EM MEMÓRIA DE LUANA

Caminhava lentamente pelas ruas do centro do Rio, absorto em meus pensamentos, contemplando as mudanças que se fizeram durante minha ausência, enquanto desfilavam por minha memória as lembranças dos longos anos que outrora ali havia vivido. Era outono. A cidade maravilhosa encontrava-se coberta pelo manto triste de uma tarde cinza, sem sol.
Subitamente, encontrei-me frente a uma praça, entre outras, no passado tão familiar para mim. A primeira coisa que meus olhos viram, e que chamou fortemente a atenção, foi o velho banco onde costumava sentar-me quando por ali passava seguidamente. Embora já bastante velho e carcomido pelo tempo, ainda se conservava bastante forte para continuar acolhendo seus amigos, estranhos de passagem que, depois de breves momentos ali sentados, seguiam seus caminhos.
Eu havia sido um deles.
Os bancos das velhas praças e parques, em qualquer cidade do mundo, são sempre os confidentes mudos dos personagens solitários que por ali passam. Embalado pelo magnetismo do lugar naquela hora ao cair da tarde nos trópicos, fiquei em silêncio, enquanto recordações que julgava já esquecidas chegavam como ondas que se batem na areia da praia, vindas dos mais profundos labirintos do túnel do tempo.
Foi em outro outono, no passado.
Sentado ali, naquele mesmo banco, com os olhos semicerrados, meditava sobre a vida e amargava lembranças da terra natal então distante. Um leve ruído ao redor me fez sair de minhas divagações.
Frente a mim, uma menina, que depois soube ter apenas dez anos.
Pés descalços e sujos pelo andar, vestido encardido e de cor já indefinida, cabelos desgrenhados, rosto lambuzado e um angelical sorriso nos lábios... Essa foi minha primeira visão de Luana.
Sem pronunciar palavra, sentou-se no banco ao meu lado, observando-me com naturalidade. Pouca coisa pude saber sobre ela naquele dia, pois logo que começamos a conversar, sua atenção voltou-se para o chamado de outros meninos e meninas que ao longe acenavam.
Voltei a encontrar Luana alguns dias depois, e mais duas ou três vezes durante minhas passagens por aquele lugar onde ela sempre estava, em companhia de outros meninos, todos mais ou menos da mesma idade e nas mesmas condições ultrajantes desses deserdados da sorte. Nesse momento pensava nos destinos desses seres esquecidos da vida e recordava as palavras de JAMES FOE, quando um dia disse:
"Meu filho, lute contra a miséria, lute contra ela a vida inteira". A miséria vai muito além das necessidades básicas de sobrevivência. Ela nos atinge também quando somos humilhados e desrespeitados em nossos mais profundos valores e sentimentos de dignidade e amor próprio.
Fique sempre com aquela necessidade de saber mais sobre sua vida e as causas que a haviam jogado já tão cedo nos braços de um destino tão cruel.
Porém, nunca mais tornei a ver Luana.
Pouco tempo depois, tive que partir, mas sua lembrança ficou guardada no fundo de minha memória. Alguns anos depois, em uma de minhas passagens pelo Rio, encontrei naquela mesma praça um de seus amigos já então adolescente, trabalhando em um bar ali perto. Foi por ele que fiquei sabendo do destino de Luana. Foi um relato cruel demais, motivo pelo que, em respeito à sua memória, deixo aqui de transcrever algumas passagens.
Ao lembrar-me, penso nas injustiças sociais ora existentes em nosso país e vejo que o sentimento tornou-se a nossa mais preciosa dimensão perdida. Tornamo-nos insensíveis ao sofrimento de nossos semelhantes. Estamos na época do culto ao individualismo. Segundo TCHECOV, "Há muitas maneiras de ver as coisas neste mundo: metade delas, no entanto, representa o julgamento das pessoas que nunca enfrentaram qualquer infelicidade." Para os abomináveis monstros responsáveis pela miséria e a desgraça de nosso povo de nada adianta lembrar-lhes que "O contexto social influencia o comportamento do indivíduo não somente através das expectativas daqueles que o cercam, mas também através da atuação dos modelos que ele é levado a imitar."
Só vou contar o final desta história.
Luana dormia dentro de uma caixa de cartão forrada com papéis de jornal, a qual todas as noites colocava na calçada, junto ao bar de um português, que fechava suas portas sempre durante a madrugada.
Um dos incontáveis débeis mentais e criminosos do volante que existem soltos pelas ruas de nosso país, dirigindo em alta velocidade, subiu por cima da calçada e levou Luana... para o outro lado da vida.
Quem sabe naquele momento ela talvez sonhava ...
Sonhava com coisas que nunca teve. Com as bonecas com as quais nunca pode brincar, e que contemplava com os olhos vidrados nas vitrines das lojas. Com uma casa que nunca teve. Uma família que não conheceu. Com uns sapatos que nunca calçou e, principalmente, com o carinho e o amor que nunca recebeu.
Foi talvez embalada por esses sonhos que Luana se foi ...
Sua passagem por esta vida foi tão breve, mas o suficiente para que, através de pequenas coisas, como a pureza do seu sorriso, marcasse sua presença neste mundo. Muitos passam pela vida sem deixar vestígios. Outros, apesar dos poucos anos que viveram, estão sempre presentes, e não correm o risco de se tornarem para os que os conheceram, apenas pálida lembrança que com o passar do tempo vai se tornando uma imagem perdida por entre as névoas brumosas do passado.
Pensando hoje em tudo isso, recordo de umas palavras que há muito li e um livro e que nunca esqueci: "O mais importante não é o tempo que passamos nesta vida, mas sim o quanto representamos a cada uma das pessoas que passam por nossa vida. E o que ficou na memória de cada um de nós, ficou para a eternidade."
Depois disso eu vi você, Luana, nas areias quentes de Ipanema, no espelho das águas da Guanabara, nas alturas do Corcovado, nas tardes tristonhas de Botafogo. E vi você principalmente, em todos os rostos das meninas e meninos perdidos e abandonados que encontrei pelas ruas da cidade tristemente maravilhosa.

Geraldo Mastella ? Escritor Santanense