Ato político e seu controle judicial: um ensaio sobre os rumos do papel do Judiciário no Estado Constitucional de Direito

 

1. Introdução. 2. O conceito de ato politico. 3. Tratamento do STF aos atos exclusivamente políticos. 4. Análise dos precedentes. 5. Breve síntese da teoria da capacidade institucional. 6. Conclusões. 7. Referências.

 

Palavras-chave: Constitucionalismo; Controle Judicial; Ato Político; Capacidade Institucional.

 

Resumo: tendo por fio a evolução da jurisprudência do Supremo Tribunal Federal sobre os atos exclusivamente políticos, o estudo apresenta alguns questionamentos doutrinários que vêm sendo apresentados sobre a matéria. O objetivo é contribuir para a identificação de balizas para a atuação do Poder Judiciário no controle dos atos estatais. 

 

  1. 1.      Introdução

Com o advento do Estado Constitucional de Direito, a aproximação do direito com a filosofia se exteriorizou por meio da inclusão de preceitos com alta carga valorativa e grande abstração nas Constituições dos Estados. Essa característica desaguou em um enfraquecimento dos limites entre a política e o direito, o que deu ensejo à ampliação da atuação da justiça constitucional. A respeito desse fenômeno, notado em grande parte dos países ocidentais, observa Luís Roberto Barroso:

“De fato, desde o final da Segunda Guerra Mundial verificou-se, na maior parte dos países ocidentais, um avanço da justiça constitucional sobre o espaço da política majoritária, que é aquela feita no âmbito do Legislativo e do Executivo, tendo por combustível o voto popular. Os exemplos são numerosos e inequívocos. No Canadá, a Suprema Corte foi chamada a se manifestar sobre a constitucionalidade de os Estados Unidos fazerem testes com mísseis em solo canadense. Nos Estados Unidos, o último capítulo da eleição presidencial de 2000 foi escrito pela Suprema Corte, no julgamento de Bush v. Gore. Em Israel, a Suprema Corte decidiu sobre a compatibilidade, com a Constituição e com atos internacionais, da construção de um muro na fronteira com o território palestino. A Corte Constitucional da Turquia tem desempenhado um papel vital na preservação de um Estado laico, protegendo-o do avanço do fundamentalismo islâmico. Na Hungria e na Argentina, planos econômicos de largo alcance tiveram sua validade decidida pelas mais altas Cortes. Na Coréia, a Corte Constitucional restituiu o mandato de um presidente que havia sido destituído por impeachment”.[i]

Ao lado desse fenômeno, caminha o denominado ativismo judicial, definido como uma forma de intensa participação do Poder Judiciário na direção da concretização dos valores constitucionais, com grande interferência no espaço reservado aos poderes políticos do Estado.

No Brasil, uma combinação da engenharia institucional presidencialista e a ampla constitucionalização dos direitos[ii] vem dando ensejo a um protagonismo do Poder Judiciário nas decisões políticas do Estado, o que tem proporcionado o surgimento de novos questionamentos sobre os limites da atividade jurisdicional nesta seara.

Elival da Silva Ramos, em obra sobre o tema[iii], menciona como exemplos desse ativismo no Brasil: a aplicação irrefletida da modulação dos efeitos temporais nas decisões de controle de constitucionalidade[iv]; a construção pretoriana da perda de mandado por desfiliação partidária; a restrição à nomeação de parentes para cargos de confiança; e a implementação de direitos sociais veiculados por normas de eficácia limitada.

Diante desse quadro, os questionamentos mais conhecidos são os relativos à legitimidade democrática dos juízes e à politização da Justiça. O primeiro diz respeito à substituição da vontade dos agentes eleitos pelo povo pela vontade do juiz, e o segundo diz respeito à indevida intromissão de interesses meramente políticos na técnica decisória do Poder Judiciário, com a substituição dos métodos jurídicos de argumentação e de persuasão racional pelo da ampla discricionariedade política.

Ainda que estes questionamentos sejam extremamente relevantes e suscetíveis de inúmeros desdobramentos acadêmicos, no presente trabalho, se procurará analisar uma terceira indagação que parece estar sendo incluída no debate jurídico do Supremo Tribunal Federal: o da capacidade institucional do Poder Judiciário.

