COTAS: necessidade baseada na igualdade material dos direitos sociais

 

   Marcos Maurício Souza[1]

 

Sumário: Introdução; 2. Evolução Histórica dos Direitos Sociais; 3. Sistema de Cotas e a Legislação Brasileira; 4. Uma Discriminação Compensatória; Conclusão; Referências.

 

RESUMO

As cotas são direitos sociais de segunda fase. Dessa forma, pautam-se sobre os alicerces do princípio da equidade ou igualdade material que, por sua funcionalidade, exigem um tratamento não igual aos entes de uma sociedade, devendo-se observar o status social do individuo. Neste contexto, justificam-se as ações afirmativas, em especial as cotas, abordada em acordo com a teoria da discriminação inversa elaborada por Ronald Dworkin.

 

PALAVRAS-CHAVE

Discriminação inversa, direitos sociais, ações afirmativas, cotas.

 

Introdução

Com o advento da revolução francesa, o Estado Moderno passou a conhecer a matéria de direitos fundamentais por meio do jusnaturalismo. Esses direitos tidos como de primeira fase, visavam em garantir as liberdades negativas dos indivíduos frente ao poder, até então soberano, do estado. Contudo, após a ocorrência de diversas mudanças na estrutura social e constatações de insuficiências do capitalismo liberal, foi forçado à criação dos direitos sociais, no qual exigia por parte do Estado um agir em prol da defesa de tais direitos. No momento, estamos diante do Estado Social, ou Estado do Bem-Estar Social.

Os direitos sociais, enquanto direitos fundamentais de segunda fase criaram uma nova esfera conceitual acerca de alguns princípios basilares, dentre eles, o princípio da igualdade, que abandona sua conceituação formal, passando a ser materialmente exigido.

Nesse contexto, surgem as medidas denominadas Ações Afirmativas, dentre elas, as cotas universitárias, que buscam um tratamento não igual com o objetivo de igualar a representação das raças na sociedade dentro do espaço universitário. Diversos são os argumentos em desfavor de tais medidas, mas como veremos neste artigo, a “discriminação” gerada por essas medidas tem como objetivo final a redução da importância da raça para a determinação das relações sociais.

 

2. Evolução Histórica dos Direitos Sociais

Ao analisarmos o direito enquanto fenômeno social, observamos que os direitos sociais tornam-se exigíveis na medida em que a sociedade transforma-se a ponto de criar novas necessidades de proteção. Para tanto, devemos compreender o contexto em que se encontram os direitos sociais frente ao confronto do paradigma do Estado Liberal e o paradigma do Estado Social.

O advento da Revolução Francesa, especialmente na promulgação da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1789, o Estado moderno conheceu limitações em seu próprio poder frente os direitos individuais do homem. Segundo Kant, um dos aspectos mais relevantes da revolução foi o exercício do direito de um povo de determinar seu próprio destino. Segundo ele,

 

[...] esse era o direito de liberdade num dos sentidos principais do termo, ou seja, como autodeterminação, como autonomia, como capacidade de legislar para si mesmo, como a antítese de toda forma de poder paterno ou patriarcal, que caracterizava os governos despóticos tradicionais. Quando Kant define a liberdade numa passagem da Paz perpetua, define-a do seguinte modo: ‘a liberdade jurídica é a faculdade de só obedecer a leis externas às quais pude dar o meu consentimento’ (BOBBIO, 1992. P.86).

 

Nesse sentido, os revolucionários franceses foram contra o “antigo regime” despótico e autoritário. Regime este que não conhecia limite em seus poderes de intervenção na vida e autonomia privadas. E foi justamente como uma antítese a esse regime que se configurou a Revolução Francesa.

Como forma de resguardar essa autonomia individual, o novo regime exaltou a defesa das liberdades individuais como objetivo do Estado, o que resultou numa limitação à própria atuação deste. Com relação aos direitos de primeira geração, devemos formular duas observações importantes: Os direitos de liberdade negativa, como sugere o próprio nome, exige um não-fazer do Estado, característica que torna a sua concretização relativamente fácil em relação aos direitos da segunda fase. A segunda consideração é sobre os nuances da liberdade defendida nos direitos de liberdade negativa. Neste âmbito, exige-se um igual tratamento, cabendo a todos as mesmas liberdades sem distinção de “cor, sexo, língua, religião, opinião política ou de outro tipo, por origem nacional ou social, riqueza, nascimento ou outra consideração” (DUDH, art. 2º, I, grifo nosso). Não obstante a relevância da primeira observação será analisada apenas a segunda por conta da objetividade de nosso tema.

