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Direito, Literatura e Psicanálise: Antígona – a voz das minorias contra o poder do Estado

Márcia Belzareno dos Santos

 A sociedade é especialista em inverter a lógica aritmética das ciências exatas. A maioria do povo torna-se minoria, no que concerne aos poderes de deliberação; enquanto uma ínfima parte da população monopoliza as vontades, e poucos decidem em nome de muitos.


Assim, surgem as chamadas minorias que, embora não sejam em tão pequeno número para a denominação que recebem, como acontece com as mulheres e os negros, por exemplo; necessitam lutar de corpo e alma para conquistar pequenos direitos que a dita “maioria”, nem tão numerosa assim, via de regra, já usufrui há algum tempo.

 

Na Literatura, temos vários exemplos de luta das minorias contra o poder estabelecido de um Estado injusto e tendencioso. Mulheres destemidas, que na luta pela defesa de sua dignidade e da dignidade de sua família, não temem o enfrentamento, aparecem em diferentes obras literárias e, entre elas, temos a emblemática figura de Antígona.

 

Acompanhando o questionamento de Donaldo Schüler, ao fazer a apresentação de uma das infinitas edições de Antígona, nos perguntaríamos, de onde alguém convocaria forças para derrubar um tirano, quando cidadãos tidos como respeitáveis simplesmente se calam? Pois Antígona o fez, sozinha, sem exércitos e sem partidários.


Antígona é a protagonista da peça teatral de mesmo nome, escrita por Sófocles. Em nome da dignidade de sua família, Antígona enfrenta o rei e o próprio poder do Estado, para obter o direito de realizar o funeral de seu irmão, evitando que seus restos mortais fiquem expostos ao tempo, sem o devido sepultamento.

 

A peça trata, simbolicamente, da revolta de uma minoria, aqui representada por uma mulher, contra o poder do Estado, representado pelo rei Creonte.

 

A história tem início com a morte dos dois irmãos de Antígona – Eteocles e Polinices – filhos de Édipo; e com a decisão do rei Creonte de não permitir o funeral de Polinices. A partir dessa decisão unilateral do Estado, na figura do rei, o impasse é estabelecido e se identifica com toda a tradição cultural do mundo ocidental, em relação aos conceitos de justo e de injusto. Firma-se aí o embate entre a vontade de um tirano e a necessidade de observância das normas divinas, alegadas por Antígona, e que vão muito além do Direito Positivo.


Antígona é o oposto, o contrário de sua irmã, Ismênia, que se abstém de lutar, alegando ser uma simples mulher e, portanto, sem forças para enfrentar o Governo:

Agora, restamos só nós duas; vê

que morte miserável teremos, se à força da lei

e à decisão soberana do tirano nos opusermos.

Põe na cabeça isso, mulheres

somos, não podemos lutar com homens.

Há mais, somos dirigidas por mais fortes,

temos que obedecer a estas leis e a leis ainda mais duras.

De minha parte, rogo aos que estão debaixo da terra

que tenham piedade de mim, sou forçada a isso,

obedecerei a quem está no poder; fazer

mais que isso não tem nenhum sentido.

 

Assim, a protagonista, mesmo em meio a uma sociedade em que a vida pública era de exclusiva competência masculina, não mede esforços, palavras e atitudes para enfrentar o rei e defender o direito do irmão, já morto:

Quem é ele para separar-me dos meus?

 

Antígona transforma-se, dessa forma, em um dos maiores exemplos, na Literatura, da luta da mulher em defesa não só dos direitos da própria mulher, de ter voz e vez; mas, sobretudo, da luta em defesa dos direitos humanos e individuais, ainda que estejam em contraposição aos direitos do Estado, como é o caso, na imortal peça teatral de Sófocles.

 

Em última análise, poderíamos dizer que a protagonista é a voz, a resistência de um grupo contra os desmandos de um tirano. E, infelizmente, essa história é muito atual, e vem sendo repetida, ao longo da história da humanidade; a esse respeito, acabamos de viver algo semelhante, nas décadas de 1960 e 1970, dois mil e quatrocentos anos depois da escritura da peça, quando as ditaduras do Chile, Portugal, Itália, Brasil, entre outras, massacravam o mundo, com suas regras repugnantes e insanas. O próprio discurso do Presidente dos EUA, em 1991, George W. Bush, na pretensa maior democracia do mundo, sobre a Nova Ordem Mundial, repete, em outras palavras, o pensamento do rei Creonte, quando diz que somente os Estados Unidos teriam posição moral para editá-la e condições suficientes para respaldar essa nova ordem. Creonte também se sente assim, ou seja, o único que pode decidir os destinos de uma nação e de seus cidadãos.

 

É assim que, enquanto sua irmã aparece como medrosa e omissa, faz-se interessante observar que Antígona, na condição de praticamente única sobrevivente da família, sente-se na obrigação de providenciar o funeral do irmão, na busca de conservar a dignidade, e mesmo a identidade, dos seus.

