecimento de informações úteis para uma ampla variedade de usuários na tomada de decisões, se prestando, também, para aferição dos resultados do gerenciamento dos recursos confiados à administração da entidade.

Desde 2007, com a edição da Lei nº 11.638, a contabilidade no Brasil vem passando por profundas modificações, na medida em que busca a convergência às normas internacionais, ao IFRS. Neste cenário, as demonstrações financeiras tendem a permitir a comparação entre empresas nacionais e estrangeiras.

As demonstrações financeiras por muitos anos se prestaram também à apuração de tributos, pelo que se mantinham próximas as esferas contábil e fiscal. No entanto, com o processo de convergência às normas internacionais, surgiram questionamentos sobre a utilização da contabilidade na apuração de tributos.

 Assim, o presente estudo analisará a evolução das normas societárias e tributárias sobre demonstrações financeiras, iniciando as discussões por uma breve elucidação da relação entre a contabilidade e o direito, e finalizando com algumas considerações acerca da convergência contábil ao IFRS.

2.     Relação entre Direito e Contabilidade

No Brasil, durante quase um século, a relação entre o Direito e a Contabilidade se manteve em estado embrionário. Isso porque somente na década de 1940 as demonstrações financeiras deixaram de ser sigilosas.

A relação entre o Direito e a Contabilidade, porém, não é recente, e inúmeros exemplos atestam a proximidade histórica dessas ciências. No âmbito do Direito Societário, os atos da sociedade devem constar das demonstrações financeiras. Na esfera do Direito do Trabalho, as demonstrações financeiras respaldam o cálculo de gratificações, de remunerações vinculadas a resultados e de encargos previdenciários. E, concernentes ao Direito Tributário, os tributos devidos sobre o lucro e a receita devem ser calculados com base nas demonstrações financeiras. Daí por que alguns autores afirmem que o Direito Tributário é o ramo do Direito que mais se aproxima da Contabilidade.[1]

Embora seja natural que a Contabilidade sirva de ferramenta para o Direito Tributário, a relação entre ambas essas ciências evoluiu de maneira conturbada. Isso porque, na inércia da normatização da Contabilidade, o Direito Tributário passou a criar suas próprias normas sobre demonstrações financeiras. Com isso, a Contabilidade passou a não mais refletir a condição financeira das empresas, atendendo unicamente aos interesses do Fisco.

Nesse contexto, não espanta que, em pouco tempo, a Contabilidade tenha se tornado fator de distorção de informações no mercado, o que teria acarretado a concessão de privilégios indevidos.[2] Inclusive, muitos autores chegaram a afirmar que as normas tributárias estariam sobrepostas às normas comerciais, desafiando o teor do Parecer Normativo Cosit nº 11/79, que, já naquele tempo, esclarecia que o Decreto-lei nº 1.598/77 e a Lei nº 6.404/76 não se oporiam, nem se sobreporiam, mas se complementariam.

Para superar essas adversidades, o mercado de capitais foi regulado, e foram instituídos novos métodos e critérios contábeis, em convergência aos padrões internacionais. Tudo isso possibilitou que a Contabilidade se afastasse do formalismo, passando a retratar primordialmente a essência dos eventos. Ademais, reafirmada a independência da Contabilidade em relação ao Direito Tributário, o debate sobre a eventual sobreposição do Direito Tributário ao Direito Privado perdeu a causa, ficando claro que essas esferas desempenhariam funções distintas.[3]

Atualmente, o Direito e a Contabilidade são ciências com propósitos próprios, nem sempre coincidentes. Por um lado, o Direito fornece as normas orientadoras da conduta dos indivíduos em sociedade. E, embora seja uno, o Direito é usualmente dividido em ramos. Assim, por exemplo, o Direito Societário regula o funcionamento das sociedades, o Direito do Trabalho trata das relações entre empregadores e colaboradores, e o Direito Tributário normatiza a relação entre Fisco e contribuinte.

Por outro lado, a Contabilidade fornece informações financeiras sobre as entidades, permitindo que seus usuários possam traçar perspectivas, as mais realistas possíveis, sobre fluxos de caixa, investidores, credores e a própria administração da entidade.[4] Assim, a Contabilidade é instrumento que se presta primordialmente a orientar a tomada decisão por parte de investidores, administradores, empregados, clientes, parceiros, comunidade, financiadores, fornecedores, sócios (acionistas ou cotistas) e governo (arrecadação tributária e órgãos reguladores).[5]

A atual independência entre a Contabilidade e o Direito Tributário existe há pouco menos do que 40 anos, em razão do modelo de compatibilização da Contabilidade prevista na legislação societária e na legislação tributária. Por um lado, a legislação societária sobre normas contábeis poderia ter sido integralmente aproveitada para fins fiscais. Por outro lado, a legislação tributária poderia ter regulado as normas contábeis de forma exaustiva.[6] O legislador tributário nacional, todavia, não seguiu nenhuma dessas alternativas.

O Brasil adotou modelo intermediário, em que, para fins tributários, a legislação societária deve ser observada com as adaptações dispostas na legislação tributária. Assim, embora a Contabilidade seja ferramenta a serviço do governo no exercício da arrecadação tributária, é possível que suas informações careçam de adaptação para que, só depois, possam ser aproveitadas pelo Fisco.

Nesse ponto, como será visto adiante, desenvolveram-se importantes discussões sobre se a Lei nº 11.638/07 e a Lei nº 11.941/09 teriam logrado instituir uma verdadeira neutralidade fiscal, a fim de evitar que a adoção imediata dos novos métodos e critérios contábeis gerasse impactos tributários. E, mesmo aceitando a premissa de que teria sido instituída uma verdadeira neutralidade tributária, restaria investigar os efeitos que decorreriam de seu fim, por força da Lei nº 12.973/14.