Diante das características do moderno constitucionalismo e da intensificação do ativismo judicial, têm aparecido novas críticas em relação à indevida intervenção judicial em questões essencialmente políticas. Tais críticas, em síntese, se referem à falta de aparelhamento técnico dos juízes para substituir decisões dos órgãos políticos do Estado e à falta de preocupação do Poder Judiciário com o impacto universal de suas decisões.

Conforme constata Maria Tereza Sadek, “o problema tem muitas dimensões. Dentre elas, uma micro ou pontual relativa aos casos individuais e outra macro referente a problemas de natureza estrutural geral. Sua solução a longo prazo dependerá certamente de respostas que atentem para o conjunto”.[v] Diz-se que o juiz, ao olhar o caso concreto como uma árvore, perde a perspectiva de toda a floresta (BADIN)[vi].  

Sobre esses aspectos, também observa Luís Roberto Barroso:

“A doutrina constitucional contemporânea tem explorado duas idéias que merecem registro: a de capacidades institucionais e a de efeitos sistêmicos. Capacidade institucional envolve a determinação de qual Poder está mais habilitado a produzir a melhor decisão em determinada matéria. Temas envolvendo aspectos técnicos ou científicos de grande complexidade podem não ter no juiz de direito o árbitro mais qualificado, por falta de informação ou conhecimento específico. Formalmente, os membros do Poder Judiciário sempre conservarão a sua competência para o pronunciamento definitivo. Mas em situações como as descritas, normalmente deverão eles prestigiar as manifestações do Legislativo ou do Executivo, cedendo o passo para juízos discricionários dotados de razoabilidade. Em questões como demarcação de terras indígenas ou transposição de rios, em que tenha havido estudos técnicos e científicos adequados, a questão da capacidade institucional deve ser sopesada de maneira criteriosa.

Também o risco de efeitos sistêmicos imprevisíveis e indesejados pode recomendar, em certos casos, uma posição de cautela e deferência por parte do Judiciário. O juiz, por vocação e treinamento, normalmente estará preparado para realizar a justiça do caso concreto, a microjustiça. Ele nem sempre dispõe das informações, do tempo e mesmo do conhecimento para avaliar o impacto de determinadas decisões, proferidas em processos individuais, sobre a realidade de um segmento econômico ou sobre a prestação de um serviço público. Tampouco é passível de responsabilização política por escolhas desastradas. Exemplo emblemático nessa matéria tem sido o setor de saúde. Ao lado de intervenções necessárias e meritórias, tem havido uma profusão de decisões extravagantes ou emocionais em matéria de medicamentos e terapias, que põem em risco a própria continuidade das políticas públicas de saúde, desorganizando a atividade administrativa e comprometendo a alocação dos escassos recursos públicos. Em suma: o Judiciário quase sempre pode, mas nem sempre deve interferir. Ter uma avaliação criteriosa da própria capacidade institucional e optar por não exercer o poder, em auto-limitação espontânea, antes eleva do que diminui.”[vii]

Esses questionamentos põem em evidência as limitações do Poder Judiciário para sobrepor suas decisões às dos demais órgãos do Estado. Tais limitações se referem tanto à pessoa do juiz, cuja formação generalista supostamente não permitiria uma análise técnica sobre o assunto levado à juízo, quanto ao próprio Poder Judiciário, que não disporia de todas as informações e de todo o aparato técnico disponível aos Poderes Executivo e Legislativo.

O reflexo dessa evolução doutrinária pode ser vista na jurisprudência do Supremo Tribunal Federal a respeito das questões exclusivamente políticas, tema que já foi levado ao Supremo Tribunal Federal com diferentes roupagens e cuja relevância reside na alegada existência de um feixe de atos da alçada dos órgãos políticos impermeáveis ao controle judicial.

O estudo da questão passa pela análise do esforço doutrinário realizado na tentativa de se determinar um conceito exato de ato político e seu exame revela a tensão existente entre a repartição de competências desenhada pela teoria da separação dos poderes e a inafastabilidade do controle judicial.

  1. 2.      O conceito de ato político

O tema da revisão de atos políticos pelo Poder Judiciário não é novo no Brasil, tendo sido tratado nas Constituições de 1934 e de 1937. Tais diplomas, com efeito, eram expressos em vedar a possibilidade de o Poder Judiciário conhecer sobre questões políticas.

