ANA KAROLINA DA CONCEIÇÃO ROCHA: Graduanda em Direito pela Faculdade Farias Brito, Fortaleza-CE

                    

Resumo: O presente artigo tem o escopo de, em breves linhas, traçar a evolução da família como instituição, fazendo um paralelo entre a forma era vista na antiguidade e na atualidade, suas modificações e ramificações. Trata-se de uma análise das raízes familiares, de como o conceito desta importante instituição passou por várias mutações, assim como seu formato ao longo do tempo. Para estudar a origem das famílias desde os tempos primitivos se faz necessário também analisar o sentido do parentesco e as modificações na forma como se têm tratado a sua origem, bem como o conceito de afinidade, e a sua aceitação como necessária para existência de parentesco, e assim para a identificação de uma família.

Palavras Chave: Família, origem, evolução, Direito, Parentesco, afinidade.

 

1. CONCEITODE FAMÍLIA E SUA EVOLUÇÃO

Inicialmente, cabe ressaltar o quão complicado e ao mesmo passo interessante é conceituar o termo família que, de acordo com a carta magna, em seu artigo 226, “é a base da sociedade e tem especial proteção do Estado”.

Na atualidade, conhecemos o termo família como a base da sociedade, mas será que ela sempre teve tanta importância, o mesmo formato ou os mesmos valores, será que sempre existiu? Se pararmos para pensar no que é a família na prática, logo pensamos que são aqueles que moram conosco, ou aqueles que são nossos parentes, talvez aquelas pessoas a quem amamos e por isso consideramos nossa família, como  nossos amigos por exemplo,  e desta forma estamos, internamente, entrando no conflito que a família têm passado desde a existência humana, ou seja, se para saber quem são nossos familiares devemos analisar a questão biológica, civil ou afetiva, e na realidade para exaurir o assunto seria necessária uma obra de extensão gigantesca, uma vez que existem posições e respostas para essa indagação que defendem o parentesco pelo sangue, outros pelo afeto, porém, analisando as versões acerca da origem da  família é possível extrair o que se procura, definindo nossa própria opinião.

De acordo com Aurélio Buarque de Holanda (2010):

s.f. O pai, a mãe e os filhos: família numerosa. Todas as pessoas do mesmo sangue, como filhos, irmãos, sobrinhos etc. Grupo de seres ou coisas que apresentam características comuns: família espiritual. Biologia. Unidade de classificação científica. &151; Os animais e as plantas são classificados em sete grupos principais chamados reinos, filos, classes, ordens, famílias, gêneros e espécies. Os membros de uma família têm entre si um parentesco mais chegado que os membros de uma ordem, mas não são tão próximos quanto os membros de um gênero. Os descendentes de um indivíduo, a linhagem, a estirpe. Em família, em casa, entre os seus, na intimidade. Família de palavras, grupo de palavras que procedem de uma raiz comum. Família real, o rei, a rainha, seus filhos e parentes do mesmo sangue. Santa Família, quadro que representa a Virgem Maria, São José e o Menino Jesus. Usa-se como adj., no sentido de "honesto", "decente", falando-se, sobretudo da mulher: Fulana é família.

Para o professor Pablo Stolze Gagliano (2009) família está no nosso sentir, para ele é dever do Estado reconhecer os núcleos familiares e não defini-los, pois sua definição segue o vínculo de afetividade que une os membros familiares.

Analisando pela etimologia da palavra o termo família vem do latim famulus: que serve; lugar em função de; o termo era utilizado para designar os escravos domésticos, aqueles que eram submetidos à escravidão agrícola.

Segundo Luis Gonzaga de Melo (2009) citando Câmara Cascudo mostra a origem etimológica da palavra família:

O latim família manteve-se no famille, famillie, family, neolatinos e germânicos, provindo de famulus, famel, criado, servo, fâmulo, serviçal, doméstico, com raiz de faama, do sânscrito d’hãman, casa, morada, residência, do radical dhã, pôr, pousar, assentar.

