INTRODUÇÃO

O crime de ato obsceno encontra-se na Parte Especial Título VI - dos Crimes Contra a Dignidade Sexual, Capítulo VI – Do Ultraje Público ao Pudor. Inicialmente, para uma melhor compreensão, se faz necessário o esclarecimento de alguns termos utilizados neste momento.

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O ultraje que, de acordo como o Dicionário Aurélio pode ser entendido como um “insulto ou afronta grave”, apresenta-se associado ao pudor e está descrito por Plácido e Silva como (pudor público): "o decoro público ou sentimento coletivo a respeito da honestidade e decência dos atos, que se fundam na moral e nos bons costumes. Ofender o pudor público, assim, é praticar atos que ofendam os bons costumes e a moral pública".

Percebe-se, então, que as condutas ofensivas ao pudor público estão diretamente relacionadas à moralidade e à sexualidade e, como condição ao esclarecimento destas definições, é preciso ter consciência de que os entendimentos relacionados ao sexo sofrem modificações de acordo com o momento histórico. Deste modo, na análise do caso concreto a utilização de valores contextualizados será inevitável e, como consequência, a formulação de conceitos como decência, decoro, pudor e bons costumes também serão relativos.

O Direito, como resultante de frequentes conflitos de ordem e valores, admite que as transformações na concepção de usos e costumes de um povo podem influenciar a aplicação de uma lei. Neste caso, a utilização do princípio da adequação social estabelece uma ligação importante entre o direito e a dialética social, tendo em vista a impossibilidade de se considerar como delitiva uma conduta amplamente tolerada pela sociedade.

É com o objetivo de refletir sobre estas questões aparentemente simples, como a amplitude de algumas definições ou a aplicação prática de valores morais, que o presente trabalho, partindo das considerações gerais, busca estabelecer uma relação entre o conceito, a classificação doutrinária e a jurisprudência do delito de ato obsceno.

  1. 1.      ATO OBSCENO

A definição de um conceito tem como finalidade a caracterização de um objeto ou uma ideia por meio das palavras. No entanto, a diferença entre o conceito essencialista e o conceito jurídico é que, no primeiro caso é realizada a extração mental do objeto conceituado e no segundo, “o ‘objeto’ do conceito jurídico não existe ‘em si’, dele não há representação concreta, nem mesmo gráfica [...] e sua existência abstrata apenas tem validade no mundo jurídico quando este puder ser reconhecido uniformemente por um grupo social”.

A qualificação dos conceitos, contudo, não deve ser feita de uma maneira discricionária, mas como afirma Figueiredo Dias apud Feldens (2008, p.214):

Quando se enfrenta a questão do critério de valoração, não é suficiente dizer que o legislador escolhe inteira liberdade, e que o intérprete se restringe a buscá-lo (o critério de valoração) na lei. Nesse tom, a legitimação da intervenção penal não pode ser vista como unicamente advinda de qualquer ordem transcendente e absoluta de valores. Tal constatação conduz a uma ligação direta desta via de legitimação à questão da função do Direito Penal, a qual não pode ser vista na defesa de uma qualquer ordem moral, mas na tutela da ordem legal dos bens jurídicos, necessariamente referida à ordem axiológica constitucional. 

Esse posicionamento refere-se ao critério de valoração, diretamente ligado a alguns conceitos que, a princípio, podem parecer indeterminados. O obsceno, por exemplo, por ser um elemento normativo extrajurídico, necessita de uma interpretação que deve ser obtida fora do direito penal. De acordo com Bitencourt, obsceno é “aquilo que ofende o pudor ou a vergonha causando um sentimento de repulsa e humilhação criado por um comportamento indecoroso”. Este conceito, mesmo sofrendo poucas variações entre os doutrinadores, pode suscitar dúvidas quanto à sua aplicação no caso concreto. A valoração, no entanto, precisa envolver critérios de fontes diversas – evitando-se sempre as argumentações moralistas.

Esta, inclusive, é outra questão relevante a ser abordada: a obscenidade deve ser diferenciada da moralidade. Para o intérprete da lei, a atitude de se despir de prejulgamentos e de tentar sempre uma contraposição com a realidade torna-se decisiva para que, em se tratando de avaliar aquilo que é obsceno, evite um rigor excessivo e um resultado injusto. O beijo lascivo, a micção em via pública, o topless, o namoro libidinoso de um casal dentro de um carro na madrugada... seriam exemplos de atos obscenos? Ou são comportamentos já amplamente aceitos pela sociedade contemporânea? 

