O advento do transplante de órgãos ensejou a mudança de diversos paradigmas no campo da ética, mormente no que concerne à dificuldade de harmonizar quatro polos quase sempre destoantes entre si: os princípios da ética médica, as novas técnicas adotadas por centros mais audaciosos, os interesses dos candidatos a doador e receptor, bem como a opinião da sociedade.

A ética médica desenvolve-se a partir de duas vertentes: a ética da convicção e a ética da responsabilidade.

Os transplantes, quanto à origem, podem ser classificados em: xenotransplante, quando os órgãos são oriundos de outras espécies animais, ou alotransplante, hipótese em que o órgão provém de outro ser humano, o qual pode estar vivo (intervivos) ou morto (alotransplante de doador cadáver).

No que concerne ao xenotransplante, sua realização tem causado diversas controvérsias no seio da comunidade científica e da sociedade civil. Um caso paradigmático ocorreu em 1984, quando uma paciente pediátrica em estado terminal em razão de problemas cardíacos recebeu um transplante de coração de um babuíno na Loma Linda University Medical Center/EEUU.

As questões éticas que circundaram o caso não se limitaram à ciência dos médicos de que aquele transplante não seria efetivo, o que de fato se concretizou, pois a paciente sobreviveu por apenas 20 dias. Levantou-se a indagação a respeito da “eticidade” em utilizar-se um bebê em procedimento de caráter muito mais experimental do que terapêutico.

Ademais, incidentalmente, ganhou relevo a discussão acerca da utilização pelo homem de animais em benefício próprio e quais seriam seus limites. Vários cientistas criticaram, no caso “Baby Fae”, o sacrifício do babuíno quando se sabia que nem sequer implicaria a sobrevivência do bebê.

Por um lado, defende-se a não utilização de animais sob a justificativa de que qualquer animal, racional ou não, tem o direito de viver livre de sofrimento e de seguir seu próprio interesse. Do outro lado, os defensores da corrente oposta alegam que os seres humanos já sacrificam os animais para outros propósitos, tais como alimentação, e que, portanto, essas intervenções não acarretariam novas implicações éticas.

Outro caso emblemático de xenotransplante foi o caso "Jeff Getty", paciente com AIDS que, em 1995, recebeu a medula óssea de um babuíno, espécie aparentemente imune ao vírus, com a finalidade de curá-lo da doença.

No que tange ao alotransplante intervivos, o principal dilema consiste em conciliar o princípio da bioética do primum non nocere - segundo o qual, diante de uma situação concreta, é preferível abster-se de fazer algo quando isto puder ocasionar dano ao paciente - com o livre arbítrio do doador que manifeste vontade expressa de submeter-se aos riscos inerentes ao procedimento.

Segundo dados da Associação Brasileira de Transplante de Órgãos, até o ano de 2002 houve sete morte de doadores voluntários de fígado. Nesse sentido, se os mais de 5.000 candidatos a transplante de fígado no Brasil fossem submetidos a transplantes intervivos, poderíamos prever que, estatisticamente, cerca de cinquenta doadores morreriam em decorrência da cirurgia para retirada do enxerto.

Surge, nesse contexto, a necessidade de optar por uma das vertentes da ética, quais sejam a ética da convicção ou a ética da responsabilidade, para pautar a conduta médica quando da realização de transplantes. A primeira delas diz respeito a valores e normas pré-estabelecidos, é a ética do dever absoluto, na qual não há espaço para juízo de valor acerca dos efeitos e resultados das condutas. A segunda, em contrapartida, baseia-se na máxima de que somos responsáveis por aquilo que fazemos, trazendo a necessidade de avaliar os efeitos de cada ação para si e para a sociedade, estudando a conveniência de praticá-la.

Dessa forma, adotando-se a ética da convicção, diante do risco de dano à saúde do doador, o transplante não deve ser realizado, uma vez que há um dever absoluto de preservação da integridade física e da vida do ser humano. Por outro lado, sob a perspectiva da ética da responsabilidade, é preferível assumir os riscos inerentes ao procedimento, com o escopo de permitir o progresso da sociedade, a partir da salvaguarda de inúmeras vidas. É esta a corrente que tem prevalecido na comunidade científica internacional.

Ainda no que diz respeito à autonomia da vontade do doador em dispor dos próprios órgãos, deve-se frisar que não é absoluta, uma vez que está condicionada à decisão da equipe médica que o assiste nesse ato. Isso porque o transplante a partir de doadores vivos é o único setor da cirurgia na qual uma operação de grande porte é realizada em indivíduos sadios, o que leva às inúmeras discussões acerca da legitimidade ética de realizar, sem indicação médica, intervenções cirúrgicas que acarretam um potencial de mortalidade, ainda que ínfimos. 