A igualdade pretendida pelos direitos de liberdade negativa revela-se como uma universalidade (indistinção) na atribuição e fruição desses direitos. Nesse sentido, assevera Bobbio que:

 

No Estado de Natureza de Locke, que foi o grande inspirador das Declarações dos Direitos do Homem, os homens são todos iguais, onde por ‘igualdade’ se entende que são iguais no gozo da liberdade, no sentido de que nenhum indivíduo pode ter mais liberdade que outro. Esse tipo de igualdade é o que aparece enunciado, por exemplo, no art. 1º da Declaração Universal, na afirmação de que ‘todos os homens nascem iguais em liberdade e direitos’ (BOBBIO, 1992, p. 70)

 

Essa mesma igualdade formal que é perfeitamente aplicada aos direitos fundamentais de primeira geração, revela-se incompatível com os direitos sociais (2ª geração). Isso se dá porque na atribuição dos direitos sociais ao homem, deve-se levar em conta o seu status social, suas especificidades e necessidades, ou seja, “não se pode deixar de levar em conta determinadas diferenças, que justificam um tratamento não igual” (BOBBIO, 1992, p. 71, grifo nosso). Ainda nessa linha, conclui Bobbio que:

 

É possível dizer, realisticamente, que todos são iguais no gozo das liberdades negativas. E não é possível afirmar aquela primeira igualdade porque, na atribuição dos direitos sociais, não se pode deixar de levar em conta as diferenças específicas, que são relevantes para distinguir um individuo do outro, ou melhor, um grupo de indivíduos de outro grupo. (BOBBIO, 1992)

 

Esse novo Estado Social, por conta de tais mudanças ocorridas, passa a exigir a “internalização na legislação de uma igualdade não mais apenas formal, mas tendencialmente material” (DWORKIN, 2001) Nesse sentido, essas medidas revelam-se como uma aplicação prática do princípio da equidade já formulado desde a teoria de Aristóteles de “tratar igualmente os iguais e desigualmente os desiguais na medida em que eles se desigualam” (ARISTÓTELES apud BASTOS, 1978, p.229)

Portanto, nos tópicos seguintes, será contatado que as ações afirmativas, especialmente as cotas, enquanto direito social de segunda geração e que exigem este tratamento não igual dos indivíduos, tornam-se medidas, de certa forma, discriminatórias, mas plenamente justificáveis frente às necessidades sociais observadas na desigualdade social pautada na distinção de raça, condição financeira ou cor.

 

3. Sistema de Cotas e a Legislação Brasileira

Uma das primeiras ações afirmativas apareceu no cenário brasileiro no ano de 1996, quando o Congresso Nacional instituiu este sistema na legislação eleitoral obrigando os partidos a inscreverem, no mínimo, 20 % de mulheres nas chapas proporcionais. No ano seguinte, este sistema foi revisado, passando para 30 % a participação feminina obrigatória. Essa medida teve o objetivo de trazer a mulher para o cenário político, até então, ocupado exclusivamente por homens.

Outro sistema foi adotado no Brasil através da lei 8.213/91 e o decreto 3.298/99. Eles instituíram cotas para deficientes físicos nas empresas e nos concursos públicos. A legislação atual determina que todas as empresas com mais de 100 funcionários devem contratar deficientes físicos na seguinte proporção: empresas com até 200 funcionários devem ter, pelo menos, 2% de deficientes em seus quadros; de 200 até 500 empregados, 3%; de 500 até 1000, 4%; e as com mais de 1000 deve ter, dentre os seus empregados, o mínimo de 5% deficientes. Medida esta que alargou as oportunidades de trabalho para os deficientes que, historicamente, são excluídos desta área.

Na educação superior, a primeira medida de ação afirmativa foi adotada no ano de 2001. Tendo o Estado do Rio de Janeiro (lei estadual nº 3.708/2001) e o Estado da Bahia, através da Universidade do Estado da Bahia (UNEB) e da Universidade Federal da Bahia (UFBA), como pioneiros na adoção do sistema de cotas raciais e socioeconômicas em critérios de seleção para o ingresso em universidades públicas.

Atualmente, mais de 30 universidades públicas utilizam-se do sistema de cotas. Em sua grande maioria, reservam-se vagas específicas para os alunos que fazem a opção pelas cotas (geralmente para alunos egressos de escolas públicas, negros, índios e deficientes físicos), com todas as informações e procedimentos necessários constatados por meio do edital. O aluno que optar por concorrer às vagas reservadas para este sistema, passará por uma entrevista para constatar se, de fato, o candidato faz jus ao benefício.