Em que pese a atual Constituição Federal não ter sido dotada de dispositivo semelhante, ainda é notada na doutrina uma fértil discussão sobre os limites da intervenção judicial em relação aos atos exclusivamente políticos. Diante de tal quadro, surge a indagação sobre o que seria, ao certo, o ato político e o que o distinguiria dos demais atos praticados pelos órgãos do Estado.

A tarefa de tentar delimitar as questões políticas é extremamente complexa e já foi objeto de análise por respeitáveis publicistas nacionais e estrangeiros. Carlos Roberto Siqueira de Castro, em importante capítulo de sua obra “O Devido Processo Legal e os Princípios da Razoabilidade e da Proporcionalidade”[viii], procurou apresentar o tema com apoio na experiência norte-americana.

Nos Estados Unidos, conforme discorre o referido autor, a tese de as questões de natureza política não serem suscetíveis de discussão em processo judicial foi iniciada em 18 de julho de 1793, quando o então presidente George Washington, por meio de seu secretário de Estado, Thomas Jefferson, indagou à Suprema Corte se este tribunal poderia responder a consultas presidenciais envolvendo a interpretação da Constituição e das leis do país em face de tratados assinados entre os Estados Unidos e a França na época.

O questionamento teria sido então respondido pelo Chief Justice Jay, que afastou a possibilidade de revisão judicial de atos políticos praticados no desempenho da competência exclusiva do Poder Executivo. O pronunciamento, considerado uma exceção à vedação de atividade meramente consultiva por parte da Suprema Corte, foi baseado na separação de poderes delineada na Constituição norte-americana.

A respeito do conteúdo do ato político, três vertentes doutrinárias procuram trazer luzes sobre o assunto no direito norte-americano. A primeira corrente doutrinária tributa a existência das questões políticas ao “compromisso constitucional” pelo qual aos órgãos políticos do Estado são atribuídas competências políticas indelegáveis para o enfrentamento de questões de Governo.

O precedente jurisprudencial em que se funda esta primeira corrente é o caso Backer v. Carr[ix], julgado pela Suprema Corte em 1962, no qual este tribunal fixou o entendimento de que a impossibilidade de apreciação judicial de uma questão política seria uma decorrência da separação dos poderes.

Tal entendimento foi reiterado em 1969, no caso Powell v. McComack[x], em que o Chief Justice Warren declarou ser impossível o julgamento por uma corte federal sobre uma questão política, em razão da separação dos poderes prevista na Constituição.

A segunda orientação doutrinária norte-americana defende que a natureza de determinados assuntos não permite que eles sejam resolvidos por meio dos paradigmas normativos utilizados pelos juízes. O precedente em que se baseia tal corrente é o caso Coleman v. Miller[xi], julgado em 1939, no qual a Suprema Corte, ao apreciar uma questão formal relacionada com uma emenda que versava sobre o trabalho infantil, decidiu que a questão apresentava caráter político e incompatível com o controle judicial. Para tanto, o Chief Justice Hughes argumentou que a matéria envolvia a análise de condições sociais, políticas e econômicas, que não poderiam ser recebidas como provas em juízo, além de a apreciação do caso representar uma extravagante extensão da autoridade judicial.

Já a terceira corrente considera as questões políticas como aquelas que o Poder Judiciário, no exercício de um poder discricionário, entender não competir à sua esfera de apreciação, levando em conta a probabilidade embaraços institucionais.

Além das teses baseadas no direito norte-americano, pode-se mencionar outras de origem européia como a teoria da motivação, ou théorie du móbile[xii], explicada por Duguit (apud FAGUNDES, 2010, p. 198), de acordo com a qual ato político é todo aquele que possui motivação política; a  teoria da natureza do ato[xiii], que distingue os atos administrativos dos atos governamentais, sendo estes os praticados para a “tutela das exigências supremas da vida do Estado”, nas palavras de Ranelletti (apud FAGUNDES, 2010, p. 198) e, por esse motivo, insindicáveis pelo Poder Judiciário; a teoria empírica[xiv] do direito francês referida por Bonnard (apud FAGUNDES, 2010, p. 198), que, considerando a impossibilidade científica de se estabelecer uma classificação precisa, relega ao juiz a conceituação do ato no caso concreto; e a  teoria da legitimação necessária[xv], que defende ser político o ato legítimo e, sendo legítimo, não passível revisão pelo Poder Judiciário.   