Outro aspecto relevante acerca do alotransplante diz respeito às questões éticas que circundam a possibilidade de pagamento do receptor ao doador, tendo em vista o receio de que se forme um comércio de transplante de órgãos. Essa situação não é desejável em primeiro lugar porque acarretaria uma dificuldade de acesso ao transplante, tendo em vista que, escassos os doadores, apenas teriam acesso as pessoas com recursos financeiros. Ademais, considerando a situação de miserabilidade a que estão sujeitas muitas famílias em países de terceiro mundo, é fácil imaginar que essas poderiam dispor-se a vender órgãos ou mesmo sacrificar membros da família a fim de angariar recursos que permitam a sobrevivência familiar.

Em se tratando de disposição de órgão por doador relacionado - aquele que tem relação de consanguinidade direta com o receptor, tais como pais, filhos, irmãos, avós, etc. - é difícil visualizar a possibilidade de formação de comércio, uma vez que os motivos determinantes para a realização da doação são, em geral, altruísticos, relacionados à ligação emocional do doador com o receptor. Entretanto, no que se refere aos doadores não relacionados - também chamados "bons samaritanos", que não possuem qualquer relação de consanguinidade com os receptores - esse caráter altruísta é discutível, já que ausentes os laços afetivos. Assim, é notório que existe ao redor do mundo a prática de contraprestacionar a doação. Exemplo disso é a Índia, em que aproximadamente 2.000 transplantes são vendidos a estrangeiros anualmente. Em tais operações, o custo do transplante chega a US$ 10.000, sendo que US$ 3.000 são pagos ao intermediário, enquanto o doador angaria apenas US$ 1.000. No Brasil, em 2007, veiculou na mídia a notícia de que uma mulher anunciou o leilão de um de seus órgãos e da medula óssea pelo lance inicial de R$ 50.000,00 (cinquenta mil reais), sob o motivo de estar passando necessidades financeiras, contrariando, obviamente, o que dispõe o ordenamento jurídico brasileiro.

Os que defendem a possibilidade de recompensa financeira aos doadores alegam que todas as etapas do processo de doação são remuneradas, não havendo sentido, então, em não remunerar o doador. Ao revés, os que são contra defendem que todas essas remunerações dizem respeito apenas a serviços profissionais, enquanto o pagamento de órgão constituiria comércio inaceitável de partes do corpo humano, a afrontar os valores éticos e morais da sociedade.

Com relação a doadores cadavéricos, alguns países têm flexibilizado a questão da recompensa, admitindo, por exemplo, que o receptor arque com as despesas de funeral do doador, ou que realize doação a instituições de caridade indicadas por sua família.

Em alguns países, dentre eles o Brasil, exige-se, no caso de doação de órgãos post mortem, a anuência da família do doador, o que enseja outra discussão: do ponto de vista ético, poderia a família, mesmo diante da manifestação expressa do doador em vida, recusar-se a autorizar o procedimento? De acordo com a legislação, infere-se que sim, permitindo a conclusão de que após o óbito o indivíduo não teria mais vontade. Entretanto, se assumirmos essa premissa, não poderíamos concluir também que seria possível que o Estado determinasse a remoção de órgãos de indivíduos mortos, já que não são mais capazes de manifestação de vontade?

Outra questão ética a ser abordada se refere à chamada pena de “doação compulsória”. Um projeto de lei buscou introduzir essa estratégia de captação de órgãos na legislação brasileira em 2004, porém, foi arquivado no mesmo ano. Essa proposta impunha a pena física de doação compulsória de órgãos aqueles que fossem condenados a dois ou mais homicídios dolosos, com pena igual ou superior a 30 anos de reclusão. Poderia ser doado um rim, pulmão, córnea, um terço de seu fígado ou medula, supostamente óssea. Ademais, conforme o referido projeto, “a escolha do órgão a ser compulsoriamente doado dependerá da necessidade das filas de transplante e da compatibilidade entre doador e receptor”.

De início, essa proposta já apresenta duas incompatibilidades com o ordenamento jurídico brasileiro: a proporcionalidade e a irreversibilidade das penas. Além disso, mesmo aprovado, ainda teria sérios questionamentos éticos, morais e sociais, desde o ponto de vista do presidiário que irá ter seu órgão retirado, do médico responsável pelo procedimento, do paciente que irá receber o órgão e da sociedade como um todo.