Essas medidas foram tomadas com o escopo de mitigar os efeitos da discriminação racial nos setores da educação e economia, assim apontados pelos principais institutos de pesquisa do nosso país: Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística - IBGE, Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos - Dieese e Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada - Ipea. Discriminação racial esta que durante muito tempo ficou velada sob o véu da ideologia do branqueamento (Skidmore, 1974; Azevedo, 1987; Andrews, 1992) e a “identidade nacional mestiça” criada por Getúlio Vargas em oposição à política do “café com leite”. Segundo esta ultima, o povo brasileiro seria composto pela mistura de três raças: negra, indígena e branca, que conviveriam em perfeita harmonia. Teorias estas que resultaram na criação da ideologia da democracia racial.

Contudo, pesquisas recentes revelam que a distribuição do mercado de trabalho entre brancos e negros não esta de acordo com a falácia da democracia racial brasileira. O DIEESE lançou, no ano de 1998, uma pesquisa revelando que a porcentagem de negros desempregados em relação a não-negros desempregados é 45% maior em Salvador, 41% em São Paulo e 35% em Porto Alegre. Após analisar os dados da pesquisa, o DIEESE concluiu que:

 

A coerência dos resultados em nível nacional revela que a discriminação racial é um fato cotidiano, interferindo em todos os espaços do mercado de trabalho brasileiro. Nenhum outro fato, que não a utilização de critérios discriminatórios baseados na cor dos indivíduos, pode explicar os indicadores sistematicamente desfavoráveis aos trabalhadores negros, seja qual for o aspecto considerado. Mais ainda, os resultados permitem concluir que a discriminação racial sobrepõe-se à discriminação por sexo, combinando-se a esta para constituir o cenário de aguda dificuldade em que vivem as mulheres negras, atingidas por ambas. (DIEESE, 1998)

 

Constatada a desigualdade racial no Brasil, bem como a necessidade de repará-la de acordo com o principio da igualdade constitucionalmente assegurado, surge o sistema de cotas como uma solução para aumentar o numero de negros nas universidades, consequentemente, aumentar o numero de negros ocupando altos cargos no mercado de trabalho equilibrando essa balança historicamente desigual. Contudo, é preciso observar que as cotas, ao determinarem vagas exclusivas para negros, por si só é uma descriminação racial explicita. Resta-nos saber se essa discriminação poderá trazer proveitos no futuro maiores que os danos causados no presente.

 

4. Uma Discriminação Compensatória

            De acordo com a versão online do Dicionário Aurélio, a palavra discriminação significa: “s.f. Ação de discriminar; separação; distinção; discernimento. // Discriminação racial, tratamento diverso dado a pessoas de raças diferentes; segregação.” (AURÉLIO). Nesse sentido, podemos definir o sistema de cotas como uma forma de discriminação social, na medida em que faz separação, distinção e discernimento ao dar tratamento diverso a pessoas de raças diferentes.  Mas a que objetivo serve uma medida que, como já demonstrado, tenta combater a discriminação social com outro mecanismo de discriminatório?

 Acerca dessa questão, Dworkin elabora sua teoria da discriminação inversa, segundo a qual é inegável que qualquer critério que se use como método para o ingresso de estudantes nas universidades irá, necessariamente, privilegiar um determinado perfil de aluno em detrimento de outros perfis. Por exemplo, um critério que levem em conta apenas o nível de conhecimento acumulado pode estar pecando em não observar que características próprias da personalidade podem fazer de um aluno um melhor profissional que aquele. Portanto, já que não se pode escapar da discriminação, deve-se fazê-la com o objetivo maior que é o de promover uma equiparação racial.

De acordo com ele, é plenamente aceitável este tratamento desigual seja adotado em detrimento do interesse individual de poucas pessoas para que possamos chegar a ganhos sociais relevantes em prol de toda a comunidade.