Em razão dessa evolução das normas contábeis, alguns autores, tais como Elidie Palma Bifano e Edmar Oliveira Andrade Filho, passaram a defender a existência de um Direito Contábil no Brasil, que consistiria no conjunto de normas jurídicas sobre o reconhecimento, a mensuração e a divulgação das demonstrações financeiras. Além disso, ao contrário das normas contábeis infralegais, o Direito Contábil visaria à continuidade da empresa e à proteção dos sujeitos que com ela se relacionassem. E falar em Direito Contábil seria justificável em virtude da base legal sobre demonstrações financeiras. Isso porque os arts. 1.179 a 1.195 do Código Civil tratam da escrituração, e os arts. 176 e 177 da Lei nº 6.404/76 tratam das demonstrações financeiras.[7]

Antes de partir para a abordagem da evolução das normas societárias e tributárias sobre demonstrações financeiras, é importante esclarecer algumas noções contábeis que serão úteis.

Em atenção ao primeiro esclarecimento contábil, conforme define o Pronunciamento Técnico CPC 01 (R1), depreciação, amortização e exaustão consistem na alocação sistemática de valor depreciável, amortizável e exaurível de ativos durante sua vida útil. Esses três processos importam na redução de valor de bens. A diferença reside na natureza do bem a que cada um se refere: a depreciação recai sobre bens corpóreos, por desgaste ou perda de utilidade mediante uso, ação da natureza ou obsolescência; a amortização recai sobre bens incorpóreos, em razão do término do prazo de vida útil do bem pelo decurso do tempo; e a exaustão refere-se a recursos naturais, em decorrência de extração mineral ou florestal.[8]

Na esteira da diferenciação da depreciação, amortização e exaustão com base na natureza dos bens, há diferentes normas infralegais aplicáveis. O Pronunciamento Técnico CPC 04 (R1), por conter o tratamento contábil dos ativos intangíveis, traz detalhes acerca da amortização. Já o Pronunciamento Técnico CPC 27, ao tratar de ativos imobilizados, trata com mais vagar sobre a depreciação. E o Pronunciamento Técnico CPC 34, caso tivesse sido editado, provavelmente versaria sobre a exaustão na exploração e a avaliação de recursos minerais.

Em geral, esses processos são contabilmente reconhecidos por meio de (i) débito de uma despesa ou de um custo e (ii) crédito de uma conta retificadora do ativo não circulante, assim denominada de depreciação acumulada, amortização acumulada ou exaustão acumulada. E os ganhos (ou perdas) decorrentes da liquidação de bens do ativo não circulante por meio de depreciação, amortização ou exaustão são contabilizados como receita (ou despesa) não operacional.[9]

Uma segunda noção contábil de fundamental importância para compreensão da matéria é o conceito de demonstrações financeiras. Para fins societários, as companhias são obrigadas a elaborar as seguintes demonstrações financeiras: (i) balanço patrimonial, (ii) demonstração dos lucros ou prejuízos acumulados, (iii) demonstração do resultado do exercício, (iv) demonstração dos fluxos de caixa, exceto se fechadas com PL inferior a R$ 2 milhões na data do balanço e (v) demonstração do valor adicionado, exceto se fechadas.[10] E, facultativamente, podem elaborar a demonstração das mutações do PL, em substituição à demonstração dos lucros e prejuízos acumulados.[11]

Ao seu turno, para fins tributários, independentemente do tipo societário, as pessoas jurídicas sujeitas à apuração do lucro real estão obrigadas a elaborar tão-somente (i) balanço patrimonial, (ii) demonstração dos lucros ou prejuízos acumulados e (iii) demonstração do resultado ao final de cada trimestre ou do ano.[12] Portanto, para fins fiscais, não haveria necessidade de elaboração de demonstração dos fluxos de caixa, nem de demonstração do valor adicionado.

Nessa esteira, as demonstrações financeiras fornecem dados objetivos para fundar a avaliação de uma empresa. No entanto, há um fator subjetivo nessa avaliação, que consiste na interpretação das informações contábeis e na escolha de uma técnica de avaliação. Por isso, uma terceira noção contábil a ser apreendida com o presente artigo é o FCD.

Para que um bem tenha valor, deve ser útil, escasso e oportuno. No caso, uma empresa apenas tem valor se for capaz de gerar riqueza aos seus proprietários. Para aferir este valor, é possível aplicar inúmeras técnicas, tais como múltiplos de fluxo de caixa, avaliação de ativos e passivos contábeis ajustados, FCD, entre outras. Dentre todas essas técnicas, o FCD é a mais utilizada. Isso porque, a despeito de sua limitação em considerar projetos com retorno acima do custo de capital, seria a que melhor revelaria a efetiva capacidade de geração de riqueza das empresas.[13]

A seguir, em face dessas considerações iniciais sobre a relação entre o Direito e a Contabilidade, será apresentada a evolução das legislações fiscal e societária sobre as demonstrações financeiras, com atenção aos impactos dessa evolução no tratamento do ágio (ou ganho por compra vantajosa).

3.     Evolução das Normas Fiscais e Societárias sobre Demonstrações Financeiras

Em princípio, por força do Código Comercial de 1850, os comerciantes eram obrigados a conservar demonstrações financeiras de acordo com a legislação comercial. Essas demonstrações apenas ficavam sujeitas a exibição se houvesse ordem judicial em favor dos interessados em (i) gestão de sucessão, comunhão ou sociedade, (ii) administração ou gestão mercantil por conta de outrem e (iii) quebra.[14] Como nenhuma autoridade poderia praticar ou ordenar diligência a fim de atestar a regularidade dessas demonstrações, elas eram consideradas sigilosas.

De modo parecido às demonstrações financeiras, a apuração do imposto sobre a renda era embrionária até o início do século 20. Isso porque, somente a partir da Lei nº 4.625/22, a renda global foi submetida ao imposto. Em síntese, foi instituído o imposto geral sobre o conjunto líquido dos rendimentos de qualquer origem, assim entendido o total de rendimentos auferidos de qualquer fonte, deduzido de impostos e taxas, juros, perdas extraordinárias e despesas ordinárias. E esse imposto seria devido anualmente, por pessoas físicas e jurídicas, residentes no Brasil.[15]

Além disso, somente com a Lei nº 4.783/23 é que a renda ficou sujeita a alíquotas progressivas de imposto, e os rendimentos passaram a ser discriminados dentre quatro categorias, quais sejam: (i) comércio e qualquer exploração comercial, inclusive agrícola, (ii) capitais e valores mobiliários, (iii) ordenados públicos e particulares, subsídios, emolumentos, gratificações, bonificações, pensões e remunerações sob qualquer título e forma contratual e (iv) exercício de profissões não comerciais em não compreendidas nas categorias anteriores.[16]

Com o advento do Decreto-lei nº 1.168/39, foi revogado o sigilo das demonstrações financeiras, tornando possível aos peritos e fiscais examiná-las, a fim de verificar a exatidão de suas declarações e de seus balanços.[17] A partir de então, a apuração do imposto sobre a renda das pessoas jurídicas passou a refletir, obrigatoriamente, as demonstrações financeiras na forma prevista na legislação comercial.