As teorias são várias, assim como vários são os argumentos que pretendem justificar a imunidade do ato político ao controle judicial. Cada uma das proposições mencionadas possui importância científica dentro de seus respectivos contextos histórico e social, mas o que todas têm em comum é, a dificuldade para delimitar um conceito seguro de ato político.

Por esse motivo, Seabra Fagundes observa: “os autores reconhecem quase sempre intransponível a dificuldade de definição do ato político, e, quando procuram transpô-la, se perdem em especiosidades incompatíveis com a síntese conceitual.”[xvi]

Não obstante as diversas orientações verificadas tanto no direito norte-americano, quanto no europeu, a tradição jurídica brasileira parece sempre ter tido uma posição bem definida a respeito das questões exclusivamente políticas.

E assim se deu no Brasil porque a doutrina, desde cedo, procurou dar um conteúdo rico ao princípio da inafastabilidade do controle judicial, o que reduziu o impacto da tendência européia de situar o ato político em um plano distinto dos demais atos estatais e reduziu o apego à separação dos poderes notada no direito norte-americano.

É interessante notar que, do ponto de vista do tema ora estudado, o princípio da separação dos poderes ganhou uma conotação especial na doutrina pátria. De fato, diante da circunstância de as primeiras Constituições da República não terem expressamente sido dotadas de um enunciado referente à inafastabilidade do controle judiciário, os doutrinadores, desde cedo, o consideravam como uma decorrência implícita da separação dos poderes [xvii].

E o principio da inafastabilidade do controle judicial, uma vez adotado com a amplitude sugerida, sempre excluiu a possibilidade de serem afastados da apreciação do Poder Judiciário quaisquer atos políticos com a potencialidade de ameaçar ou lesionar direitos. A esse propósito, discorreu Rui Barbosa (apud FAGUNDES, 2010, p. 202):

“Atos políticos do Congresso ou do Executivo, na acepção em que esse qualificativo traduz exceção à competência da Justiça, considerando-se aqueles, a respeito dos quais a lei confiou a matéria à discrição prudencial do poder, e o exercício dela não lesa direitos constitucionais do indivíduo. Em prejuízo destes, o direito constitucional não permite arbítrio de nenhum dos poderes”. [xviii]

Partindo desse pressuposto, Seabra Fagundes elaborou um conceito de ato exclusivamente político ao mesmo tempo simples e instrumental, que cumpriu o desiderato de exprimir a visão da doutrina nacional sobre o tema. Dispôs o publicista:

“A determinação do ato estritamente político se nos afigura mais simples e fácil. Sim, porque aqui, além da finalidade, há também, como elemento distintivo, o conteúdo, isto é, o limite da sua repercussão jurídica. Para que o ato administrativo seja estritamente político, há de conter medida de fins unicamente políticos (finalidade) e, ao mesmo tempo, há de circunscrever-se ao âmbito interno do mecanismo estatal, e, se o exceder, não deve alcançar direitos individuais explicitamente reconhecidos”[xix].

Vê-se, portanto, que nesta concepção o ato político, além de uma finalidade política, deve limitar-se a aspectos exclusivamente internos da administração pública. Ainda assim, não poderá, face ao princípio da inafastabilidade do controle jurisdicional, violar ou ameaçar qualquer direito. É nesses estritos termos que Seabra Fagundes (no que é seguido por muitos autores) admite a imunidade do ato político ao controle judicial.

A teoria não destoa das lições de Celso Antônio Bandeira de Mello[xx], que, apesar de reconhecer uma disciplina peculiar ao ato político, atribui a este uma relevância totalmente diversa da que lhe é conferida pela doutrina européia, já que a não submissão ao controle jurisdicional, no entendimento do autor, não se coadunaria com o texto constitucional brasileiro, notadamente com o art. 5º, XXXV.

Entendimento semelhante é verificado na obra de Lúcia Valle Figueiredo, que define a possibilidade de controle judicial como a “mola propulsora do Estado de Direito”[xxi]e de Juarez Freitas, que nega com veemência a existência autônoma do ato exclusivamente político, defendendo um pleno controle judicial de toda a atividade estatal nos seguintes termos:

“toda a discricionariedade legítima somente o será se guardar vinculação com os imperativos da prudência, incompatíveis com os grilhões da irreflexão. Com base nisso, não se está a pedir, em especial ao Poder Judiciário o controle dos juízos de conveniência em si, mas o controle das motivações obrigatórias, é dizer, a vigilância quanto a aspectos que dizem respeito não ao merecimento em si, mas à compatibilidade plena do ato administrativo com os princípios, entre os quais os da eficiência, da eficácia e da economicidade.