 

Está longe de ser evidente que tratar as pessoas como iguais proíbe qualquer desvio de igualdade de recursos, por qualquer razão. Pelo contrário, as pessoas com um senso vivido de seu valor igual e orgulho de suas convicções pode, não obstante, aceitar certas razões para arcar com ônus especiais, em nome da comunidade como um todo. (DWORKIN, 2001, p. 311)

 

Dworkin, ao analisar o objetivo das cotas raciais nos Estados Unidos, define objetivos que podem ser traduzidos para a nossa realidade brasileira. Segundo ele,

 

os programas de ação afirmativa usam critérios racialmente explícitos porque seu objetivo imediato é aumentar o número de membros de certas raças nessas profissões. Mas almejam a longo prazo reduzir o grau em que a sociedade norte americana, como um todo, é racialmente consciente. (DWORKIN, 2001 , p. 439)

 

Destarte, o que se objetiva não é a produção de um Estado dividido em raças e etnias, mas um povo que não possua uma forte consciência social, ou seja, um povo que tenha a cor como um critério irrelevante de distinção social. Desse modo, as cotas tem como objetivo final “diminuir, não aumentar a importância da raça na vida social e profissional” (DWORKIN, 2001, p. 439) brasileira.

Importa observar que tais medidas não possuem garantia de que irão alcançar os objetivos a que se propõem. Contudo, não podemos negar que, caso tais objetivos sejam alcançados, a nossa sociedade irá chegar a um patamar de desenvolvimento social agradável a todos. Portanto, é plausível suportar o risco de que as cotas fracassem em seu objetivo posto que, caso fracassem de fato, o status quo atual não seria, em praticamente nada, alterado. “assim, as reconhecidas incertezas quanto aos resultados a longo prazo de tais programas não poderiam justificar uma decisão do supremo tribunal tornando-as ilegais” (DWORKIN, 2001, p. 444)

 

Conclusão

De acordo com as observações feitas no início deste artigo, essa nova configuração de Estado Intervencionista cria um dever, até então, desconhecido pelo Estado Moderno, que é o dever positivo de agir implementando políticas públicas em prol da tutela dos direitos fundamentais de segunda geração, ou seja, os direitos sociais.

Contudo, esse agir do Estado deve estar pautado sob novos alicerces. Neste momento, a igualdade formal criada para o gozo das liberdades individuais não é mais suficiente, faz-se necessário a tutela estatal sob a ótica do princípio da igualdade material ou equidade. Sob este novo prisma, as peculiaridades sociais dos distintos grupos formadores do Estado devem ser observadas e levadas em conta no momento de sua proteção. Passam a existir direitos específicos para cada grupo. Em nosso ordenamento jurídico, podemos ver os frutos dessa mudança de paradigma na proliferação de estatutos específicos para determinados segmentos sociais, a saber: estatuto do idoso, estatuto da criança e do adolescente, lei Maria da penha et cetera.

Nessa levada, inclui-se o sistema de cotas para negros e estudantes oriundos de escolas públicas para o ingresso nas universidades federais. Este sistema, como já exposto, visa tratar os desiguais na medida de sua desigualdade com o objetivo de igualar as oportunidades que revelaram-se suprimidas a estes determinados grupos não possuem, perante a dinâmica política do Estado, uma forte representação política que pudesse garanti-los iguais oportunidades.

Essas ações afirmativas justificam-se na medida em que, apesar de criarem um certo grau de discriminação, essa discriminação é passageira tendo como escopo a constituição de uma sociedade mais igualitária na qual a raça não seja mais um elemento determinante nas relações sociais entre os indivíduos.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Referências

 

DWORKIN, Ronald. Uma Questão de Princípios. tradução de Luis Carlos Borges. São Paulo: Martins Fontes. 2001

 

BOBBIO, Norberto. A Era dos Direitos. tradução de Carlos Nelson Coutinho. Rio de Janeiro: Campus. 1992

 

BASTOS, Celso Ribeiro. Curso de Direito Constitucional. São Paulo: Saraiva. 1978

 

AZEVEDO, C. M. M. Onda negra, medo branco: o negro no imaginário das elites – século XIX. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987

 

ANDREWS,G. R. Desigualdade racial no Brasil e nos Estados Unidos: uma comparação estatística. Estudos Afro-Asiáticos, v.22, p.47-83, 1992.

 

SKIDMORE, T. Black into white: race and nationality in Brazilian thought. New York: Oxford University Press, 1974.

 

DIEESE. Mapa da População Negra no Mercado de Trabalho. 1998. Disponível em: <http://www.dieese.org.br/esp/negro.xml>, acesso em:  01/05/2010

 

GRAU, Eros Roberto. O direito posto e o direito pressuposto. 4. ed. São Paulo: Malheiros, 2002.

 

DICIONÀRIO AURÈILIO. Versão online; disponível em: <www.dicionarioaurelio.com>



[1] Advogado ([email protected])