No que concerne à doação de anencéfalos, o Conselho Federal de Medicina editou a Resolução nº 1.752, que, a despeito da Lei nº 9.434 e do Decreto nº 2.268, visou regulamentar a doação de órgãos de portadores de anencefalia, autorizando a remoção utilitarista de órgãos de anencéfalos, considerados "natimortos cerebrais", tão logo eles nascessem, desde que seus pais se manifestassem formalmente favoráveis no prazo máximo de quinze dias antes do parto. Contraditoriamente, o art. 74 do Código de Ética Médica de 1988, então em vigor, vedava ao médico "retirar órgão de doador vivo quando interdito ou incapaz, mesmo com autorização de seu responsável legal".

Advém, assim, várias questões jurídicas e éticas.

Em primeiro lugar, a expressão "natimortos cerebrais", criada por ela para caracterizar os anencéfalos, é ausente de fundamentos científicos e jurídicos. [...] Em segundo lugar, a Resolução CFM nº 1.752 afirmava que, devido à inviabilidade vital em decorrência da ausência de cérebro, são inaplicáveis e desnecessários os critérios de morte encefálica nos anencéfalos, argumento já superado e que só servia para comprovar que sua elaboração não aproveitou a experiência prévia de outros países. (ROCHA, 2010)

Dessa forma, é possível a retirada de órgãos e tecidos do recém-nascido anencéfalo, desde que seja verificada a parada cardiorespiratória e não haja atividade do troncoencéfalo, como nos outros casos de constatação de morte real ou encefálica.

O advento do transplante de órgãos ensejou a mudança de diversos paradigmas no campo da ética, mormente no que concerne à dificuldade de harmonizar quatro polos quase sempre destoantes entre si: os princípios da ética médica, as novas técnicas adotadas por centros mais audaciosos, os interesses dos candidatos a doador e receptor, bem como a opinião da sociedade.

A ética médica desenvolve-se a partir de duas vertentes: a ética da convicção e a ética da responsabilidade.

Os transplantes, quanto à origem, podem ser classificados em: xenotransplante, quando os órgãos são oriundos de outras espécies animais, ou alotransplante, hipótese em que o órgão provém de outro ser humano, o qual pode estar vivo (intervivos) ou morto (alotransplante de doador cadáver).

No que concerne ao xenotransplante, sua realização tem causado diversas controvérsias no seio da comunidade científica e da sociedade civil. Um caso paradigmático ocorreu em 1984, quando uma paciente pediátrica em estado terminal em razão de problemas cardíacos recebeu um transplante de coração de um babuíno na Loma Linda University Medical Center/EEUU.

As questões éticas que circundaram o caso não se limitaram à ciência dos médicos de que aquele transplante não seria efetivo, o que de fato se concretizou, pois a paciente sobreviveu por apenas 20 dias. Levantou-se a indagação a respeito da “eticidade” em utilizar-se um bebê em procedimento de caráter muito mais experimental do que terapêutico.

Ademais, incidentalmente, ganhou relevo a discussão acerca da utilização pelo homem de animais em benefício próprio e quais seriam seus limites. Vários cientistas criticaram, no caso “Baby Fae”, o sacrifício do babuíno quando se sabia que nem sequer implicaria a sobrevivência do bebê.

Por um lado, defende-se a não utilização de animais sob a justificativa de que qualquer animal, racional ou não, tem o direito de viver livre de sofrimento e de seguir seu próprio interesse. Do outro lado, os defensores da corrente oposta alegam que os seres humanos já sacrificam os animais para outros propósitos, tais como alimentação, e que, portanto, essas intervenções não acarretariam novas implicações éticas.

Outro caso emblemático de xenotransplante foi o caso "Jeff Getty", paciente com AIDS que, em 1995, recebeu a medula óssea de um babuíno, espécie aparentemente imune ao vírus, com a finalidade de curá-lo da doença.

No que tange ao alotransplante intervivos, o principal dilema consiste em conciliar o princípio da bioética do primum non nocere - segundo o qual, diante de uma situação concreta, é preferível abster-se de fazer algo quando isto puder ocasionar dano ao paciente - com o livre arbítrio do doador que manifeste vontade expressa de submeter-se aos riscos inerentes ao procedimento.

Segundo dados da Associação Brasileira de Transplante de Órgãos, até o ano de 2002 houve sete morte de doadores voluntários de fígado. Nesse sentido, se os mais de 5.000 candidatos a transplante de fígado no Brasil fossem submetidos a transplantes intervivos, poderíamos prever que, estatisticamente, cerca de cinquenta doadores morreriam em decorrência da cirurgia para retirada do enxerto.