Já não se admitem atos exclusivamente políticos, pois se vincula o administrador aos motivos que ofertar. Não deve prosperar a insindicabilidade das decisões administrativas, ainda mais que em todas as searas há desvios ignominiosos dos escassos recursos públicos.” [xxii]

Nota-se, portanto, que a doutrina nacional tende a moldar o ato político de acordo com os contornos do princípio da inafastabilidade do controle judicial. E assim fazendo, os autores sugerem um conceito extraordinariamente restrito, para que o dogma da inafastabilidade do controle judicial não seja negado em qualquer hipótese.

A seguir, será apresentada uma análise de alguns julgados do Supremo Tribunal Federal sobre o controle judicial do ato exclusivamente político, com o objetivo de traçar um panorama de como a doutrina formada acerca do ato político impactou na jurisprudência da Corte e, principalmente, porque novos questionamentos sobre os limites da intervenção judicial na arena política têm provocado reflexões sobre o papel do Poder Judiciário no jogo democrático.

  1. 3.      Tratamento do STF aos atos exclusivamente políticos

O tema do controle judicial sobre atos políticos foi invocado por diversas vezes perante o Supremo Tribunal Federal. A questão foi levantada, via de regra, em situações de tensão entre os poderes do Estado e, nessas oportunidades, ao tribunal coube analisar tanto a presença de um ato estritamente político quanto a sindicabilidade desse ato.

No mandado de Segurança 1.423[xxiii], julgado em 22 de fevereiro de 1951, o então deputado recém eleito Carlos Castilho Cabral se insurgia contra um ato da Mesa da Câmara dos Deputados que previa a possibilidade de a legislatura anterior ser extraordinariamente convocada até o dia 9 de março de 1951.

Dos fundamentos do voto do Ministro Luiz Galloti, verifica-se a estipulação das balizas do controle judicial sobre atos políticos. Lê-se, pois, do voto do Ministro, que transcreveu lição de Pontes de Miranda sobre o tema:

“O que um Poder, legislativo, Executivo ou Judiciário faz – dentro das suas atribuições – vale nos casos concretos; o que qualquer deles pratica fora das suas atribuições, ferindo direitos públicos ou privados, a que correspondem ações ou exceções, é suscetível de ser considerado inconstitucional. Quando Marshall dizia que as questões por sua natureza política nunca poderiam ser ventiladas na Corte Suprema pronunciava frase vaga, que não se pode repetir sem perigo. Onde a ‘questão política’ se liga a atos que violavam direitos, a ação leva-a à Justiça e a Justiça pode conhecer dela. Já não é exclusivamente política. Nunca se considera questão exclusivamente política qualquer questão que consiste em saber – se existe ou qual a extensão ou amplitude de uma atribuição das entidades políticas – (União, Estados-membros, Distrito Federal, Municípios) de algum dos poderes públicos (...) ou de algum dos seus órgãos e se foi, ou não, violado, ou se não pode ser violado (habeas corpus, mandado de segurança) direito individual”.

Diante desses parâmetros, decidiu o Ministro Relator afastar a questão preliminar de incompetência do Poder Judiciário para julgar questão exclusivamente política, entendendo não estarem em causa “aspectos de oportunidade, acerto ou conveniência do ato, hipótese em que não caberia apreciação judicial”. Concluiu, por isso, que “há que se examinar a legitimidade do ato no seu assento constitucional, matéria jurídica, que o Judiciário aprecia.”.

No Mandado de Segurança nº 3.557[xxiv], de 14 de dezembro de 1955, por seu turno, o então presidente da República Café Filho pediu a declaração da inconstitucionalidade de resoluções do Senado Federal e da Câmara dos Deputados que o impediam de retornar ao exercício da presidência da República, após seu afastamento por questões de saúde. O estranho pedido era reflexo do momento histórico que o Brasil atravessava, quando já eram notados rumores do golpe militar que se anunciava.

Café Filho assumiu a Presidência após o suicídio de Getúlio Vargas e sua base política era formada por políticos, empresários e militares contrários à política populista do governo anterior. Em novembro de 1955, pressionado para impedir a posse de Juscelino e Jango, pediu afastamento do cargo para tratar problemas cardíacos, ocasião em que Carlos Luz, presidente da Câmara dos Deputados, assumiu a presidência.