O grau de reprovação social diante de uma conduta é determinante para auferir a proporcionalidade de uma punição. Em que situação a certeza de obscenidade estaria presente: na atitude de um homem que, em uma via pública com intensa movimentação, decida se masturbar sem se importar com os transeuntes (inclusive crianças), ou na atitude de um homem que, encontrando-se em via pública para a troca do pneu do seu carro, resolva urinar no poste em uma situação de urgência?

Os mecanismos de controle social acompanharam a revolução sexual e o aumento da participação feminina em todos os setores resultando em discussões sobre temas como o divórcio, a união estável, filhos fora do casamento, aborto, união homoafetiva, pornografia, dentre outros. Tendo em vista esta nova realidade, faz-se necessário compreender alguns aspectos sobre a percepção social acerca do sexo com a finalidade de auxiliar a interpretação atualizada e a aplicação de uma determinada lei.

Para Foucault, “por volta do século XVIII nasce uma incitação política, econômica e técnica a falar do sexo”. Ou seja, havia vários interesses na discussão sobre esse tema porque as condutas sexuais são fundamentais para uma melhor análise da dinâmica social e, ainda de acordo com Foucault (1998, p.87):

Cumpre falar do sexo como de uma coisa que não se deve simplesmente condenar ou tolerar mas gerir, inserir em sistema de utilidade, regular para o bem de todos, fazer funcionar segundo um padrão ótimo. O sexo não se julga apenas, administra-se. Sobreleva-se ao poder público; exige procedimentos de gestão; deve ser assumido por discursos analíticos.

Para estabelecer as diretrizes das políticas sociais e econômicas, tornou-se imprescindível aos governos obter informações sobre as taxas de natalidade, expectativa de vida, fecundidade, métodos contraceptivos etc. A mudança de padrões comportamentais, principalmente quando diz respeito às relações entre sexos e gerações, influenciavam todos os setores da sociedade e a lei mais reconhecia do que criava o novo clima de relaxamento social: “tornavam-se agora permissíveis coisas até então proibidas, não só pela lei e a religião, mas também pela moral consuetudinária, a convenção e a opinião da vizinhança”.

  1. 2.      SOBRE O DELITO DE ATO OBSCENO

O delito de ato obsceno encontra-se na Parte Especial VI dos Crimes Contra a Dignidade Sexual, Capítulo VI – Do Ultraje Público ao Pudor e está previsto no art. 233 do Código Penal em vigor, conforme apresentado no texto legal: 

Ato obsceno:

Art. 233. Praticar ato obsceno em lugar público, ou aberto, ou exposto ao público:

Pena – detenção, de 3 (três) meses a 1 (um) ano, ou multa.

O bem jurídico tutelado pelo artigo 233 é o pudor público e, eventualmente, a integridade sexual do sujeito passivo e seu bem estar psíquico. Segundo Luiz Regis Prado, “a sociedade tem o direito de ser respeitada no sentimento do pudor e da sua dignidade”. Essa concepção é compartilhada pelo autor Cezar Roberto Bitencourt, que afirma serem os bens jurídicos protegidos “a moralidade pública e o pudor público, particularmente no que se refere ao aspecto sexual”.

O sujeito ativo do delito é qualquer pessoa, do sexo masculino ou feminino, autor da prática de ato obsceno em lugar público, ou aberto, ou exposto ao público – sendo admitida a possibilidade de concurso de pessoas. Já o sujeito passivo éa coletividade (pudor público) ou qualquer pessoa que presencie o ato.

Em se tratando de tipicidade objetiva, o verbo núcleo do tipo é “praticar” (fazer, realizar, executar). A prática de ato obsceno está diretamente ligada à uma conotação sexual e, de acordo com Maggiore apud Prado (2010, p.88):

A palavra obsceno é oriunda do latim ob ou obs (a causa de) e coenum, tradução do grego κoinón (imundo). Ato obsceno, elemento normativo extrajurídico ou empírico-cultural, representa, assim, uma conduta positiva do agente, com conteúdo sexual, atentatória ao pudor público, suscitando repugnância.

Além disso, é imprescindível para a caracterização do delito que a conduta seja cometida em lugar público (pleno acesso público), lugar aberto ao público (acesso livre ao público ou mediante condições) ou lugar exposto ao público (embora não seja público, pode ser observado por um número indefinido de pessoas).

