Bartolomé de Las Casas:[1]

concepção embrionária dos direitos humanos

Cínthia Zuíla Alves Campos[2]

Mariana Abreu Almeida 

RESUMO

O artigo compreende alguns aspectos da Conquista Espanhola na América Latina, dando ênfase ao massacre sofrido pelos indígenas e à luta do Frei Bartolomé de Las Casas peloa emancipação dos direitos destes, que o fizeram ficar conhecido como o primeiro defensor dos direitos humanos a tentar proteger os ameríndios dos abusos dos colonos. 

PALAVRAS-CHAVE

América espanhola. Bartolomé de Las Casas. Exploração Indígena. Emancipação dos Direitos Humanos

 

1 INTRODUÇÃO

Antes mesmo de pensar nos direitos humanos, e necessário fazer uma reflexão acerca dos fatos, das origens da elaboração dessa concepção tão importante para a história do homem. No presente trabalho, fazendo entender como as barbáries remotas do período da América Latina Colonial abriram a mente de homens como Bartolomé de Las Casas para pensar a humanidade, e dar partida a reflexões do que hoje chamamos de Direitos Humanos, concebidos posteriormente na Revolução Francesa.

A partir daí, o objetivo a ser alcançado neste artigo é olhar para o passado , para o começo da luta indígena pela emancipação de seus direitos para enxergar a realidade atual.

 

2 A Conquista da América e a situação dos povos colonizados — O paraíso Destruído

A conquista da América e sua posterior colonização podem ser consideradas como acontecimentos que mudaram a história da civilização ocidental. A expansão marítima e comercial financiada pelos países ibéricos no fim do século XV, realizou-se com a perda de milhões de vidas e o extermínio de várias civilizações indígenas. Se o Novo Mundo por um lado era considerado um manancial de oportunidades para a exploração e enriquecimento, por outro era ser visto como um verdadeiro inferno para aqueles que se encontravam submetidos pela força à nações européias.

Após alguns contatos amistosos no inicio da colonização, a busca por riquezas e a cristianização dos índios foram as bases do projeto colonial em território americano. Sendo o segundo motivo constantemente utilizado para mascarar o primeiro, inúmeras de atrocidades foram cometidas contra os povos dominados. Tzevtan Todorov coloca os  conquistadores espanhóis como, historicamente, em um período de transição “entre uma Idade Média dominada pela religião e a época moderna, que coloca os bens materiais no topo de sua escala de valores”.[3]

E sobre a política indigenista, o historiador Luiz Koshiba afirma:

[...]a ocupação da América foi concebida pelos ibéricos como um dever ou uma missão religiosa cujo objetivo último era a cristianização dos índios e a salvação de sua alma.[...]Mas o ponto de vista dos povoadores leigos era que[...] os índios eram mão-de-obra a ser recrutada e posta a trabalhar, ou seja, meios para obenção de riqueza pessoal.[4]

Tendo um modo de vida completamente diferente dos povos europeus, os índios não conseguiam suportar tamanha diferença entre culturas, o que gerou o choque inevitável assumindo as mais várias formas de reações indígenas: hostilidade, guerra, suicídios em massa, movimentos de resistência religiosa, etc. O trabalho forçado - encomienda- se mostrou altamente prejudicial aos índios, que não estavam habituados a esse tipo de prática, alem do sedentarismo europeu. Isso somado à grande quantidade de doenças típicas do homem branco, ao sadismo e instinto bestial dos europeus trouxe como resultado a dizimação de milhões de índios.

Estava certo Bartolomé de Las Casas quando disse que a história da colonização americana pelos europeus foi escrita com sangue.

