INTRODUÇÃO

Este trabalho tem por objetivo apresentar as normas internas do ordenamento jurídico brasileiro referente ao Direito das Sucessões, inicialmente discorrendo conceitos atinentes à matéria, para, então, direcionar a solução de conflitos de jurisdição e de aplicação da lei aos casos que envolvam elementos de conexão internacional no direito sucessório, ressaltando a interpretação dessas normas internas do nosso ordenamento jurídico, bem como o entendimento jurisprudencial aplicado à espécie.

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  1. 2.  SUCESSÃO

Em sentido amplo, a palavra sucessão traduz um ato pela qual uma pessoa assume o lugar de outra, substituindo-a na titularidade de determinados bens. Assim, em uma relação negocial de compra e venda, por exemplo, o comprador sucede ao vendedor em todos os direitos que a este pertenciam, ocorrendo uma sucessão inter vivos.

Porém, nos interessa em particular o sentido estrito do vocábulo a ser utilizado no ramo do Direito. Aquele que serve para designar a sucessão causa mortis, referindo-se tão somente à sucessão decorrente da morte de alguém.

Tal acepção é empregada no ramo do direito das sucessões, que disciplina a transmissão do patrimônio (ativo e passivo) do autor da herança a seus sucessores. Sendo o autor da herança também denominado pela expressão latina de cujus, que segundo CARLOS ROBERTO GONÇALVES (2012, p.17) nada mais é que “abreviatura da frase de cujus sucessione (ou hereditatis) agitur, que significa ‘aquele de cuja sucessão (ou herança) se trata’.”.

Para o Direito Internacional Privado (DIPr) interessa as sucessões que possuam algum liame transnacional, seja pela nacionalidade dos envolvidos na sucessão, seja pela localização geográfica dos bens ou ainda pela diversidade entre o país da feitura do testamento e aquele em que se deu a abertura da sucessão.

Até 1942, o Brasil adotava como critério a nacionalidade, porém, com a adoção da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro – LINDB (Decreto-Lei nº 4.657, de 4 de setembro de 1942) o critério domiciliar substituiu a nacionalidade como regra de conexão.

Contudo, persiste uma exceção à regra, ainda privilegiando a nacionalidade. Trata-se da proteção de filhos e cônjuges brasileiros quando houver bens no Brasil, conforme preconiza a Constituição Federal combinada com a LINDB (art. 5º, XXXI, da CF e § 1° do artigo 10 da LINDB).

Art. 5º [...]

XXXI - a sucessão de bens de estrangeiros situados no País será regulada pela lei brasileira em benefício do cônjuge ou dos filhos brasileiros, sempre que não lhes seja mais favorável a lei pessoal do "de cujus"; (CF/88)

Art. 10 [...]

§ 1º A sucessão de bens de estrangeiros, situados no País, será regulada pela lei brasileira em benefício do cônjuge ou dos filhos brasileiros, ou de quem os represente, sempre que não lhes seja mais favorável a lei pessoal do de cujus. (LINDB/1942, com redação dada pela lei nº 9.047 de 1995).

2.1  Espécies de sucessão

A sucessão se subdivide em duas modalidades, ambas extraídas do art. 1.786 do Código Civil de 2002 (CC/2002): “A sucessão dá-se por lei ou por disposição de última vontade.”.

Segundo FLÁVIO TARTUCE (2014, p. 1110):

Sucessão legítima – aquela que decorre da lei, que enuncia a ordem de vocação hereditária, presumindo a vontade do autor da herança. É também denominada sucessão ab intestato justamente por inexistir testamento.

Sucessão testamentária – tem origem em ato de última vontade do morto, por testamento, legado ou codicilo, mecanismos sucessórios para exercício da autonomia privada do autor da herança.

2.2  Princípio da saisine – quando a herança se aperfeiçoa

Dispõe o art. 1.784, CC/2002: “Aberta a sucessão, a herança transmite-se, desde logo, aos herdeiros legítimos e testamentários.”. Assim, com a morte do autor da herança, não se cria qualquer solução de continuidade, a transmissão da posse indireta do patrimônio aos herdeiros ocorre independente de qualquer ato destes. O posterior ato de aceitação ou renúncia da herança apenas torna definitiva ou revoga a sua transmissão.

2.3  Lugar de abertura da sucessão

Pelo art. 1.785 do CC/2002 temos que: “A sucessão abre-se no lugar do último domicílio do falecido.”. Em tese, seria apenas esse o foro competente para o processamento do inventário, independente de o óbito ter ocorrido em solo nacional ou estrangeiro, decorrendo daí que a lei aplicável seria, portanto, a lex domicilii. Contudo, a determinação das regras de uma sucessão ocorre em dois momentos distintos, onde primeiro determina-se a competência jurisdicional para depois estabelecer-se qual será a lei aplicável.