Pouco tempo depois, o Decreto-lei nº 2.627/40 passou a regular, em capítulo próprio, a forma de elaboração do balanço pelas companhias. Por isso, o legislador tributário poderia ter se valido dessa legislação societária como base para a apuração do imposto sobre a renda. No entanto, parece que o legislador tributário preferiu, ele próprio, regular as demonstrações financeiras a serem utilizadas para fins fiscais.

Assim, o Decreto-lei nº 5.844/43 estabelecia que o lucro real, base de cálculo do imposto sobre a renda, consistiria no lucro bruto após as deduções previstas na lei tributária.[18] No mesmo sentido, mais de 20 anos depois, a Lei nº 4.506/64 definia o lucro real como o lucro operacional, acrescido ou diminuído dos resultados líquidos de transações eventuais. E, para tanto, o lucro operacional seria a diferença entre (i) as receitas auferidas com a venda de bens e/ou a prestação de serviços e (ii) os custos, despesas operacionais, encargos, provisões e perdas, conforme previsto na legislação tributária.[19]

Em síntese, até meados do século 20, a apuração de imposto sobre a renda era desvinculada das demonstrações financeiras. Isso porque, de 1850 a 1939, as demonstrações financeiras eram sigilosas, o que geralmente impedia sua verificação pelas autoridades; e, até 1922, não havia sequer previsão da incidência de imposto sobre a renda. Por isso, apenas em 1943, depois da revogação do sigilo das demonstrações financeiras e da instituição do imposto sobre a renda, é que, obrigatoriamente, o imposto sobre a renda das pessoas jurídicas passou a refletir as demonstrações financeiras.

Infelizmente, essa evolução da legislação tributária sobre a apuração do imposto sobre a renda não foi acompanhada por uma crescente regulação das demonstrações financeiras pela legislação societária. A vigência do Decreto-lei nº 2.627/40 durante mais de três décadas, sem promover alteração significativa no tratamento das demonstrações financeiras, levou à crescente regulação dessa matéria pela legislação tributária.[20] Essa situação se mostrou prejudicial, por exemplo, aos interesses de credores, acionistas e outros investidores. Assim, quando a Lei nº 6.404/76 revogou parte do Decreto-lei nº 2.627/40, tratou de dissociar claramente as normas societárias e as normas tributárias relativas à elaboração de demonstrações financeiras.

Interessante comentar que a Lei nº 6.404/76 foi elaborada em um contexto de construção do mercado de capitais brasileiro, a fim de permitir a mobilização da poupança popular e acirrar a competitividade das empresas privadas nacionais. Não por outra razão, a Lei nº 6.404/76 foi precedida pela Lei nº 6.385/76, que disciplinou o funcionamento do mercado de capitais, estabelecendo a competência de órgãos como o CMN e a CVM. Por isso, a legislação societária sobre a elaboração de demonstrações financeiras passou a cumprir também o propósito de uniformização dos critérios contábeis utilizados internamente no Brasil, além da convergência com as práticas internacionais.[21]

Na medida em que a legislação societária finalmente promovia mudanças contábeis, a legislação tributária não ficou atrás. Por força do Decreto-lei nº 1.598/77, ficou definido que o lucro real seria o lucro líquido do exercício, ajustado pelas adições, exclusões e/ou compensações prescritas ou autorizadas pela legislação tributária.[22] Ademais, o lucro real seria determinado com base na escrituração que o contribuinte deveria manter, com observância das leis societárias e fiscais.[23] Portanto, o legislador tributário passou a normatizar as demonstrações financeiras, a despeito do disposto na legislação societária.

Além disso, o Decreto-lei nº 1.598/77 instituiu o Lalur. Nele, seriam lançados (i) os ajustes do lucro líquido do exercício, (ii) a demonstração do lucro real e (iii) as verbas que afetassem a apuração do lucro real em mais do que um exercício. Adiante, será exposto o funcionamento do Lalur com mais vagar.

Logo na entrada do século 21, a Lei nº 10.303/01 reafirmou o propósito de fortalecimento do mercado de capitais nacional, que já estava previsto desde a Lei nº 6.404/76 e a Lei nº 6.385/76. E, com a virada do século, dentro de pouco menos do que 15 anos, ocorreram importantes transformações nas legislações societárias e tributárias, que podem ser sintetizadas conforme segue:

(i)                 Lei nº 11.638/07: ampliou para todas as sociedades de grande porte a incidência das normas sobre elaboração e divulgação de demonstrações financeiras, previstas na Lei nº 6.404/76; facultou às pessoas jurídicas a escolha por uma dentre duas formas de elaboração das demonstrações financeiras; e criou a neutralidade tributária dos ajustes de convergência contábil.

(ii)               Lei nº 11.941/09 (conversão da Medida Provisória nº 449/08): instituiu o RTT; e tornou obrigatória a elaboração de demonstrações financeiras de acordo com a legislação societária, sujeitando-as a meros ajustes fiscais.