Os espanhóis, com seus cavalos, suas espadas e lanças começaram a praticar crueldades estranhas; entravam nas vilas, burgos e aldeias, não poupando nem as crianças e os homens velhos, nem as mulheres grávidas e parturientes e lhes abriam o ventre e as faziam em pedaços como se estivessem golpeando cordeiros fechados em seu redil. Faziam apostas sobre quem, de um só golpe de espada, fenderia e abriria um homem pela metade, ou quem, mais habilmente e mais destramente, de um só golpe lhe cortaria a cabeça, ou ainda sobre quem abriria as entranhas de um homem de um só golpe. Arrancavam os filhos

dos seios da mãe e lhes esfregavam a cabeça contra os rochedos [...] Faziam certas forcas longas e baixas, de modo que os pés tocavam quase a terra, um para cada treze, em honra

e reverência de Nosso Senhor e de seus doze Apóstolos (como diziam) e deitando-lhes fogo, queimavam vivos todos os que ali estavam presos. Outros, a quem quiseram deixar vivos, cortaram-lhes as duas mãos e assim os deixavam.[5]

No trecho supracitado, Las Casas relata a crueldade e a falta de humanidade dos europeus no seu livro O Paraíso Destruído, em que os colonizadores não mediam esforços para realizar seu objetivo principal de ir em busca de riquezas, os índios pagaram a conta com o ceifamento precoce de milhões de vidas inocentes.

 

3 Século XVI: A Reflexão Pré-Antropológica     

Os primeiros sinais de uma reflexão antropológica são contemporâneos à descoberta da América, o Novo Mundo. Pode se perceber os primeiros sinais de interrogação sobre a existência múltipla do homem, mas não pode ainda ser considerada científica. Ao se deparar com uma sociedade totalmente diversa da sua, onde são diferentes desde hábitos mais simples como os cotidianos até os mais complexos como os religiosos, o homem vê uma necessidade de entender aquelas diferenças.

De fato, nesta época, onde o caráter etnocêntrico por parte do eurocentrismo mostrava-se dominante, "a extrema diversidade das sociedades humanas raramente apareceu aos homens como um fato, e sim como uma aberração exigindo uma justificação.” [6]

Haverá durante todo o período do século XIV até o século XVIII, um debate que de revelará maniqueísta nos termos: inferioridade ou superioridade do índio, natureza ou cultura, bom selvagem ou mau selvagem, bom colonizador ou mau colonizador. Nessas questões ganha especial destaque a construção da figura do mau selvagem pelo colonizador, caracterizada pela total recusa do “outro”, da diferença. Onde há uma recusa pelo “estranho”, que é sempre considerado como selvagem, devido à diferença de hábitos, alimentação, costume, religião, vestimenta etc.

No contexto de colonização espanhola, surgem duas ideologias antagônicas:  uma defendida pelo frei Bartolomé de Las Casas, onde ele afirma que os índios não são bárbaros, pois organizam-se em aldeias, têm uma ordem política e que muitas vezes superam as nações européias com suas virtudes morais; a outra é a defendida pelo jurista Gines de Sepulvera, onde este diz, que os índios são servos por natureza, e que estes merecem ser submetidos ao império de nações mais cultas e humanas, pois só assim eles abandonariam a selvageria e converteriam-se a uma vida mais digna e virtuosa.

O índio era, na maioria das vezes, considerado pelo colonizador europeu como um mau selvagem, que vivia fora da cultura, num estado de natureza, daí a questão levantada por estes de se os índios são homens ou animais. Para responder a essas questões eles procuravam seguir alguns critérios, nunca respeitando as diferenças e sempre tentando inserir o índio no seu modelo de cultura.  As questões mais freqüentes para a classificação do índio como homens eram referentes à religião (o índio tem alma? Pode ser convertido ao catolicismo?), á aparência física (diferença de tonalidade da pele, cabelo, vestimentas), aos comportamentos alimentares (predominância do imaginário do canibalismo), ao fato de falarem uma linguagem “ininteligivel”, à ausência de organizações estatais, à diferença nas organizações familiares (famílias extensas, sexualidade incontida, incesto) entre outras.

Os índios eram assim analisados e definidos não pela sua própria cultura, mas pela falta de elementos ocidentais. Desta forma percebe-se um caráter etnocêntrico, onde o europeu analisava o índio comparativamente a sua própria cultura, colocando o último sempre em falta.