2.4  Competência e lei aplicável

O supracitado artigo deve ser lido em conjunto com as disposições encontradas em outras leis, igualmente vigentes, pois comporta exceções.

O art. 96 do Código de Processo Civil de 1973 aduz que:

O foro do domicílio do autor da herança, no Brasil, é o competente para o inventário, a partilha, a arrecadação, o cumprimento de disposições de última vontade e todas as ações em que o espólio for réu, ainda que o óbito tenha ocorrido no estrangeiro.

Corrobora com tal disposição o previsto no art. 10, caput, da LINDB: “A sucessão por morte ou por ausência obedece à lei do país em que domiciliado o defunto ou o desaparecido, qualquer que seja a natureza e a situação dos bens.”.

Contudo, como se pode indagar, há casos em que o domicílio do autor poderia ser incerto, onde surge então a primeira exceção à regra lex domicilii.

Para tal hipótese aplicar-se-ia a lex rei sitae, prevista na norma do art. 96, parágrafo único e inciso I, do CPC:

Art. 96 [...]

Parágrafo único. É, porém, competente o foro:

I - da situação dos bens, se o autor da herança não possuía domicílio certo;

Ainda assim, há hipóteses que poderiam levantar dúvidas, pois, imagine-se que o de cujus, além de não possuir domicílio certo, tivessem deixado bens em diferentes países. Como proceder? Aplicar-se-ia a lei da situação bem de maior monta?

Antes de deter-nos em meio a divagações, cumpre observar que o legislador já previu tal hipótese, determinando, para tais casos, a aplicação do disposto no art. 96, inciso II do referido parágrafo único, do CPC, que revela a competência do foro “do lugar em que ocorreu o óbito se o autor da herança não tinha domicílio certo e possuía bens em lugares diferentes.”.

Cumpre, por fim tratar da questão de bens imóveis, que apresenta situação peculiar em relação ao que já foi citado.

O art. 12, da LINDB, afirma em seu parágrafo 1º: “Só à autoridade judiciária brasileira compete conhecer das ações relativas a imóveis situados no Brasil.”. Em escrita quase que idêntica, reforça o Código de Processo Civil, em seu art. 89, caput e inciso I:

Art. 89. Compete à autoridade judiciária brasileira, com exclusão de qualquer outra:

I - conhecer de ações relativas a imóveis situados no Brasil;

Como se isso já não fosse suficiente, o legislador deixa explícita a disposição de atribuir competência absoluta do judiciário nacional para discutir a sucessão de tais bens no inciso II do supracitado artigo: “II - proceder a inventário e partilha de bens, situados no Brasil, ainda que o autor da herança seja estrangeiro e tenha residido fora do território nacional.”.

Tal regra de competência absoluta para bens imóveis pode ser observada em grande parte das legislações processuais estrangeiras. Entretanto, embora o Brasil adote o princípio da universalidade sucessória, “pela qual um único elemento de conexão e, consequentemente, uma única lei é aplicada para todos os temas de sucessões.” (MONACO; JUBILUT, 2012, p. 119), há de se atentar para a impossibilidade disto ocorrer diante de uma sucessão em que haja bens em mais de um país.

Tal situação institui uma possível dupla regência legal da sucessão, visto que cada país aplicaria sua regra de DIPr, não permitindo que qualquer outro procedesse alguma determinação sobre bens ali situados. Essa fragmentação da sucessão, gerada pela pluralidade de foros sucessórios, é inevitável.

Assim, bens imóveis situados no Brasil, mesmo que se abra sucessão em outro Estado, cabe apenas à jurisdição nacional tratar a respeito. Não são, pois, passíveis de homologação sentenças estrangeiras que versem sobre tais bens.