(iii)             Lei nº 12.973/14 (conversão da Medida Provisória nº 627/13): em 1º de janeiro de 2015, extinguirá o RTT e introduzirá importantes alterações na legislação tributária federal.[24]

Acerca dos três marcos legais do século 21 supracitados, cabem algumas observações. Primeiramente, apenas as sociedades anônimas ficavam sujeitas aos dispositivos da Lei nº 6.404/76 ao tempo de sua publicação.[25] Apenas recentemente é que as disposições sobre escrituração e elaboração de demonstrações financeiras, bem como a obrigatoriedade de auditoria independente por auditor registrado na CVM, tornaram-se aplicáveis também às sociedades de grande porte, inclusive às que não forem constituídas sob a forma de sociedades por ações. E sociedade de grande porte seria a sociedade ou conjunto de sociedade sob controle comum que, no exercício social anterior, tenha ativo total superior a R$ 240 milhões ou receita bruta anual superior a R$ 300 milhões.[26]

Em contraposição, é interessante notar que, o Decreto-lei nº 1.598/77 – marco normativo equivalente à Lei nº 6.404/76, só que para fins tributários – seria, desde o princípio, aplicável a todas as pessoas jurídicas domiciliadas no Brasil, inclusive firmas ou empresas individuais equiparadas a pessoas jurídicas.[27]

Uma segunda observação cabível é que a Lei nº 11.638/07 alterou o §2º do art. 177 da Lei nº 6.404/76. Originalmente, o §2º do art. 177 da Lei nº 6.404/76 previa que as companhias deveriam observar, em registros auxiliares, a legislação tributária para a elaboração de demonstrações financeiras. No entanto, a Lei nº 11.638/07 facultou a elaboração das demonstrações financeiras conforme (i) a legislação societária ajustada pela legislação tributária ou (ii) a legislação tributária ajustada pela legislação societária. De todo modo, os ajustes seriam realizados em livros auxiliares, sem modificar as demonstrações financeiras originais.

Na prática, a Lei nº 11.638/07 continuou prevendo a elaboração das demonstrações financeiras conforme a legislação societária, sujeitas aos ajustes previstos na legislação tributária, por meio do Lalur. A novidade ficou por conta da possibilidade de efetuar as demonstrações conforme a legislação tributária e de, posteriormente, adequá-las à legislação societária. Isso seria operacionalizado por meio do Laluc.

No entanto, antes mesmo que o Laluc fosse posto em prática, a Medida Provisória nº 449/08, posteriormente convertida na Lei nº 11.941/09, excluiu a possibilidade de elaboração de demonstrações financeiras conforme a legislação fiscal. Desde então, o art. 177, §2º da Lei n 6.404/76 passou a prever que a legislação tributária ou especial sobre determinada atividade, que prescrever ou incentivar a utilização de métodos ou critérios contáveis diferentes, deverá ser observada exclusivamente em livros ou registros auxiliares, sem que provoque mudanças nas demonstração financeiras elaboradas nos termos da legislação societária.

Uma terceira observação importante é que a Lei nº 11.638/07 incluiu o §7º no art. 177 da Lei nº 6.404/76. Nos termos desse dispositivo, quaisquer dos ajustes previstos para a elaboração das demonstrações financeiras não poderiam servir de base para a incidência do imposto sobre a renda. Isso porque a Lei nº 11.638/07 alteraria a legislação societária, mas não poderia alterar a legislação tributária. Portanto, não seriam admitidos efeitos tributários advindos das demonstrações financeiras que fossem realizadas na forma prevista pela legislação societária.

Contudo, este dispositivo foi revogado pela Medida Provisória nº 449/08, a partir do que a neutralidade fiscal dos novos métodos e critérios contábeis passou a ser prevista detalhadamente no art. 15 da Lei nº 11.941/09. Assim, o RTT foi instituído, de modo que (i) durante os anos-calendários de 2008 e 2009, foi optativo, (ii) desde 2010 tornou-se obrigatório e (iii) em 1º de janeiro de 2015 será revogado por força do art. 117, X e do art. 119 da Lei nº 12.973/14.

O RTT prevê ajustes tributários, a fim de neutralizar a adoção dos novos métodos e critérios contábeis, que foram introduzidos pela Lei nº 11.638/07 e pelos arts. 37 e 38 da Lei nº 11.941/09. Em outras palavras, com o RTT, a nova legislação societária sobre a elaboração de demonstrações financeiras não cria, nem extingue, nem modifica direitos.

Nesse sentido, o RTT neutraliza os efeitos tributários da elaboração das demonstrações financeiras segundo a legislação societária, tendo combatido a insegurança que pairou sobre a matéria desde a publicação da Lei nº 11.638/07 sem a devida adequação da legislação tributária. Isso porque o RTT permite que as pessoas jurídicas elaborem suas demonstrações financeiras segundo os métodos e critérios contábeis que constavam da legislação societária até 31 de dezembro de 2007. Portanto, na vigência do RTT, as pessoas jurídicas apuram seu lucro líquido como faziam antes do advento da Lei nº 11.638/07.

O exercício da opção pelo RTT foi detalhado pelo art. 15 da Lei nº 11.941/09. Uma vez que optasse pelo RTT, o contribuinte deveria fazê-lo de forma irretratável na DIPJ de 2009 e ficaria sujeito ao regime em 2008 e em 2009, a menos que suas atividades tivessem iniciado no ano-calendário de 2009, quando a opção seria manifestada na DIPJ 2010, também de forma irretratável. Ademais, caso a opção fosse feita depois que já houvesse apuração do lucro real de algum trimestre do ano-calendário de 2008, o contribuinte deveria compensar ou recolher a diferença entre o valor do imposto apurado e o valor do imposto devido à luz do RTT.

Essa evolução legislativa dos §§ 2º e 7º do art. 177 da Lei nº 6.404/76 foi motivada por inúmeras críticas às redações que lhes haviam sido dadas pela Lei nº 11.638/07.

Uma primeira crítica ao §2º do art. 177 da Lei nº 6.404/76 era que as demonstrações financeiras elaboradas conforme a legislação societária ficariam sujeitas a lançamentos de ajustes que poderiam gerar impactos tributários. Logicamente, eram grandes as chances de que a tributação fosse afetada, pois ela tomaria por base um valor apurado segundo parâmetros não recepcionados pela legislação tributária, e a adequação desse valor aos fins tributários seria por meio de ajustes. Por isso, neste ponto, para João Victor Guedes Santos, havia claro risco de comprometer a neutralidade tributária.

Além disso, na época em que foi facultada a elaboração das demonstrações financeiras conforme a legislação tributária, não havia clareza sobre se, na apuração do lucro real, o lucro líquido seria apurado de acordo com as regras da Lei nº 6.404/76 anteriores à Lei nº 11.638/07.