Ao lado desta concepção de “mau selvagem”, pode-se encontrar também uma corrente de pensamento defensora da figura do “bom selvagem”, onde se tinha uma idéia romântica do selvagem enquanto puro, protetor da natureza, feliz. O mundo bom de se viver era o mundo do selvagem, onde se vivia em igualdade, liberdade e paz. Mas mesmo nessa concepção o índio ainda é visto como pertencente à natureza, como inocentes, como detentores da ingenuidade originária do estado de natureza.

Os dois tipos de índios que aparecem no discurso ainda são uma construção imaginária do observador, que não é dotada ainda caráter antropológico. Porém é muito importante para fazer entender alguns fatos na análise da colonização da América, no caso presente, da América Espanhola.

           

4 Bartolomé de Las Casas e sua Proteção aos Direitos dos Amerídios

Bartolomé de Las Casas foi um dos integrantes da segunda viagem de Colombo à América, estando no começo, apenas interessado na obtenção de riquezas, rapidamente se acostumou com o modelo de exploração dos colonizadores, de início aceitando a exploração indígena, mantendo escravos em suas plantações.

Ao retornar à Espanha foi ordenado sacerdote em 1507. Devido às pressões da Coroa Espanhola para os sacerdotes fixarem-se na América no intuito de realizar a política indigenista de conversão dos índios, necessária para amenizar o caráter exploratório, Bartolomé volta à América como sacerdote. E é em dezembro de 1510, após ouvir o Sermão do Advento por Frei Antônio de Montesinos, que Bartolomé começa a seguir o caminho de defensor dos direitos humanos dos ameríndios.

Passou a defender a idéia de que os únicos donos do novo Mundo eram os ameríndios, devendo os espanhóis apenas fazer um trabalho de conversão. Advogava por uma colonização pacifica realizada por meios de lavradores e missionários. Afirmava que era necessário defender os direitos dos índios, pois estes tinham verdadeiros direitos, mas eram impotentes para defendê-los. Manteve suas inflamadas teorias contra a escravidão dos índios – embora, curiosamente, estivesse a favor da escravidão dos africanos – e alegava que todas as guerras contra os índios eram injustas.

Em 1542, para seu contentamento, ocorreu a publicação pelo Rei Carlos das leis Novas que extinguiam o sistema de encomiendas — forma de trabalho compulsório indígena no qual a força de trabalho é trocada pela catequese — e proibiam novas conquistas.[7]

            Nas obras de Las Casas pode-se perceber a constante dedicação aos índios e buscava uma catequização pacifica e humana dentro do processo de conquista, demonstrando suas qualidades e as possibilidades de pacifica cristianização.

O escritor Eduardo Galeano, no seu livro As Veias Abertas da América Latina, descreve brevemente a luta do religioso na colônia espanhola:

O padre Bartolomeu de Las Casas agitava a corte espanhola com suas inflamadas denuncias contra a crueldade dos conquistadores da América. Las casas dedicou sua fervorosa vida a defesa do índio, frente aos desmandos dos mineiros e encomenderos. Ele dizia que os índios preferiam ir ao inferno para assim não se encontrarem com os cristãos. [8]

4.1 Influência de Las Casas para a Formação da Idéia de Direitos Humanos

     Bartolomé exerce uma grande influência na historia da formação dos direito humanos não só por ter sido o precursor destes na defesa dos indígenas, mas por ser um intelectual que não fica apenas na argumentação teórica, mas parte para a realidade concreta dos fatos. Coloca o seu saber à disposição do saber popular, para que o povo possa ser sujeito de sua própria história.

No contexto das teses antagônicas que discutiam sobre a justiça e a injustiça da colonização, Bartolomé de Las casar utilizava do direito natural, e entendia “não ser correto colocar a jurisdição dos colonizadores para além de suas fronteiras”, de maneira que “os indígenas, ainda que gentios, possuíam dignidade e direitos humanos. Esses doutrinadores não reconheciam o poder do Papa e a pretensa jurisdição universal dos monarcas sobre os infiéis”[9]

            A partir de uma visão de ética e de poder – confirmados pelo Evangelho –, Las Casas estatui quatro princípios fundamentais: direito universal de possuir e de dispor das coisas; direito de jurisdição ou de governo natural e inviolável, o que significa que os espanhóis não têm direito de privar os índios de seus governos e autoridades legítimas; os índios são livres por direito natural; todo governo deve estar a serviço da comunidade, tanto o poder civil quanto a autoridade religiosa.