De acordo com Antônio Houaiss e Mauro Salles Villar (2001, p.1304), o termo família pode ter inúmeros significados, entre eles:

Família: s.f.(sXIII cf. FichIVPM) 1 grupo de pessoas vivendo sob o mesmo teto (esp. O pai, a mãe e os filhos) 2 grupo de pessoas que têm uma ancestralidade comum ou que provêm de um mesmo tronco 3 pessoas ligadas entre si pelo casamento e pela filiação ou, excepcionalmente, pela adoção 3.1 fig. grupo de pessoas unidas por mesmas convicções ou interesses que provêm de um mesmo lugar (...)

DIR. CIVfamília formada pelos pais, ou apenas um deles, e seus descendentes, f. nuclear  o grupo de família composto de pai, mãe e filhos naturais ou adotados residentes na mesma casa, considerado como unidade básica ou núcleo da sociedade

Para Carlos Roberto Gonçalves (2005) a família é base da organização social do Estado e merece sua ampla proteção, é uma instituição sagrada de extrema importância para ao desenvolvimento da sociedade.

Já o dicionário Priberam da Língua Portuguesa, nos esclarece que família possui significados também em diversos sentidos, como no figurado que se trata de raça, estirpe, no sentido gramático que é o conjunto de vocábulos que tem a mesma raiz ou o mesmo radical, relacionado à história natural que é o grupo de animais, vegetais ou minerais que têm caracteres comuns, na química refere-se ao grupo de elementos químicos com propriedades semelhantes, pode-se também dizer como gíria quando dizemos que alguém é da família, nos referimos a uma pessoa íntima, sem cerimônia, quando dizemos que “aquela é uma moça de família”, referindo-se a ser alguém confiável, de bem, ou quando dizemos que tal pessoa nos é familiar, quando falamos que temos a impressão de já conhecê-la, finalmente, mas não menos importante existe a denominação família para nos referirmos à Sagrada família, com a representação de Jesus Cristo com a Virgem Maria e São José.

A religião judaica cristã, fundamentada no livro de Gênesis (vers.24) percebe a família como a união entre um homem e uma mulher. Conforme se demonstra através de trecho bíblico.

24. Portanto deixará o homem o seu pai e a sua mãe, e apegar-se-á à sua mulher, e serão ambos uma carne. (...)

28. E Deus os abençoou, e Deus lhes disse: Frutificai

Há ainda diversas passagens bíblicas onde a família sua importância são lembradas, como em Efésios 5:33, que diz: “Portanto, cada um de vocês também ame a sua mulher como a você mesmo, e a mulher trate o marido com todo o respeito”.

1.1 Constituição da família ao longo do tempo

Baseado nos estudos de Lewis Henry Morgan, em A Origem da Família da Propriedade privada e do Estado, Friedrich Engels (1997) demonstra que houve um período onde determinados grupos, na realidade tribos, viviam em meio à promiscuidade:

Uma época primitiva em que imperava no seio das tribos o comércio sexual promíscuo, de modo que cada mulher pertencia igualmente a todos os homens e cada homem a todas as mulheres. O que se pode afirmar é que na época primitiva não haviam os valores morais existentes na atualidade, estes não haviam sido “inventados”. Como por exemplo, o incesto, e em razão disso a vida sexual não possuía tantas restrições, o que levou a conclusão da existência da promiscuidade sexual.

De acordo com estes estudos, na época primitiva nem a religião nem a moral tinham a forma e/ou o conteúdo que possuem nos dias atuais, o que existiam eram cultos a determinados “deuses” que muitas vezes eram os próprios antepassados dos que cultuavam, ou até mesmo fenômenos da natureza, e o que unia essas tribos e ao mesmo tempo as diferenciava umas das outras eram esses cultos e a própria relação de convivência, ou seja, o que nós conhecemos hoje como família foi resultado de um longo processo de evolução, ela foi se moldando ao longo de anos, na verdade de centenas deles, através de um processo de seleção natural, constituindo esta poderosa instituição, que com o passar do tempo agregou a si vários princípios e até outras instituições que se transformaram em alicerces da sociedade atual.