Surge, nesse contexto, a necessidade de optar por uma das vertentes da ética, quais sejam a ética da convicção ou a ética da responsabilidade, para pautar a conduta médica quando da realização de transplantes. A primeira delas diz respeito a valores e normas pré-estabelecidos, é a ética do dever absoluto, na qual não há espaço para juízo de valor acerca dos efeitos e resultados das condutas. A segunda, em contrapartida, baseia-se na máxima de que somos responsáveis por aquilo que fazemos, trazendo a necessidade de avaliar os efeitos de cada ação para si e para a sociedade, estudando a conveniência de praticá-la.

Dessa forma, adotando-se a ética da convicção, diante do risco de dano à saúde do doador, o transplante não deve ser realizado, uma vez que há um dever absoluto de preservação da integridade física e da vida do ser humano. Por outro lado, sob a perspectiva da ética da responsabilidade, é preferível assumir os riscos inerentes ao procedimento, com o escopo de permitir o progresso da sociedade, a partir da salvaguarda de inúmeras vidas. É esta a corrente que tem prevalecido na comunidade científica internacional.

Ainda no que diz respeito à autonomia da vontade do doador em dispor dos próprios órgãos, deve-se frisar que não é absoluta, uma vez que está condicionada à decisão da equipe médica que o assiste nesse ato. Isso porque o transplante a partir de doadores vivos é o único setor da cirurgia na qual uma operação de grande porte é realizada em indivíduos sadios, o que leva às inúmeras discussões acerca da legitimidade ética de realizar, sem indicação médica, intervenções cirúrgicas que acarretam um potencial de mortalidade, ainda que ínfimos. 

Outro aspecto relevante acerca do alotransplante diz respeito às questões éticas que circundam a possibilidade de pagamento do receptor ao doador, tendo em vista o receio de que se forme um comércio de transplante de órgãos. Essa situação não é desejável em primeiro lugar porque acarretaria uma dificuldade de acesso ao transplante, tendo em vista que, escassos os doadores, apenas teriam acesso as pessoas com recursos financeiros. Ademais, considerando a situação de miserabilidade a que estão sujeitas muitas famílias em países de terceiro mundo, é fácil imaginar que essas poderiam dispor-se a vender órgãos ou mesmo sacrificar membros da família a fim de angariar recursos que permitam a sobrevivência familiar.

Em se tratando de disposição de órgão por doador relacionado - aquele que tem relação de consanguinidade direta com o receptor, tais como pais, filhos, irmãos, avós, etc. - é difícil visualizar a possibilidade de formação de comércio, uma vez que os motivos determinantes para a realização da doação são, em geral, altruísticos, relacionados à ligação emocional do doador com o receptor. Entretanto, no que se refere aos doadores não relacionados - também chamados "bons samaritanos", que não possuem qualquer relação de consanguinidade com os receptores - esse caráter altruísta é discutível, já que ausentes os laços afetivos. Assim, é notório que existe ao redor do mundo a prática de contraprestacionar a doação. Exemplo disso é a Índia, em que aproximadamente 2.000 transplantes são vendidos a estrangeiros anualmente. Em tais operações, o custo do transplante chega a US$ 10.000, sendo que US$ 3.000 são pagos ao intermediário, enquanto o doador angaria apenas US$ 1.000. No Brasil, em 2007, veiculou na mídia a notícia de que uma mulher anunciou o leilão de um de seus órgãos e da medula óssea pelo lance inicial de R$ 50.000,00 (cinquenta mil reais), sob o motivo de estar passando necessidades financeiras, contrariando, obviamente, o que dispõe o ordenamento jurídico brasileiro.

Os que defendem a possibilidade de recompensa financeira aos doadores alegam que todas as etapas do processo de doação são remuneradas, não havendo sentido, então, em não remunerar o doador. Ao revés, os que são contra defendem que todas essas remunerações dizem respeito apenas a serviços profissionais, enquanto o pagamento de órgão constituiria comércio inaceitável de partes do corpo humano, a afrontar os valores éticos e morais da sociedade.

Com relação a doadores cadavéricos, alguns países têm flexibilizado a questão da recompensa, admitindo, por exemplo, que o receptor arque com as despesas de funeral do doador, ou que realize doação a instituições de caridade indicadas por sua família.