O presidente em exercício, vinculado a políticos e militares aliados à UDN, passou a conspirar para evitar a posse de Juscelino Kubitscheck e, como uma de suas primeiras medidas, destituiu o Ministro da Guerra, General Henrique Lott.

Este general, contudo, reassumiu seu cargo à força e mobilizou tropas para destituir Carlos Luz, substituindo-o pelo senador Nereu Ramos[xxv], que teria o compromisso de garantir a posse do presidente eleito. Nesse atribulado contexto, Café Filho tentou retomar o seu cargo (provavelmente atendendo às pressões dos golpistas), quando foi obstado por medidas do Poder Legislativo, que o declararam impedido.

Ao apreciar o mandado de segurança impetrado contra o ato do Poder Legislativo, o Supremo Tribunal Federal foi novamente chamado a analisar o tema do controle judicial sobre os atos exclusivamente políticos, questão preliminar alegada nas informações prestadas pela autoridade impetrada e na manifestação do Procurador Geral da República.

Mais uma vez decidiu aquela Corte que, estando presente lesão a direito individual, não pode o ato deixar de ser apreciado pelo Poder Judiciário. Do longo acórdão, depreendem-se várias manifestações dos ministros nesse sentido, dentre as quais se destaca a proferida por Nélson Hungria:

“Desde que se encontre em jogo uma lesão de direito individual, seja civil, seja político, decorrente de ato do Poder Legislativo, ao arrepio de preceito constitucional, a interferência do Poder Judiciário, pelo órgão do Supremo Tribunal, é incontestável, pouco importando a feição marcadamente política do ato. O Poder Legislativo não está imune à censura do Poder Judiciário quando, descarrilando de cânones constitucionais, ofende direitos subjetivos individuais.”

Neste caso, ainda que a tese de incompetência do Poder Judiciário para apreciar questões exclusivamente políticas tenha sido expressamente rejeitada pelos ministros, o julgamento do mandado de segurança ficou suspenso enquanto durou a situação de anormalidade institucional apontada e, finalmente, foi julgado prejudicado com a posse do presidente eleito Juscelino Kubitscheck, em 32 de janeiro de 1956.

A possibilidade de controle judicial sobre questões políticas também foi levada ao Supremo Tribunal Federal por ocasião do “impeachment” do então presidente Fernando Collor de Mello.

No bojo do Mandado de Segurança nº 21.564[xxvi], o impetrante objetivava ver reconhecida a ilegalidade do processo ao qual estava sendo submetido perante o Poder Legislativo. Nesse intuito, desde logo buscou distinguir o objeto de seu pleito da matéria política ou de assunto interna corporis do Poder Legislativo.

A tese de que se tratava de questão “interna corporis” foi levantada pela autoridade impetrada, e chegou a ser acolhida no julgamento pelo voto do ministro Paulo Brossard. Todavia, prevaleceu a tese contrária, no sentido de que a questão poderia ser apreciada pelo Judiciário.

No voto do Ministro Celso de Mello, verifica-se a enunciação do posicionamento da Corte a respeito:

“Sendo assim, impõe-se reconhecer que o postulado da inafastabilidade do controle jurisdicional legitima, de modo amplo, nas hipóteses de lesão a direitos individuais ou ao regime das liberdades públicas, a possibilidade de atuação reparadora do Judiciário, especialmente quando os atos vulneradores de situações jurídicas promanem de órgãos ou agentes integrantes do aparelho de Estado.”

(...)

“o princípio da separação de poderes não pode ser invocado para estabelecer, em torno de um dos órgãos da soberania nacional, um indevassável círculo de imunidade, insuscetível de revisão judicial, não obstante a concretização eventual de lesões a direitos e a garantias individuais.”

A tese foi mais uma vez reforçada pela Corte no julgamento do Mandado de Segurança nº 23.452[xxvii], no qual o Supremo Tribunal Federal delineou os limites dos poderes das comissões parlamentares de inquérito. Do voto do ministro Celso de Mello, depreende-se:

“Com efeito, o sistema constitucional brasileiro, ao consagrar o princípio da limitação de poderes, teve por objetivo instituir modelo destinado a impedir a formação de instâncias hegemônicas de poder no âmbito do Estado, em ordem a neutralizar, no plano político-jurídico, a possibilidade de dominação institucional de qualquer dos poderes da República sobre os demais órgãos da soberania nacional.