De se observar que a situação inversa há de ser aceita pela justiça brasileira. Diante de uma sucessão aberta no Brasil em que existam bens imóveis no patrimônio do de cujus que estejam localizados em outro país, tais bens não poderão fazer parte do monte ou ser objeto de decisão judicial nacional. Entendimento assente no Supremo Tribunal Federal:

Quando a sucessão iniciar-se no Brasil, e ainda integrarem o patrimônio do de cujus bens imóveis situados em outro país, não podem estes fazer parte do monte, conforme tem decidido o STF:

PARTILHA DE BENS. BENS SITUADOS NO ESTRANGEIRO. PLURALIDADE DOS JUIZOS SUCESSORIOS. ART-189, II DO CPC. PARTILHADOS OS BENS DEIXADOS EM HERANÇA NO ESTRANGEIRO, SEGUNDO A LEI SUCESSORIA DA SITUAÇÃO, DESCABE A JUSTIÇA BRASILEIRA COMPUTA-LOS NA QUOTA HEREDITARIA A SER PARTILHADA, NO PAIS, EM DETRIMENTO DO PRINCÍPIO DA PLURALIDADE DOS JUIZOS SUCESSORIOS, CONSAGRADA PELO ART-89, II DO CPC. RECURSO EXTRAORDINÁRIO CONHECIDO E PROVIDO, EM PARTE.(RE 99230, Relator(a):  Min. RAFAEL MAYER, Primeira Turma, julgado em 22/05/1984, DJ 29-06-1984 PP-10751 EMENT VOL-01342-06 PP-01151 RTJ VOL-00110-02 PP-00750).

Posteriormente, tal posicionamento foi referendado pelo Superior Tribunal de Justiça:

Processual Civil. Inventário. Requerimento para expedição de carta rogatória com o objetivo de obter informações a respeito de eventuais depósitos bancários na Suíça. Inviabilidade.

- Adotado no ordenamento jurídico pátrio o princípio da pluralidade de juízos sucessórios, inviável se cuidar, em inventário aqui realizado, de eventuais depósitos bancários existentes no estrangeiro.

(REsp 397769/SP, Rel. Ministra NANCY ANDRIGHI, TERCEIRA TURMA, julgado em 25/11/2002, DJ 19/12/2002, p. 362).

De igual modo, bens situados no exterior não serão trazidos à colação. Mesmo que qualquer herdeiro prove a existência de tal bem e que a referida alocação ocorreu de modo avesso à lei brasileira, não será possível promover sua compensação na partilha. Tem-se, inclusive, decisão do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro, em inventário que se discutiu bens imóveis localizados em Portugal, em prol do referido entendimento:

Veja-se a ementa: “Inventário. Herança de estrangeiro. Bens imóveis situados no Brasil e em Portugal. É indeclinável a Jurisdição brasileira para inventariar os primeiros, mas devem ser inventariados no foro da situação os bens de Portugal.” Apelação Cível 23.31, 2ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro, julgamento em 28 de abril de 1983. (ARAÚJO, 2011, p. 501).

Assim, depois de estabelecida a competência da jurisdição nacional, determinar-se-ia a lei aplicável à sucessão. Via de regra, seria a lei do último domicílio do de cujus, porém, como já comentado, tal regra comporta exceção para proteger o direito dos filhos e/ou do cônjuge brasileiro que por ventura existam ao tempo da sucessão. Dessa forma, diante de um inventário de bens imóveis situados no Brasil, de um autor cujo último domicílio foi no exterior, o juiz pode ter duas hipóteses para definir a lei aplicável. Primeira, não havendo cônjuge, nem filhos brasileiros, aplicável seria a lei do último domicílio. Na segunda hipótese, existindo filhos ou cônjuge brasileiro, a menos que a lei estrangeira lhes seja mais benéfica, será aplicada a lei do Brasil, conforme determina o art. 5º, XXXI, da CF/88.

Cabe, portanto, ao magistrado, no caso concreto, fazer a análise da lei estrangeira aplicável e compará-la à lei brasileira para averiguar qual das duas traria mais benefícios aos filhos e/ou cônjuge brasileiro. Atente-se, ainda, que a exclusão da lei estrangeira deve ser estrita, procurando o aproveitamento do remanescente que possa ser aceito no foro, assegurando-se também que em caso de conflito com a Constituição, esta terá supremacia, conforme determina, inclusive, o Código  Bustamante em seu art. 4º: “Os preceitos constitucionais são de ordem pública internacional”.

Em certos casos, mesmo sendo escolhida a lei estrangeira, não será aplicada em razão de impedimento determinado pela ordem pública do foro, como bem ilustra a decisão do STJ, que segue:

DIREITO INTERNACIONAL PRIVADO — AÇÃO DE PETIÇÃO DE HERANÇA — HEREDITANDO ITALIANO QUE PALECEU NO BRASIL, DEIXANDO AQUI SEUS BENS E HERDEIROS NO TERRITÓRIO NACIONAL E NA ITÁLIA — APLICAÇÃO DA LEI BRASILEIRA PARA DESLINDE DA QUESTÃO — ARTIGOS 89 DO ESTATUTO PROCESSUAL CIVIL E 10, § 2º, DA LEI DE INTRODUÇÃO AO CÓDIGO CIVIL. 1. O artigo 89 do Código de Processo Civil estabeleceu a competência exclusiva — e, portanto, absoluta — do juiz brasileiro para proceder a inventário e partilha de bens situados no Brasil, ainda que autor da herança seja estrangeiro, ou tenha residido fora do território nacional. Nesse diapasão, pouco interessa à Justiça Brasileira se herdeiro italiano abriu ou deixou de abrir inventário em sua pátria para aceitar herança de bens localizados aqui no Brasil. 2. Havendo o de cujus deixado filhos brasileiros, embora tenha sido casado pelo regime de bens estabelecido na Itália, regula-se pela lei brasileira a sua sucessão. 3. O artigo 10, § 2º, da Lei de Introdução ao Código Civil, disciplina a aptidão para exercer o direito de suceder, reconhecido pela lei domiciliar do autor da herança e regido pela lei pessoal do herdeiro, e não a capacidade para ter direito de sucessor, que se rege pela lexdomicilii  do falecido. 4. Recurso improvido. Unânime (fl. 57). (AG 678749, Min. CARLOS ALBERTO DIREITO, DJ 03.06.2005).

Não raro, outras leis determinam vantagens maiores para filhos do que a lei brasileira. Algumas, como por exemplo, as leis portuguesa, italiana e francesa, possuem alocações flexíveis para a legítima, aumentando-se o quinhão devido aos herdeiros necessários (aqueles estabelecidos por força de lei) de metade até três quartos do patrimônio do autor, a depender do número de filhos que o de cujus tenha deixado. A lei estrangeira, indubitavelmente, é mais benéfica aos filhos que o disposto no art. 1.789, do CC/2002: “Havendo herdeiros necessários, o testador só poderá dispor da metade da herança.”.

Art. 913 As doações, por atos intervivos ou por vontade, não podem exceder metade dos bens do testador, se ele apenas deixou um filho ao tempo de sua morte; um terço, se deixou dois filhos; um quarto se deixou de três ou número maior. (Código Civil Francês).

O Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro até mesmo já aplicou lei estrangeira mais benéfica em seus julgados.

Inventário. Esboço de partilha. Falecido e ascendentes portugueses. Cônjuge meeira. Critério na divisão dos bens. Constituição Federal, art. 5º XXXI. Segundo o cânone constitucional que rege a quaestio (cf. Art. 5º,XXXI) a presença de estrangeiros em sucessão causa mortis, exige melhor estudo para o juiz solucionar os conflitos surgidos sobre a possibilidade de aplicação da lei de países distintos. O texto em comento oferece duas soluções a prevalecer aquela que for mais favorável ao cônjuge ou aos seus filhos brasileiros (RIBEIRO BASTOS, Celso inComentários à Constituição do Brasil, 2° vol, p. 152), In casu, sendo o falecido e seus pais portugueses e a cônjuge sobrevivente brasileira aplica-se o art. 2.142 do Código Civil Português, por ser este mais favorável ao cônjuge, a qual será beneficiada com 2/3 dos bens, e os pais do falecido com 1/3. (Ap, Cível 14.153/98, 3ª Câmara Cível, Relatar Des. Hudson Lourenço. Ementário n.17, de 20/09/99. Íntegra do acórdão com a autora. apud ARAÚJO, 2011, p. 503).

2.5  Quem pode herdar

Em se tratando de legitimidade para suceder, se aplicável a lei brasileira, observa-se a norma do Código Civil (2002):

Art. 1.798. Legitimam-se a suceder as pessoas nascidas ou já concebidas no momento da abertura da sucessão.

Art. 1.799. Na sucessão testamentária podem ainda ser chamados a suceder:

I - os filhos, ainda não concebidos, de pessoas indicadas pelo testador, desde que vivas estas ao abrir-se a sucessão;

II - as pessoas jurídicas;

III - as pessoas jurídicas, cuja organização for determinada pelo testador sob a forma de fundação.

Caso seja aplicável a lei estrangeira do domicílio do de cujus, deve-se observar o que dispõe tal lei quanto à legitimidade dos sucessores. Entretanto, uma vez definido pela lei do domicílio do autor da herança aqueles que têm a qualidade de herdeiro, deve-se buscar estabelecer em seguida aqueles que possuem capacidade sucessória.

Para isso não será mais aplicável a lex domicilii do de cujus, mas a lei do domicílio do próprio herdeiro:

Art. 7º A lei do país em que domiciliada a pessoa determina as regras sobre o começo e o fim da personalidade, o nome, a capacidade e os direitos de família.

[...]