O filósofo Friedrich Engels (1997) na sua citada obra elenca as formas de família que existiram na época primitiva na seguinte ordem:

A família Consanguínea– Onde os grupos conjugais classificam-se por gerações: todos os avôs e avós, nos limites da família são maridos e mulheres entre si; (...) nessa forma de família, os ascendentes e descendentes, os pais e filhos, são os únicos que, recíprocamente, estão excluídos dos direitos e deveres (poderíamos dizer) do matrimônio (...), o vínculo de irmão e irmã pressupõe, por si, nesse período, a relação carnal mútua.

A família Punaluana–  Se trata de uma evolução da primeira, nela se excluíram os irmãos das relações sexuais recíprocas”, “nela os filhos das irmãs da minha mãe também são filhos desta, mas os filhos dos irmãos dela são apenas seus sobrinhos, assim como os filhos dos irmãos de meu pai são seus filhos e meus irmãos, mas os filhos de suas irmãs são seus sobrinhos e meus primos.

A família sindiásmica – As uniões por grupos se tornaram inviáveis e então foram substituídas pela família sindiásmica. “Nela um homem vive com uma mulher, mas de maneira tal que a poligamia e a infidelidade ocasional continuam a ser um direito dos homens, embora a poligamia seja raramente observada, por causas econômicas, ao mesmo tempo exige a mais rigorosa fidelidade das mulheres, enquanto dure a vida em comum, sendo o adultério destas cruelmente castigado. O vínculo dissolve-se com facilidade por uma ou por outra parte, e depois, como antes, os filhos pertencem exclusivamente à mãe.

A família monogâmica – É a evolução da família sindiásmica, entre a fase média e a fase superior da barbárie, é caracterizada na predominância do homem e também na necessidade de procriação dos filhos para fins hereditários, na família monogâmica diferentemente da anterior, o matrimônio é muito mais sólido e não pode ser desfeito por qualquer das partes, exceto pelo homem, se este resolver repudiar sua mulher, aqui surge mais forte as ideias de concubinato e de adultério, pois embora a fidelidade seja exigida da mulher, e o seu descumprimento acarrete para estes castigos rigorosos, ao homem é “permitida” a infidelidade, porém, ele deve respeitar seu domicílio conjugal, não trazendo a este sua concubina.

Assim, segundo Engels (1997), a evolução das tribos/grupos pré-históricos (as) para o que conhecemos nos dias de hoje como família se deu ao longo do tempo com a “redução do círculo onde prevalecia a comunidade conjugal”.

Podemos verificar ainda, que o citado autor demonstra em sua obra as diversas formas de união conjugal, mas enfatiza que houve três delas fundamentais, o matrimônio por grupos no estado selvagem, o matrimônio sindiásmico no período em que se vislumbrava a barbárie e a monogamia na chamada civilização, que refletem também os três estágios fundamentais da civilização.

Fustel de Coulanges (2006) na obra “A Cidade Antiga” afirma que nas antigas gerações as famílias tinham altares em suas casas onde havia um fogo sagrado e os familiares faziam orações diariamente nestes, e fora das casas, o mais próximo possível delas se encontravam os túmulos, e em determinados dias os vivos reuniam-se para cultuar seus antepassados, e eles o faziam como se estes fossem deuses, oferecendo-lhes banquetes e pedindo em troca a sua proteção, fertilidade para seus campos e prosperidade para suas casas.

De acordo com Coulanges (2006) em “A Cidade Antiga, o princípio antigo da família não está unicamente na geração, o arcabouço da família não era tampouco o afeto natural, visto que os direitos grego e romano não tomavam na menor conta esse sentimento”. Poderia ele existir no íntimo dos corações, mas para o Direito não representava nada. “O pai podia amar sua filha, mas não lhe podia legar os seus bens”.