Ao dar nova redação ao art. 177, §2º da Lei nº 6.404/76, a Lei nº 11.941/09 eliminou uma das causas de controvérsias acerca da neutralidade tributária, qual seja: a possibilidade de elaborar as demonstrações financeiras de acordo com a legislação tributária e de, posteriormente, ajustá-la pelo Laluc. No entanto, este dispositivo permaneceu alvo de críticas, em razão da carência de regulamentação quanto aos ajustes tributários devidos. A partir de então, os ajustes tributários passaram a ser realizados por meio do Lalur, com o auxílio do Fcont.

Outra crítica, agora ao §7º do art. 177 da Lei nº 6.404/76, é que esse dispositivo havia se mostrado insuficiente na garantia da neutralidade tributária, até que a Lei nº 11.941/09 instituiu o RTT. É interessante que, durante a vigência do §7º do art. 177 da Lei nº 6.404/76, o Fisco chegou a decidir contrariamente à neutralidade fiscal. Por exemplo: as doações feitas pelo Poder Público, que até a Lei nº 11.638/07 não compunham o lucro real nos termos do art. 38, §2º do Decreto-lei nº 1.598/77, passaram a ser incluídas no lucro líquido para efeito de apuração do lucro real. Neste sentido, comparem-se as seguintes decisões contraditórias:

DOAÇÕES FEITAS PELO PODER PÚBLICO. CÔMPUTO NO LUCRO REAL. A partir de 1º de janeiro de 2008, as doações feitas pelo Poder Público obrigatoriamente serão registradas pelas pessoas jurídicas donatárias como receitas do período a que competirem, não havendo previsão legal para sua exclusão do lucro líquido para efeito de apuração do lucro real.[28]

SUBVENÇÕES PARA INVESTIMENTO E DOAÇÕES Não serão computadas na determinação do lucro real as subvenções para investimento e as doações feitas pelo Poder Público, desde que atendidas as condições da lei.[29]

Em resposta a este exemplo de incoerência sistêmica, o art. 18 da Lei nº 11.941/09 passou a prever, grosso modo, que as doações feitas pelo Poder Público seriam (i) reconhecidas na conta do resultado, (ii) excluídas do Lalur, (iii) mantidas em reserva de lucros, em quantia não superior ao lucro líquido do exercício e (iv) adicionadas ao Lalur quando não fossem destinadas à reserva de lucros. Assim, parece que também essa questão foi resolvida pela regulamentação da Lei nº 11.941/09, que supriu a fragilidade do art. 177, §7º da Lei nº 6.404/76 em garantir a neutralidade tributária.

Neste ponto, é interessante destacar o modo escolhido pelo legislador tributário para resguardar a neutralidade tributária. Isso porque, a princípio, ele poderia ter obrigado o contribuinte à elaboração das demonstrações financeiras de acordo com a antiga legislação societária, seguida pelos ajustes tributários cabíveis. Contudo, a escolha do legislador tributário foi outra.

O legislador tributário optou por exigir que as demonstrações financeiras fossem elaboradas de acordo com a nova legislação societária, mas permitiu que os tributos incidissem de acordo com a antiga legislação societária. Essa transição seria operacionalizada por meros lançamentos de ajuste. Com isso, não seria preciso manter duas demonstrações financeiras.[30]

Neste sentido, o art. 17 da Lei nº 11.941/09 previa como as pessoas jurídicas sujeitas ao RTT deveriam proceder, caso estivessem sujeitas à legislação tributária que conduzisse ou estimulasse a utilização dos novos métodos e critérios contábeis.

Em primeiro lugar, eram aplicadas as disposições da Lei nº 11.638/07, os arts. 37 e 38 da Lei nº 11.941/09 e as normas expedidas pela CVM, com base na competência conferida pelo art. 177, §3º da Lei nº 6.404/76. Na sequência, a pessoa jurídica deveria realizar ajustes específicos ao lucro líquido do período apurado no Lalur. Mediante esses ajustes, seria revertido o efeito da utilização de métodos e critérios contábeis diversos àqueles que haviam sido considerados pela legislação tributária. Por fim, deveriam ser realizados os ajustes de adição, exclusão e/ou compensação, previstos pela legislação tributária, por meio do Lalur.

A este respeito, o próprio art. 17, §1º da Lei nº 11.941/09 observou que ajustes temporários no imposto sobre a renda, realizados durante a vigência do RTT em decorrência de fatos ocorridos neste mesmo período, deveriam ser revertidos. Portanto, exclusões temporárias deveriam ser sucedidas por adições, e adições temporárias poderiam ser sucedidas por exclusões.

Interessante que, na dicção do art. 17, §2º da Lei nº 11.941/09, a pessoa jurídica sujeita ao RTT ficaria dispensada de realizar, em sua escrituração comercial, qualquer procedimento contábil determinado pela legislação tributária e que, de alguma forma, alterasse os saldos das contas patrimoniais ou do resultado. Note-se que o legislador tributário tratou de uma dispensa, o que poderia levar a crer que, não estando obrigado a tanto, o contribuinte estaria diante da faculdade de refletir em sua escrituração comercial qualquer procedimento contábil previsto na legislação tributária. Todavia, parece que esse não seria o melhor entendimento.

Neste contexto, o Lalur desempenha um papel importante ainda hoje, e desde que foi instituído pelo Decreto-lei nº 1.598/77. O Lalur é um livro de escrituração fiscal, que se destina à apuração extracontábil do lucro real a ser tributado pelo imposto sobre a renda, seja no presente período de apuração, seja nos períodos futuros. Todas as pessoas jurídicas contribuintes do imposto sobre a renda com base no lucro real estão obrigadas à escrituração do Lalur.[31]

Na prática, o Lalur é composto por folhas numeradas tipograficamente, isto é, sua numeração é feita de modo impresso, e não mecânico. Ademais, o Lalur é composto por duas partes com igual quantidade de folhas, reunidas em um só volume encadernado, a saber:[32]

(i)            Na Parte A, são lançadas as adições, exclusões e compensações a fim de ajustar o lucro líquido. Para tanto, são indicados o livro, a data e a conta/subconta em que os valores ajustados foram registrados na escrituração societária. A escrituração é feita em ordem cronológica, folha depois de folha, sem intervalos nem entrelinhas. Ao final, a demonstração do lucro real é transcrita, sendo aposta a assinatura do responsável pela pessoa jurídica e do contabilista legalmente habilitado.