Com a finalidade de impedir que o exercício abusivo das prerrogativas estatais pudesse conduzir a práticas que transgredissem o regime das liberdades públicas e que sufocassem pela opressão do poder, os direitos e garantias individuais, atribuiu-se ao Poder Judiciário a fução eminente de controlar os excessos por qualquer das esferas governamentais.”

Da análise dos precedentes apresentados, verifica-se uma forte tendência de o Supremo Tribunal Federal fixar sua posição a respeito do controle judicial sobre atos políticos. A posição anunciada (e repetida em diversos momentos pela Corte na história de nossa democracia), vai ao encontro da teoria sedimentada na doutrina pátria, e seus estritos limites excluem a possibilidade de qualquer lesão ou ameaça a direito ser afastada do controle judicial sob alegação de tratar-se de questão exclusivamente política.

Na jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, contudo, parece ter surgido um entendimento diverso do consolidado na forma descrita. Com efeito, no julgamento do pedido de extradição formulado pelo Governo da Itália em relação a Cesare Battisti, autuado naquela corte sob o nº 1.085[xxviii], surgiu um novo argumento que pode representar uma virada substancial no entendimento da Corte sobre o tema dos atos exclusivamente políticos.

Ainda que o acórdão da extradição propriamente dita não tenha sido disponibilizado para consulta, em reclamação interposta pelo governo da Itália no bojo do mesmo processo, o Supremo Tribunal Federal foi levado a decidir novamente sobre o caso, de modo que deste acórdão (este sim disponível) é possível extrair alguns fundamentos que indicam um novo posicionamento do tribunal sobre a questão.

Do voto do ministro Luiz Fux, depreende-se a clara impossibilidade de o Supremo Tribunal Federal substituir a decisão política do chefe do Executivo. Lê-se do voto:

“Malgrado tenha este Supremo Tribunal anulado a decisão do Ministro da Justiça que concedeu refúgio político ao extraditando, não pode, agora, substituir-se ao Chefe de Estado e determinar a remessa de Cesar Battisti às autoridades italianas. Uma decisão com comando semelhante, exigindo que o Presidente da República proceda à extradição, seria tão aberrante e tão contrária aos cânones constitucionais quanto um imaginário acórdão que determinasse a secessão de um Estado-membro.

(...)

Em face do princípio da separação dos Poderes (art. 2º CRFB), não compete ao Supremo Tribunal Federal rever o mérito de decisão do Presidente da República, enquanto no exercício da soberania do país, tendo em vista que o texto constitucional atribui a este, e não ao Egrégio Tribunal, a função de representação externa do país.

O voto, ao invocar a teoria da separação dos poderes, apartou-se da tradicional jurisprudência sedimentada na Corte sobre a inafastabilidade do controle judicial e avançou ainda mais ao fazer expressa menção à teoria da capacidade institucional:

“Compete ao Presidente da República, dentro da liberdade interpretativa que decorre de suas atribuições de Chefe de Estado, para caracterizar a natureza dos delitos, apreciar o contexto político atual e as possíveis perseguições contra o extraditando relativas ao presente, o que é permitido pelo texto do Tratado firmado (art. III, 1, f). o Supremo Tribunal Federal, além de não dispor de competência constitucional para proceder a semelhante exame, carece de capacidade institucional para tanto.

(...)

Conclui-se do exposto que, ainda que se entenda que o ato do Presidente da República é vinculado aos termos do Tratado de Extradição, apenas ele, como Chefe de Estado, dispõe de capacidade institucional para avaliar a existência dos requisitos autorizadores da não entrega, especialmente a expressão ‘atos de perseguição’ – trata-se de ato político-administrativo vinculado a conceitos jurídicos indeterminados.”

Em consequência, o Supremo Tribunal Federal não conheceu da reclamação interposta pelo governo da Itália, decidindo pela manutenção da decisão do presidente da República.

  1. 4.      Análise dos precedentes

Da análise dos precedentes trazidos, verifica-se que o Supremo Tribunal Federal, historicamente, reiterou o dogma da inafastabilidade do controle judicial em face das questões políticas. O posicionamento ia ao encontro da tese defendida por nossa tradicional doutrina, que sempre viu no amplo controle judicial um pressuposto indissociável do Estado de Direito.