Ainda segundo Coulanges (2006), a força do poder paterno e marital não foi causa, mas sim efeito, pois a união da família antiga não era baseada no nascimento, nos sentimentos ou na força física, e sim na religião e nos antepassados, e que “o parentesco e o direito à herança são regulamentados não pelo nascimento, mas de acordo com os direitos de participação nos cultos.” Ainda conclui o autor que a religião “não criou a família, mas fixou suas regras”. Lembra que a antiga língua grega tinha uma palavra para designar a família, que era epistion, ou em sua tradução “aquilo que está junto do fogo”, ou seja, a família era um grupo de pessoas a quem a religião permitia invocar os mesmos manes (almas dos entes queridos falecidos) e oferecer o banquete fúnebre para os mesmos antepassados.

A Obra de Coulanges esclarece ainda que a primeira instituição estabelecida pela religião doméstica foi o casamento e que tal religião transmitia-se de varão para varão, porém, as filhas e a mulher assistiam aos atos religiosos do pai, mas depois de casada aos do marido, isto é, ela crescia cultuando deuses e antepassados determinados, que eram sua família, mas quando se casava passava a cultuar os deuses e antepassados da família de seu marido.

Segundo Coulanges (2006), na família antiga ainda não se acreditava que era a conduta da pessoa durante sua vida que lhe daria felicidade após a morte. Para eles, depois de mortos seus entes passavam a serem espécies de divindades, cuja felicidade dependeria dos cultos e banquetes a eles ofertados, ou seja, para a felicidade de seus mortos e para que seus espíritos não sofressem era necessário que seus familiares vivos o cultuassem, e a família que não o fizesse estava “amaldiçoada” e seus mortos também. Por isso a ideia de continuidade, tornando fundamental a procriação e a manutenção dos descendentes, principalmente herdeiros homens.

Sendo a procriação a principal finalidade da família não é difícil constatar que o celibato era não só muito mal visto como também proibido por lei em lugares como na Roma antiga, por exemplo, e mesmo após tal proibição legislativa deixar de vigorar, continuou sendo proibida nos costumes.

É possível extrair da obra A cidade Antiga, que naquela época o homem nascia com a principal função de dar prosseguimento ao culto de sua família, e a mulher cultuava seus antepassados consanguíneos somente até seu casamento, uma vez que após este acontecimento passaria a fazer parte da religião doméstica de seu marido. Ressalte-se ainda que, se após o casamento religioso o homem descobrisse a esterilidade da mulher, ele teria o direito de anular a união, mas em alguns povos antigos como os atenienses, os hindus e os espartanos, quando a esterilidade era do homem, sua esposa era obrigada a se entregar a um irmão ou parente próximo deste e a criança nascida dessa relação era considerada como filho daquele (marido), o mesmo acontecia em caso de morte precoce do marido, não tendo este deixado filhos, aliás, a necessidade de continuidade dos cultos domésticos por um membro da família era tão grande que daí se originou os primeiros casos de adoção.

Resta claro que a família, na verdade, é o espelho das sociedades, uma vez que evolui se modifica e desenvolve novos arranjos conforme a evolução desta. É possível afirmar que há uma forte ligação entre a sociedade e suas famílias, pois ao passo em que aquela sofre qualquer alteração, em um determinado lapso temporal podemos enxergar as mudanças (consequências) nestas.

Como bem demonstra José Carlos Teixeira Giorgis (2010):

A família é a mais antiga de todas as sociedades, e a única natural; é o primeiro modelo de sociedade política, onde o chefe é a imagem do pai, o povo a dos filhos, e todos ao nascerem iguais e livres, só alienam a sua liberdade pela utilidade que daí obtém. Em verdade, a família conforme o decorrer dos anos se revestiu de vários formatos, mas sempre de acordo com a forma societária da época.