Cabe destacar a divergência em relação a alguns exemplos clássicos de ato obsceno. Enquanto que, para Bitencourt (2008, p.75) “podem-se destacar, entre outros, o trottoir de travestis, deixando entrever seu corpo nu, a “chispada” (correr nu) ou urinar na via pública, exibindo o pênis”, consoante Prado (2010, p.89):

Como o ato obsceno reveste-se de natureza sexual, nem toda conduta que fere a decência amolda-se ao tipo legal, como o ato de micção, a ventosidade intestinal, a dejeção etc., desde que tais condutas não impliquem na exibição das partes pudendas do agente. Acrescente-se ainda que, embora a doutrina clássica classifique o beijo lascivo como ato obsceno, a evolução dos costumes levou à aceitação desse ato em público.

Com relação à tipicidade subjetiva, admite-se apenas o dolo (direto ou eventual): em que há a consciência e a vontade de praticar o ato obsceno nas condições descritas no artigo. Lembrando que o dolo é a consciência e a vontade de realização dos elementos objetivos do tipo objetivo (conhecer e querer), ou seja, essa é a composição dualista que compreende o elemento cognitivo ou intelectual – conhecimento da ação típica; e o elemento volitivo, intencional ou emocional – vontade intencional da conduta.

Quanto à consumação do delito, esta se dá com a prática do ato obsceno, sendo necessária a contemplação de pelo menos uma pessoa. Admite-se a tentativa.

A pena prevista no art. 233 do Código Penal é a pena de detenção de três meses a um ano ou multa. A ação penal é pública incondicionada.

A classificação doutrinária é a de crime comum (não exige condição ou qualidade especial para prática do delito pelo sujeito ativo, podendo ser praticado por qualquer pessoa); formal (está consumado com a mera prática da conduta - ou seja, para consumar-se não exige, como resultado, a efetiva ofensa ao pudor de alguém ou que tenha sido presenciado); de forma livre (pode ser praticado por qualquer meio ou forma pelo agente), comissivo (as ações representadas pelos verbos nucleares implicam ação positiva do agente); monossubjetivo (pode ser praticado por um único agente); plurissubsistente (via de regra, a conduta é necessariamente composta por atos distintos); e instantâneo (o resultado se produz de imediato, numa relação de proximidade entre ação e consequência).

  1. 3.      ALGUNS CASOS CONCRETOS

As dúvidas quanto às restrições à obscenidade podem ser confirmadas pela jurisprudência. O intérprete, apesar ter consciência dos diversos critérios a serem considerados no caso concreto, ainda sim pode apresentar dificuldades em controlar os juízos antecipados no momento de apresentar os argumentos relevantes à tipificação da conduta obscena. De acordo com Koatz in Sarmento (2011, p.179), “após 1988, o STF apreciou apenas um caso envolvendo obscenidade e, por isso, ainda há muitas dúvidas a serem esclarecidas nessa matéria”.

O único caso julgado pelo STF, ao qual Koatz se refere, foi o HC nº 83.996 impetrado em favor de Gerald Thomas Sievers, um diretor cujas peças teatrais são conhecidas em virtude das suas polêmicas. No dia 17 de agosto de 2003, às duas horas da madrugada, Gerald Thomas encerrou a apresentação de mais uma peça – uma adaptação de “Tristão e Isolda”, que dirigiu no Teatro Municipal do Rio de Janeiro. Ao invés de ouvir os tradicionais aplausos, Gerald Thomas foi vaiado pelo público, que não havia gostado da peça.
 Como forma de protesto pelas vaias que recebia, o diretor de teatro simulou uma masturbação no palco e, em seguida, virou de costas para o público, abaixou as calças até o joelho, arriou a cueca e exibiu suas nádegas para os espectadores que ali se encontravam. A cena foi, inclusive, filmada, tendo gerado ampla repercussão após ser divulgada em cadeia nacional por diversas redes de televisão.

Gerald Thomas foi denunciado pela prática de ato obsceno e, “como a 1ª Turma Recursal dos Juizados Especiais Criminais do Estado do Rio de Janeiro denegou o habeas corpus pedido anteriormente, ele decidiu impetrar novo writ perante o STF, buscando trancar a ação penal". O resultado é que o Supremo Tribunal Federal, após longa discussão, concedeu o referido habeas corpus, por decisão empatada, entendendo que o ato do diretor de teatro estaria inserido no contexto da liberdade de expressão, “ainda que deseducada e de mau gosto”. Segue a ementa e decisão do acórdão:

[...]