(ii)          Na Parte B, são controlados os valores que possam influenciar a determinação do lucro real de períodos futuros. Por exemplo: devem ser adicionadas as receitas de deságios de investimentos avaliados pelo MEP, diferidos até a realização desses investimentos; devem ser excluídas as despesas de ágios amortizados de investimentos avaliados por equivalência patrimonial, diferidos até a realização desses investimentos; e devem ser compensados prejuízos fiscais. Para a escrituração, deve ser utilizada uma folha para cada conta ou fato que requeira controle individualizado.

Os lançamentos no Lalur são feitos de diferentes modos, conforme o regime escolhido pela pessoa jurídica para apurar seu lucro. Assim, no regime do lucro real trimestral, as Partes A e B do Lalur podem ser feitas durante ou ao final do semestre. E, no regime do lucro real anual, havendo o levantamento de balanços ou balancetes de suspensão ou redução do imposto sobre a renda, os ajustes devem ser discriminados na Parte A durante o período e, ao final do exercício, devem ser feitos dos lançamentos na Parte B.

Em termos de formalidade, o Lalur não precisa ser registrado em nenhum órgão ou repartição. Ademais, o Lalur não precisa ser entregue junto com a DIPJ. E, nos termos do art. 18 da Lei nº 8.218/91, reproduzido nos arts. 255 e 263 do Decreto nº 3.000/99, o Lalur pode ser escriturado por um sistema de processamento eletrônico de dados. A este respeito, cabe apresentar o Sped.

O Sped, instituído pelo Decreto nº 6.022/07 no âmbito do PAC, se presta a informatizar a recepção, validação, armazenamento e autenticação, pelo Fisco, de livros e documentos que integram a escrituração contábil e fiscal dos empresários e das pessoas jurídicas. Para tanto, nos termos do art. 37, XXII da Constituição Federal, o Sped possibilita que as administrações tributárias da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios atuem de forma integrada, compartilhando cadastros e informações fiscais.

O Sped auxilia no cumprimento das obrigações acessórias e na identificação de ilícitos tributários, atendendo aos interesses dos contribuintes e do Fisco. Seu universo de atuação é bastante amplo. Por isso, em atenção aos fins desta monografia, serão abordadas apenas a EFD, a ECF, a ECD e o Fcont.

Primeiramente, é preciso esclarecer que o e-Lalur era uma parte do Sped, que havia sido instituída pela Instrução Normativa RFB nº 989/09. No entanto, essa regulamentação foi revogada pela Instrução Normativa RFB nº 1.353/13, que tratava sobre a EFD. E esta, por sua vez, foi revogada pela Instrução Normativa RFB nº 1.422/13, que atualmente dispõe sobre ECF. 

Nos termos da Instrução Normativa RFB nº 1.422/13, todas as pessoas jurídicas deverão apresentar a ECF, de forma centralizada pela matriz. A ECF substituirá o Lalur e a DIPJ, devendo ser entregue, por meio do Sped, até o último dia útil de julho de cada ano-calendário a partir do ano-calendário de 2014.

Outra parte do Sped é a ECD, que foi instituída pela Instrução Normativa RFB nº 787/07 e, atualmente, é regulada pela Instrução Normativa RFB nº 1.420/13. Em suma, a ECD consiste na versão digital dos livros (i) Diário, (ii) Razão e (iii) Balancetes Diários, Balanços e fichas de lançamento comprobatórias dos assentamentos neles transcritos.

Por fim, outra parte relevante do Sped é o Fcont. Instituído pela Instrução Normativa RFB nº 949/09, o Fcont deve apontar, na forma de ajustes, as diferenças entre as demonstrações financeiras elaboradas de acordo com a antiga e a nova legislação societária. Isso porque essas diferenças não podem levar à majoração da carga tributária devida. Apenas as pessoas jurídicas sujeitas ao lucro real estariam obrigadas a apresentar o Fcont, que coexistiria com a escrituração societária.

Neste ponto, cabem algumas observações. A digitalização das demonstrações financeiras para fins fiscais visa à redução tanto dos custos para o cumprimento de obrigações acessórias quanto de fraudes. Por um lado, o Fisco pode acompanhar a geração das informações eletrônicas, o que facilita a identificação de erros e fraudes. Por outro lado, as pessoas jurídicas são levadas a investir em tecnologia da informação, minimizando as chances de descumprir prazos, layouts ou de padrões mínimos de qualidade da informação. Por isso, parece que a digitalização das informações tem potencial de otimização fiscal, mas depende do empenho do Fisco e dos contribuintes.[33]

A seguir, em vista dessas considerações, será apresentada a razão provável para o atual estágio de evolução das legislações fiscal e societária sobre demonstrações financeiras, qual seja: a convergência contábil ao IFRS.

3.1. Convergência contábil ao IFRS

A convergência ao padrão contábil internacional é um processo moderno de identificação das demonstrações financeiras à real situação patrimonial das empresas, visando a facilitar o fluxo de investimentos em todo o mundo.

No contexto internacional, o IASB emite normas, tais como os IFRS e os IAS, sujeitas à interpretação pelo International Financial Reporting Interpretations Committee e o Standard Interpretations Committee.

Esses pronunciamentos da IASB têm sido adotados pouco a pouco em todo o mundo. Por exemplo: na União Europeia, as empresas individuais usualmente preparavam suas demonstrações financeiras individuais conforme as normas contábeis locais, isto é, os respectivos GAAP. E, por costume, apenas as demonstrações financeiras consolidadas eram realizadas conforme o IFRS.