Já no final de sua vida, irá aprofundar ainda mais a sua visão ético-política quando responde às 12 dúvidas de Frei Bartolomeu de Vega no tratado Sobre os Tesouros do Peru, no qual ele parte do Evangelho para afirmar que o princípio básico é o amor universal, e por isso o que deve prevalecer na ordem universal é o direito, o direito de todos e de cada um dos povos. A partir daí é que ele trabalhará a questão do direito concernente à restituição dos bens alheios roubados e indevidamente retidos. Las Casas afirmará sem ambigüidades: a desigualdade no poder e o emprego da força não conferem direitos nem atuam para a igualdade nas relações entre os povos.

 

CONCLUSÃO

Tendo em vista toda informação que já foi acima exposto, e também considerando o contexto social que nos encontramos, aduz-se que, apesar da grande evolução da idéia e da consolidação dos Direitos Humanos, nossa sociedade ainda apresenta chagas coloniais com caráter de indiferença e desigualdade.

Esta pesquisa proporcionou o entendimento da origem do entendimento a cerca dos Direitos fundamentais do homem, através dos primeiros passos da luta indígena pela emancipação de seus direitos. O que permitiu a observação de que mesmo essa luta sendo antiga, a situação precária dos direitos humanos dos índios continua sendo constantemente desrespeitada.

REFERÊNCIAS

GALEANO, Eduardo. As veias abertas da América Latina. São Paulo, Editora Paz e

Terra, 1971.

GALMÉS, Lorenzo. Bartolomeu de Las Casas: defensor dos direitoshumanos. São Paulo: Paulinas, 1991.

KOSHIBA, Luiz. História: Origens, Estruturas e Processos. São Paulo: Atual, 2000.

LAPLATINE, François. Aprender Antropologia. São Paulo: Brasiliense, 1996..

LAS CASAS, Bartolomé de. O paraíso destruído: brevíssima relação da destruição

das Índias. 6ª ed. Porto Alegre: L&PM, 1996.

TODOROV, Tzvetan. A conquista da América: a questão do outro. 2ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 1988.

WOLKMER, Antônio Carlos (org). Direito e justiça na América indígena: da conquista à colonização. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1998.



[1] Artigo científico apresentado à disciplina de Antropologia do  2º período vespertino do curso de Direito da Unidade de Ensino Superior Dom Bosco (UNDB), ministrada pela professora Kátia Núbia, para obtenção de nota.

[2] Acadêmicas do 2º período vespertino do curso de Direito da Unidade de Ensino Superior Dom Bosco.

[3] TODOROV, Tzvetan. A conquista da América: a questão do outro. 2ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 1988. p. 40.

[4] KOSHIBA, Luiz. A Expansão Ultramarinha e a Colonização. In: História: Origens, Estruturas e Processos. São Paulo: Atual, 2000. p. 225

[5] LAS CASAS, Bartolomé de. O paraíso destruído: brevíssima relação da destruição das Índias. 6ª ed. Porto Alegre: L&PM, 1996, p. 30.

[6] LAPLATINE, François. A pré-história da antropologia: a descoberta das diferenças pelos viajantes do século XVI e a dupla resposta ideológica dada daquela época até nossos dias. In: Aprender Antropologia. São Paulo: Brasiliense, 1996. p. 40.

[7] GALMÉS, Lorenzo. Bartolomeu de Las Casas: defensor dos direitoshumanos. São Paulo: Paulinas, 1991. p. 140.

[8] GALEANO, Eduardo. A Febre de Ouro, Febre de Prata. In: As veias abertas da América Latina. São Paulo, Editora Paz e Terra, 1971. p. 49. Grifo nosso.

[9] WOLKMER, Antônio Carlos. Pluralidade jurídica na América luso-hispânica. In: Direito e justiça na América indígena: da conquista à colonização. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1998. p. 84.