A brilhante definição acima transcrita demonstra que a família e a sociedades estão interligadas e que a família é uma espécie de espelho da sociedade, sendo que as pessoas nascem iguais, mas ao longo do tempo vão sendo moldadas pela sociedade e absorvendo seus princípios, ao longo de toda a história as famílias possuíram diversas formas distintas, mas sempre seguiam a sociedade.

1.2 O sentido do parentesco

Nas famílias antigas os parentes não eram identificados pelo nascimento ou laços consanguíneos, mas por aqueles que participavam do mesmo culto e ofereciam o banquete fúnebre aos mesmos antepassados.

Na obra “A cidade Antiga” de Fustel de Coulanges é esclarecida que no período da Roma antiga esse parentesco era conhecido por agnação, e só posteriormente é que o parentesco pelo nascimento passou a ser reconhecido em direito, nos levando a concluir que na idade antiga, quando, como vimos, as famílias eram completamente diferentes das atuais, aquele que tivesse laços de sangue com determinada família, isto é, nascido dela, e não participasse de seus rituais religiosos domésticos, não era tido como parente, ao passo que uma pessoa mesmo não sendo unida àquele grupo ou família por qualquer cão de consanguinidade e pactuasse de sua religião doméstica erra tido como parente e membro daquela família, com todos os direitos e deveres que tal posto acarretava naquela época. Porém, com o passar do tempo os direitos dos nascidos com o mesmo sangue foram sendo reconhecidos gradativamente, e essa forma passou a fazer frente com a forma religiosa, para só depois se sobrepor a ela.

Ainda na obra do ilustre filósofo é explicado que com o passar do tempo a família antiga foi sendo modificada e em alguns povos se originou a chamada gens, que existiu em Roma, na Grécia e Itália, consistindo em mais uma espécie de grupo familiar que possuía diversos conceitos, mas não deixava de ser uma família que envolvia não só o laço religioso como o político também.

Importante ainda lembrar que chegou o período do aparecimento dos escravos e servos, bem como sua admissão na religião doméstica, uma vez que para participar do culto e ofertar aos antepassados deveria fazer parte daquela família, e estes eram admitidos através de uma cerimônia religiosa específica para tal finalidade. Frise-se que o chefe da família poderia livrar a estes da servidão passando a tratá-los como homens livres, porém, o “servo” continuava naquela família e mantinha as mesmas obrigações, porém, era chamado de liberto ou de cliente.

O chamado “senhor” da família antiga, na verdade o patriarca, era nesta a autoridade maior, ele detinha o direito de propriedade não só sobre os bens materiais, mas sobre a vida e liberdade dos filhos e da esposa, também era ele quem realizava os atos religiosos do culto doméstico diante do fogo sagrado e do túmulo de seus antepassados.

Em “A cidade Antiga”, podemos extrair também que na citada Roma antiga, o ascendente (homem) mais velho de determinado núcleo, era denominado “pater” e detinha o poder total e absoluto sobre todos os seus descendentes e estes formavam o seu núcleo familiar, sendo que o poder do pater estava acima do poder dos maridos e sobre estes também, incluindo-se o direito de decidir sobre vida e morte dos respectivos membros, poder este que perdurava até a sua morte.

Neste sentido, cumpre também lembrar que na família antiga a mulher já era submissa (quase tanto quanto veio a ser depois). Segundo Coulanges (2006), na sua família consanguínea, ou seja, após o nascimento e antes do casamento não tem qualquer posição elevada, uma vez que não dará continuidade ao culto doméstico, tendo em vista que será admitida na família do esposo logo após seu casamento, na verdade no ato deste, e em seguida será considerada parte integrante de seu marido, e não como um ser independente, e mesmo após sua morte a mulher sequer recebe um culto especial, pois não é descendente daqueles antepassados.

Nesta obra A Cidade Antiga (p.94), Fustel de Coulanges cita a Lei de manu que diz:

A mulher, em sua infância, depende do pai, durante a mocidade, de seu marido: na morte do marido, de seus filhos, se não tem filhos, dos parentes próximos de seu marido, porque a mulher nunca deve se governar a sua vontade.