 

Na história, Antígona questiona a legitimidade do poder do rei para decidir sobre um aspecto essencialmente familiar e humano, que é a morte. Teria a autoridade constituída direito de decidir sobre questão de foro tão íntimo, como o destino do corpo de um familiar morto, por exemplo? Tua lei mortal, diz ela a Creonte, afirmando que somente as leis dos deuses podem decidir sobre a morte e sobre um morto; inaugurando, aí, o conflito ocidental entre o direito positivo e o direito natural.

 

Dessa forma, as questões suscitadas por Antígona são essenciais para a convivência humana e para a compreensão do fenômeno jurídico do mundo contemporâneo, que debate justamente sobre conceitos de justo e de injusto, e dos direitos individuais, muitas vezes em conflito com os direitos do Estado. Aristóteles, em sua Retórica, já questionava o papel do Direito Natural frente aos ditames do Direito do soberano.

 

Por outro lado, não podemos nos esquecer de que Antígona é fruto de um Mito de constituição de uma cidade, surgida a partir de uma relação incestuosa entre mãe e filho, no caso Jocasta e Édipo; e o incesto também é condenado pelo mundo cristão e ocidental, que, então, recém se constituía. Dessa forma, devemos considerar também que, na peça, a família de Antígona, embora de tradição na cidade, é concebida com uma mácula, eis que calcada em uma relação incestuosa, supostamente responsável por todas as tragédias que se abatem sobre essa família. Talvez simbolicamente Sófocles tenha nos mostrado o fato de estar intrínseca, para o povo e para o governo, a culpa de Antígona por defender o sangue e a honra de uma família, já profanada pelas relações incestuosas; e, justamente nesse ponto, residisse a legitimidade de sua condenação, tão impiedosamente aplicada pelo rei.

 

Assim, a história apresenta diversos conflitos entre a lei pública e o amor parental, entre o pensamento do velho e a atitude do jovem, entre o poder de um homem e a resignação de outros ou, nesse caso, a rebeldia de uma mulher.

 Do ponto de vista jurídico, a história é rica, visto que, além de inaugurar os questionamentos sobre os conflitos entre direito natural e direito positivo, institui também a figura da desobediência civil, protagonizada por Antígona, contra algo de razoabilidade absurda, como foi a proibição, por parte do rei, de Antígona sepultar o próprio irmão. Podemos dizer que toda a rebeldia e desobediência de Antígona, nada mais é que a representação fática do instituto jurídico, hoje chamado da objeção de consciência.

 

Aqui, encontramos a mão e a mente também da Psicanálise, quando tentamos examinar a questão da família e dos laços que prendem um integrante ao outro, sobretudo quando esse grupo ou é provindo de relações “nebulosas e condenáveis”, ou passa a nutrir sentimentos ambíguos de um para com o outro, como acontece com toda a família de Antígona, no decorrer de suas histórias e tragédias.

 

Freud já dizia, e repetia, em relação a sua própria obra, que não importava tudo que ele mesmo dissesse, pois algum escritor já teria dito a mesma coisa muito antes dele. Sabe-se que, quando Freud se referia a esses escritores, várias das vezes estava se referindo justamente a Sófocles. Nesse sentido, Freud não poupava palavras para declarar seu tributo à Literatura, especialmente às tragédias gregas.

 

E, sem dúvida, a Literatura e a Psicanálise se completam, no sentido de que ambas perscrutam a alma do ser humano, examinando-a através de sua linguagem. E a força dessa peça está na sua linguagem poética e, ao mesmo tempo ambígua, com a qual Sófocles traz, então, para a sociedade da época, a ideia de que se a lei é absolutamente injusta, ela não deve ser cumprida; pensamento esse que chegou até nossos dias com os debates sobre o jusnaturalismo.

 

Entre tantos outros questionamentos que teríamos a desenvolver, pois as tragédias são obras abertas em inúmeros aspectos, fica-nos a dúvida se Creonte, como boa parte dos governantes até os dias de hoje, foi levado a mudar de opinião, pelos conselhos e advertências de Tirésias, o “vidente” e conselheiro da época, ou por seu egocentrismo, ao constatar a tragédia que se abateu sobre sua família, vítima de sua própria prepotência.

 

Para finalizar, cabe assinalar que, em Antígona, vê-se sinais claros do abalo do da autoridade política frente às forças divinas e da natureza, pois sabe-se que, em dado momento da narrativa, o próprio Tirésiasdiz para Creonte que ele não consegue mais ler os desígnios na fumaça do sacrifício dos animais, pois suas carnes queimadas não propiciam mais a leitura, no momento em que comeram a carne de um humano morto.

 

É como se, em outras palavras, Sófocles dissesse que Antígona tinha razão: os familiares têm o direito de enterrar os seus mortos e o corpo de seu irmão deveria ter sido sepultado.