Diferentemente, desde 2002, a tendência é a total sujeição das demonstrações financeiras das empresas individuais ao IFRS, a exemplo do que já ocorre com as empresas listadas em bolsa.[34]

Caso essa tendência se confirme, todas as demonstrações contábeis ficarão sujeitas aos mesmos ajustes para a determinação do lucro tributável, o que poderia gerar vantagens e desvantagens. Por um lado, isso reduziria os custos de aderência às normas tributárias, pois as empresas individuais não precisariam converter suas demonstrações financeiras do padrão GAAP para o IFRS. Por outro lado, isso poderia gerar distorções fiscais, fazendo com que empresas que apresentassem prejuízo no padrão GAAP apresentassem lucro pelo IFRS.[35]

No Brasil, o CFC foi criado por meio do Decreto-lei nº 9.295/46, de modo que sua estrutura, organização e funcionamento estão estabelecidos na Resolução CFC nº 1.370/11. Em síntese, o CFC é formado por 27 conselheiros efetivos, sendo que cada um é representante de um estado, incluindo o Distrito Federal. Por meio dos Conselhos Regionais de Contabilidade, o CFC orienta, normatiza e fiscaliza o exercício da profissão contábil.

Também neste contexto, o CPC, criado pela Resolução CFC nº 1.055/05, promove a convergência da contabilidade brasileira aos padrões internacionais. Com isso, o CPC busca auxiliar a redução dos riscos em investimentos internacionais, assim entendidos como os empréstimos financeiros, as participações societárias e o crédito de natureza comercial.[36]

Tendo em vista a divulgação de princípios, normas e padrões de contabilidade e de auditoria,[37] o CPC emite Pronunciamentos Técnicos, Orientações e Interpretações. Apenas a título de esclarecimento, os Pronunciamentos Técnicos estabelecem conceitos doutrinários, estruturas técnicas e procedimentos; as Interpretações esclarecem os Pronunciamentos Técnicos; e as Orientações prestam esclarecimentos transitórios sobre os Pronunciamentos Técnicos e as Interpretações.[38]

Para tanto, o CPC é composto por, no mínimo, seis entidades, quais sejam: Associação Brasileira das Companhias Abertas – ABRASCA, Associação dos Analistas e Profissionais de Investimento do Mercado de Capitais – APIMEC NACIONAL, Bolsa de Valores, Mercadorias e Futuros – BM&F BOVESPA S.A., Conselho Federal de Contabilidade – CFC, Instituto dos Auditores Independentes do Brasil – IBRACON e Fundação Instituto de Pesquisas Contábeis, Atuariais e Financeiras – FIPECAFI.[39] E, das reuniões do CPC podem participar até dois representantes de cada uma das seguintes entidades: Comissão de Valores Mobiliários – CVM, Banco Central do Brasil – BACEN, Superintendência dos Seguros Privados – SUSEP, Secretaria da Receita Federal do Brasil – RFB, Federação Brasileira dos Bancos – FEBRABAN e Confederação Nacional das Indústrias – CNI.[40]

Em face do exposto, parece que a composição do CPC explica por que a Contabilidade desenvolveu-se conforme os interesses dos empresários e dos órgãos reguladores, e não necessariamente em atenção aos interesses da Receita Federal.[41] Neste sentido, embora sejam admitidos nas deliberações do CPC, os representantes da Receita Federal teriam importância mitigada na composição do órgão e, por conseguinte, na tarefa de definir a contabilidade a ser adotada pelas empresas.

Além disso, parece que os produtos elaborados pelo CPC também permitiriam concluir pela maior afinidade desse órgão aos propósitos comerciais. Assim, o Pronunciamento Técnico CPC 00 (R1) dispõe que as informações contidas nos relatórios contábeis e financeiros destinam-se a investidores, financiadores e outros credores externos. Logo, esse instrumento não é feito para atender precipuamente os interesses do Fisco.

Ademais, segundo este mesmo Pronunciamento Técnico CPC 00 (R1), governos, órgãos reguladores e autoridades tributárias podem estipular exigências específicas, de acordo com seus interesses, desde que não afetem as elaborações contábeis. Isso porque, a princípio, as demonstrações contábeis seriam utilizadas por usuários em geral, para a tomada de decisões econômicas, ou seja, para decidir quando comprar ou vender instrumentos patrimoniais e para avaliar a administração da entidade.

4.     Conclusão

Foi visto que, em princípio, o Direito Comercial teria sido o responsável pela instrumentalização da Contabilidade. Isso porque a legislação comercial teria normatizado a elaboração das demonstrações financeiras antes de qualquer legislação tributária.[42] Contudo, algum tempo depois, também o Direito Tributário teria instrumentalizado a Contabilidade, regulando, ele próprio e para os seus fins, o registro dos fenômenos contábeis, que é útil para a elaboração das demonstrações financeiras.[43]

Essa relação entre o Direito e a Contabilidade teria sofrido uma reviravolta a partir da Lei nº 11.638/07. Desde então, para os fins societários, as demonstrações financeiras seriam elaboradas segundo a legislação societária e os métodos e critérios contábeis internacionais; e, para os fins fiscais, as demonstrações financeiras seriam baseadas nos métodos e critérios contábeis vigentes em 31 de dezembro de 2007, conforme livros ou registros auxiliares. Portanto, a Lei nº 11.638/07 teria garantido a independência da Contabilidade em relação ao Direito Tributário, posteriormente confirmada pela instituição do RTT.

Ademais, vimos que a convergência ao IFRS, isto é, ao padrão contábil internacional, é um processo moderno de identificação das demonstrações financeiras a real situação patrimonial das empresas, visando a facilitar o fluxo de investimentos em todo o mundo.

5.     Referências Bibliográficas

BIFANO, Elidie Palma. Novos aspectos do Direito Contábil: Lei nº 11.638/2007, suas alterações e variações sobre a interpretação da norma contábil. In: ROCHA, Sérgio André (Coord.). Direito Tributário, Societário e a Reforma da Lei das S/A. São Paulo: Quartier Latin, 2012, vol. III.

FERNANDES, Edison Carlos. Direito Contábil (Fundamentos, conceito, fontes e relação com outros “ramos” jurídicos). São Paulo: Dialética, 2013.

FERNANDES, Edison Carlos; NETO, Arthur Ridolfo. Contabilidade Aplicada ao Direito. São Paulo: Saraiva, 2014.

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MIRANDA, Gilberto José; REIS, Ernando Antonio dos; LEMES, Sirlei. Valor de Empresas: uma abordagem do fluxo de caixa descontado. Disponível em: <http://web.face.ufmg.br/face/revista/index.php/contabilidadevistaerevista/article/view/305>. Acesso em 05/05/2015.