A referida Lei de manu nos mostra como a mulher era subestimada, e sempre deveria ser dependente de alguém, ou seja, durante toda a sua vida não possuía qualquer independência, mas prevalecia a submissão.

Philippe Ariés (1981) nos lembra de que uma forma importante de verificarmos a evolução da família é analisar a iconografia antiga, que por sua vez nos mostra que o “sentimento” de família era desconhecido na idade média e nasceu nos séculos XV-XVI (p.143).

Conforme Arriés obra citada os historiadores da sociedade medieval acreditavam que os laços de sangue não formavam um único grupo, mas dois, que eram a família e a linhagem, uma fazia oposição à outra, sendo que esta consistia na solidariedade entre um grupo que descendia de um mesmo ancestral e aquela pode ser comparada com a nossa família conjugal moderna, porém, esta prevaleceu uma vez que evoluiu com o enfraquecimento da linhagem e suas tendências a indivisão.

1.3 Os sentidos da afinidade

Em se tratando de afinidade, para Ariés (1981) nas famílias medievais a realidade era mais do que sentimental, era moral e social. Entre os ricos a família confundia-se com o crescimento patrimonial, as riquezas daquele determinado “clã”, já entre os pobres o sentimento familiar era praticamente inexistente.

Neste período as famílias mantinham suas crianças em casa, sem sair, até os sete anos de idade, aproximadamente, e chegando nesta fase entregavam seus filhos em confiança a outra família, geralmente a um irmão do pai, para que esta servisse a família e através dela fosse educada e aprendesse um ofício, sendo que a primeira família também recebia uma criança em sua casa, para educá-la e ensiná-la a trabalhar, comparando a grosso modo uma espécie de intercâmbio, porém, menos moderno.

Segundo Ariés (1981) a partir do século XV foi acontecendo aos poucos uma mudança nas relações familiares e consequentemente nos sentimentos nela existentes, vez que surgiram as escolas e as crianças deixaram de serem obrigadas e se inserirem em outra família a fim de receber educação, com essa mudança a própria família, ou seja, os pais passaram a ser pessoalmente responsáveis pela educação de seus filhos e em decorrência de tal situação se tornou inevitável uma maior aproximação das famílias aumentando assim os sentimentos familiares.

Ressalte-se que a evolução acima narrada não engloba as crianças do sexo feminino, pois de início somente os meninos iam às escolas e as meninas eram submetidas aos antigos métodos educacionais onde eram entregues a outras famílias e substituídas nas suas por outras crianças até atingirem a faixa etária entre quinze e dezoito anos.

Mas antes da proliferação das instituições familiares, de certa forma, o afeto familiar já se manifestava, embora de forma tímida e oculta, em outras situações, como por exemplo, quando os pais mostravam sua predileção ao filho primogênito em detrimento dos mais novos, pois o filho mais velho, ou em alguns outros casos, o filho mais virtuoso daria seguimento, honraria o nome da família.

A partir do século XVII as escolas foram se proliferando e somente após um longo decurso de tempo é que as meninas passaram a frequentá-las. Os grupos familiares foram evoluindo de acordo com as mudanças que aconteciam na sociedade.

Para Melo (2009), à família já foi atribuída pelo grande autor Gilberto Freire em sua obra “Casa Grande e Senzala” o status de centro catalisador da formação social brasileira (p.331).

A família brasileira merece destaque no âmbito familiar, pois que sofreu modificações severas ao longo do tempo, uma vez que por décadas foi uma família patriarcal chefiada pelo “senhor” que detinha o poder sobre tudo e sobre todos do seu núcleo familiar, incluindo os escravos, porém, às custas de muitas lutas foi aos poucos evoluindo até ganhar os diversos desmembramentos que conhecemos atualmente.