Em alguns países, dentre eles o Brasil, exige-se, no caso de doação de órgãos post mortem, a anuência da família do doador, o que enseja outra discussão: do ponto de vista ético, poderia a família, mesmo diante da manifestação expressa do doador em vida, recusar-se a autorizar o procedimento? De acordo com a legislação, infere-se que sim, permitindo a conclusão de que após o óbito o indivíduo não teria mais vontade. Entretanto, se assumirmos essa premissa, não poderíamos concluir também que seria possível que o Estado determinasse a remoção de órgãos de indivíduos mortos, já que não são mais capazes de manifestação de vontade?

Outra questão ética a ser abordada se refere à chamada pena de “doação compulsória”. Um projeto de lei buscou introduzir essa estratégia de captação de órgãos na legislação brasileira em 2004, porém, foi arquivado no mesmo ano. Essa proposta impunha a pena física de doação compulsória de órgãos aqueles que fossem condenados a dois ou mais homicídios dolosos, com pena igual ou superior a 30 anos de reclusão. Poderia ser doado um rim, pulmão, córnea, um terço de seu fígado ou medula, supostamente óssea. Ademais, conforme o referido projeto, “a escolha do órgão a ser compulsoriamente doado dependerá da necessidade das filas de transplante e da compatibilidade entre doador e receptor”.

De início, essa proposta já apresenta duas incompatibilidades com o ordenamento jurídico brasileiro: a proporcionalidade e a irreversibilidade das penas. Além disso, mesmo aprovado, ainda teria sérios questionamentos éticos, morais e sociais, desde o ponto de vista do presidiário que irá ter seu órgão retirado, do médico responsável pelo procedimento, do paciente que irá receber o órgão e da sociedade como um todo.

No que concerne à doação de anencéfalos, o Conselho Federal de Medicina editou a Resolução nº 1.752, que, a despeito da Lei nº 9.434 e do Decreto nº 2.268, visou regulamentar a doação de órgãos de portadores de anencefalia, autorizando a remoção utilitarista de órgãos de anencéfalos, considerados "natimortos cerebrais", tão logo eles nascessem, desde que seus pais se manifestassem formalmente favoráveis no prazo máximo de quinze dias antes do parto. Contraditoriamente, o art. 74 do Código de Ética Médica de 1988, então em vigor, vedava ao médico "retirar órgão de doador vivo quando interdito ou incapaz, mesmo com autorização de seu responsável legal".

Advém, assim, várias questões jurídicas e éticas.

Em primeiro lugar, a expressão "natimortos cerebrais", criada por ela para caracterizar os anencéfalos, é ausente de fundamentos científicos e jurídicos. [...] Em segundo lugar, a Resolução CFM nº 1.752 afirmava que, devido à inviabilidade vital em decorrência da ausência de cérebro, são inaplicáveis e desnecessários os critérios de morte encefálica nos anencéfalos, argumento já superado e que só servia para comprovar que sua elaboração não aproveitou a experiência prévia de outros países. (ROCHA, 2010)

Dessa forma, é possível a retirada de órgãos e tecidos do recém-nascido anencéfalo, desde que seja verificada a parada cardiorespiratória e não haja atividade do troncoencéfalo, como nos outros casos de constatação de morte real ou encefálica.

 

ARAÚJO, Eliana da Silva. Transplantes de órgãos e tecidos humanos, e seus limites ético-jurídicos em defesa da dignidade da pessoa humana. 2006. 182 f. Dissertação (Mestrado) - Curso de Direito, Unifieo – Centro UniversitÁrio Fieo, Osasco, 2006. Disponível em: <http://www.unifieo.br/files/download/site/mestradodireito/bibliotecadigital/dissertacoes2006/diss_eliana_araujo.pdf>. Acesso em: 06 jun. 2014.

 

BITTAR, Carlos Alberto. Os direitos da personalidade. 5. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2001.

 

GOLDIM, José Roberto. “Doação Compulsória” de Órgãos para Transplantes. 2004. Disponível em: <http://www.bioetica.ufrgs.br/trancom.htm>. Acesso em: 06 jun. 2014.

 

ROCHA, Robledo Fonseca. O anencéfalo como doador de órgãos e tecidos para transplante: possibilidades legais, morais e práticas. 2010. Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S1519-38292010000600006&script=sci_arttext>. Acesso em: 08 jun. 2014.

 

SÃO PAULO. SECRETARIA DE ESTADO DA SAðDE. . Transplantes de órgãos e tecidos. Disponível em: <http://www.saude.sp.gov.br/programas_projetos/transplantes>. Acesso em: 06 jun. 2014