SANTOS, João Victor Guedes. Direito Tributário e Justaposição: a Contabilidade Societária e os Limites à Neutralidade Fiscal. In: MOSQUERA, Roberto Quiroga; LOPES, Alexsandro Broedel (Coord.). Controvérsias Jurídico-Contábeis (Aproximações e Distanciamentos). São Paulo: Dialética, 2010.

SCHOUERI, Luís Eduardo; TERSI, Vinicius Feliciano. As Inter-relações entre a Contabilidade e o Direito: atender ao RTT significa obter Neutralidade Tributária? In: MOSQUERA, Roberto Quiroga; LOPES, Alexsandro Broedel. Controvérsias jurídico-contábeis (Aproximações e Distanciamentos). São Paulo: Dialética, 2º vol., 2011.



[1] FERNANDES, Edison Carlos. Direito Contábil (Fundamentos, conceito, fontes e relação com outros “ramos” jurídicos). São Paulo: Dialética, 2013, p. 85.

[2] SCHOUERI, Luís Eduardo; TERSI, Vinicius Feliciano. As Inter-relações entre a Contabilidade e o Direito: atender ao RTT significa obter Neutralidade Tributária? In: MOSQUERA, Roberto Quiroga; LOPES, Alexsandro Broedel. Controvérsias jurídico-contábeis (Aproximações e Distanciamentos). São Paulo: Dialética, 2º vol., 2011, p. 108.

[3] Código Tributário Nacional, Art. 109.

[4] Pronunciamento Conceitual Básico (R1), item OB4.

[5] FERNANDES, Edison Carlos; NETO, Arthur Ridolfo. Contabilidade Aplicada ao Direito. São Paulo: Saraiva, 2014, p. 38.

[6] McMANUS, Kieran. O futuro do FCONT. In: ROCHA, Sérgio André (Coord.). Direito Tributário, Societário e a Reforma da Lei das S/A. São Paulo: Quartier Latin, 2012, vol. III, p. 415.

[7] FERNANDES, Edison Carlos. Direito Contábil (Fundamentos, conceito, fontes e relação com outros “ramos” jurídicos). São Paulo: Dialética, 2013, p. 90.

[10] Lei nº 6.404/76, Art. 176.

[11] Lei nº 6.404/76, Art. 186, §2º.

[12] Decreto nº 3.000/99, Art. 274. 

[13] MIRANDA, Gilberto José; REIS, Ernando Antonio dos; LEMES, Sirlei. Valor de Empresas: uma abordagem do fluxo de caixa descontado. Disponível em: < http://web.face.ufmg.br/face/revista/index.php/contabilidadevistaerevista/article/view/305>. Acesso em 05/05/2015.

[14] Lei nº 556/1850, Arts. 10, 17 -20. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l0556-1850.htm>. Acesso em 08/05/2015.

[15] Lei nº 4.625/22, Art. 31. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/1901-1929/L4625.htm>. Acesso em 08/05/2015.

[17] Decreto-lei nº 1.168/39, Art. 14. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/1937-1946/Del1168.htm>. Acesso em Acesso em 05/05/2015.

[18] Decreto-lei nº 5.844/43, Arts. 37. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/Del5844.htm>. Acesso em 08/05/2015.

[19] Lei nº 4.506/64, Arts. 35; 37, §2º e 43. Disponível em: < http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L4506.htm>. Acesso em 08/05/2015.

[20] Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/del2627.htm>. Acesso em 08/05/2015.

[21] SANTOS, João Victor Guedes. Direito Tributário e Justaposição: a Contabilidade Societária e os Limites à Neutralidade Fiscal. In: MOSQUERA, Roberto Quiroga; LOPES, Alexsandro Broedel (Coord.). Controvérsias Jurídico-Contábeis (Aproximações e Distanciamentos). São Paulo: Dialética, 2010, p. 188.

[22] Decreto-lei nº 1.598/77, Art. 6º. Disponível em: < http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/del1598.htm>. Acesso em 08/05/2015.

[23] Decreto-lei nº 1.598/77, Art. 7º.

[24] Lei nº 12.973/14, Art. 119, caput.

[25] Lei nº 6.404/76, Art. 4º. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l6404consol.htm>. Acesso em 12/05/2015.

[26] Lei nº 11.638/07, Art. 3º.

[27] Decreto-lei nº 1.598/77, Art. 1º.

[28] Solução de Consulta RFB nº 75/08 (Disit 10).

[29] Soluções de Consulta RFB nº 227/06 (Disit 06); Solução de Consulta RFB nº 24/05 (Disit 07); Solução de Consulta RFB nº 261/04 (Disit 06).

[30] SANTOS, João Victor Guedes. Direito Tributário e Justaposição: a Contabilidade Societária e os Limites à Neutralidade Fiscal. In: MOSQUERA, Roberto Quiroga; LOPES, Alexsandro Broedel (Coord.). Controvérsias Jurídico-Contábeis (Aproximações e Distanciamentos). São Paulo: Dialética, 2010, p. 202.

[34] McMANUS, Kieran. O futuro do FCONT. In: ROCHA, Sérgio André (Coord.). Direito Tributário, Societário e a Reforma da Lei das S/A. São Paulo: Quartier Latin, 2012, vol. III, p. 412.

[35] Disponível em: <http://www.contabilidade-financeira.com/2010/05/ifrs.html>. Acesso em 10/05/2015.

[36] Resolução CFC nº 1.055/05, Considerando.

[37] Lei nº 6.385/76, Art. 10-A, caput.

[38] Regimento Interno do CPC, Arts. 14-16.

[39] Resolução CFC nº 1.055/05, Art. 2º.

[40] Regimento Interno do CPC, Art. 9º.

[41] BIFANO, Elidie Palma. Novos aspectos do Direito Contábil: Lei nº 11.638/2007, suas alterações e variações sobre a interpretação da norma contábil. In: ROCHA, Sérgio André (Coord.). Direito Tributário, Societário e a Reforma da Lei das S/A. São Paulo: Quartier Latin, 2012, vol. III, p. 158.

[42] Código Comercial de 1850; Decreto-lei nº 2.627/40; Lei nº 6.404/76.

[43] Decreto-lei nº 5.844/43; Decreto-lei nº 4.506/64; Decreto-lei nº 1.598/77.