Já o Cristianismo centralizou a família baseando-a no casamento, e mais uma vez condenando a mulher a uma submissão completa. Porém, no século XVIII, com a Revolução Industrial, a necessidade maior de renda, e consequentemente de pessoas trabalhando fora de casa para complementar esta, em razão da pobreza que começou a se alastrar pela sociedade, a família começou a sofrer uma importante mudança, senão a maior delas tendo em vista a então sociedade intrinsecamente patriarcal e machista, em sua estrutura, pois a mulher deixou então de ser a cuidadora do lar e dos filhos e passou a trabalhar fora de casa, participando assim do sustento e da manutenção da família, o que até então era função somente do homem.

Atualmente, podemos nos arriscar a denominar “família” como sendo um determinado número de pessoas (a partir de duas) que convivem entre si, e possuem algum vínculo seja ele afetivo, fraterno, de sobrenome, identificação ideológica, estabelecimento de metas a serem alcançadas a curto, médio e/ou longo prazo, dentre outros, e que se presume para estes a necessidade e o dever de mútua assistência, é neste núcleo que desenvolvemos e moldamos nossa personalidade.

Em verdade, só com a evolução da sociedade, ou sua modificação, é que os laços familiares foram se estreitando, a família como conhecemos hoje, apesar de hoje existir diversas famílias, já possuiu vários formatos, conforme aqui brevemente explanado, com fases que passaram pela barbárie e evoluíram até os dias atuais.

CONCLUSÃO

As famílias desde os primórdios da humanidade são à base da sociedade, embora nem sempre tenham sido reconhecidas como tal, e também sempre foram o espelho desta, pois quando a sociedade era baseada na pluralidade de uniões, na promiscuidade sexual e na ausência de demonstrações afetivas, independente de existirem ou não, assim eram as famílias.

Com o decorrer dos anos passou-se a admitir, mesmo que de forma tímida, a inserção das demonstrações de afeto nos grupos familiares, até porque os membros dos grupos familiares passaram a manter uma relação de convivência mais próxima.

A evolução do tempo, e consequentemente da sociedade trouxe consigo algo que nos tempos antigos era inadimissível, senão pela morte de um dos cônjuges, a separação, que em seguida foi denominada em sua forma solene de divórcio.

Após o advento da Lei do divórcio, mesmo esta não tenha conseguido aniquilar o preconceito ou os pré-conceitos, em relação as mulheres que dissolviam seus casamentos ou uniões estáveis, mas estas depois de se condenarem a chefiar suas famílias solitariamente por muito tempo se permitiram constituir novas famílias, levando para estas sua bagagem de vida e seus filhos, e a partir de então se formaram as chamadas famílias reconstituídas, denominação esta que se faz bastante apropriada, uma vez que demonstra que a família, que poderia estar “destruída”, pois, em alguns casos acontece na prática após um divórcio ou dissolução de união estável, principalmente quando se tem filhos menores. Desta forma fica implícito que aquela determinada família se refez, se deu uma nova chance de ser o seio da formação do caráter de seus membros.

Atualmente a doutrina é extensa a respeito das opiniões e discussões acerca do tema, mas a legislação possui algumas omissões. As famílias que se reconstituem possuem parentes biológicos e afins, sendo estes em sua maioria, os padrastos, as madrastas e seus enteados, e estes, por sua vez, necessitam se esforçar imensamente para estabelecer um bom convívio, indo de encontro a uma cultura milenar de que essas relações entre os que a doutrina tem chamado de pais, mães e filhos afins não darão certo, que o digam as histórias de madrastas más que nos embalam desde a infância.

Falamos em distinguir o parentesco biológico do parentesco afetivo, sendo que este deriva do afeto e aquele do sangue, mas esquecemos de que o parentesco biológico, por mais que ainda seja privilegiado pelo ordenamento jurídico em detrimento do afetivo, pouca relevância prática possui sem o afeto, ou seja, o parentesco formal se origina a partir da certidão de nascimento do indivíduo, mas na prática é um construído, que se faz na convivência. O afeto é indispensável tanto no parentesco biológico quanto civil.

 

 

 

 

 

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