Como se pode extrair dos acórdãos carreados ao estudo, a Corte, sempre que foi chamada a se manifestar sobre o assunto, fez questão de anunciar que tinha poderes para apreciar o ato político pela retórica referência ao princípio da inafastabilidade do controle jurisdicional.

No caso Battisti, como se procurou ressaltar, o Supremo Tribunal Federal afastou-se dessa tradição e decidiu a controvérsia com base na teoria da capacidade institucional, doutrina que, com uma visão crítica sobre a judicialização da política, procura demonstrar a insuficiência instrumental do Poder Judiciário para lidar com decisões políticas.

A teoria, que será exposta de forma mais pormenorizada a seguir, foi descrita de forma sintética por Arthur Sanchez Badin, que, em dissertação de mestrado, observou:

“A crítica vem amparada em estudos teóricos e empíricos que procuraram aferir se o resultado da ação judicial realmente atinge esses objetivos ou se, do contrário, o ativismo judicial no mais das vezes acaba atingindo fins diametralmente opostos aos almejados.

Essa desconexão entre intenção e resultado da ação judicial pode ser explicada pelos estudos empreendidos segundo a abordagem que ora reúno sob denominação de ‘capacidade institucional’, centrada na ‘crítica da invasão dos espaços políticos pelos órgãos judiciários sob o ponto de vista da incapacidade de seus instrumentos para resolver esse tipo de disputa’ (VERISSIMO, 2006:15).”[xxix]

De fato, ainda que a tendência da Corte sempre tenha sido a de considerar o processo de extradição como uma fase de verificação da legalidade no fim da qual caberia ao presidente da República, discricionariamente, extraditar ou não a pessoa (sem fazer grandes digressões sobre a natureza política do ato),[xxx] ao reconhecer, no caso Battisti, que o Poder Judiciário não é a instituição adequada para analisar os conceitos indeterminados contidos em um ato político do Poder Executivo, o Supremo Tribunal Federal excepcionou a rígida doutrina formada acerca da inafastabilidade do controle judicial.

O precedente é importante, porque reflete a preocupação da comunidade jurídica com o impacto da intensa participação do Poder Judiciário no espaço público, principalmente naquele relacionado com as decisões políticas.

E essa contenção do Poder Judiciário decorrente de uma auto-crítica institucional é circunstância fundamental para a reflexão sobre qual rumo seguirá o Poder Judiciário no contexto democrático.

Se, por um lado, o juiz “boca da lei” nascido dos princípios liberais da Revolução Francesa é figura morta, por outro, o juiz situado no Estado Democrático e Constitucional de Direito, ainda que dotado de plenos poderes para intervir intensamente na área pública, deve levar em conta o dinâmico e complexo conjunto de conseqüências sociais, econômicas e políticas que podem decorrer de suas decisões.

Para tanto, além das preocupações com a proporcionalidade e a racionalidade do conteúdo do processo decisório, é interessante que o Poder Judiciário dê atenção às peculiaridades institucionais dos órgãos responsáveis pela decisão em cada caso concreto.

Será que o Judiciário é institucionalmente equipado para decidir melhor que o Poder Executivo sobre determinada questão de política externa? Será que o juiz tem elementos suficientes para decidir, em um caso concreto, se a população de determinada cidade precisa de um estádio, ou de uma creche? Será que o Poder Judiciário tem elementos suficientes para decidir sobre o direcionamento de dotações orçamentárias a determinada área em detrimento de outra?

São questões que não comportam uma resposta apriorística e tornam necessário um olhar não apenas para o ordenamento jurídico, mas também para as capacidades da instituição que vai tomar a decisão, porque, invariavelmente, a decisão sobre quem decide define o conteúdo do que vai ser decidido.

Como bem observa Badin, “existem diversas soluções razoáveis e defensáveis no âmbito de intelecção do texto constitucional e a depender de quem for encarregado de fazer as escolhas, dentro do amplo leque de possibilidades, o resultado da ação será diferente”[xxxi].

Ao ponderar sobre as deficiências do Poder Judiciário para decidir sobre uma questão exclusivamente política, o Supremo Tribunal Federal deu um passo adiante em relação ao seu posicionamento tradicional, que se limitava a enunciar a inafastabilidade do controle judicial.

Acrescentando à discussão a análise das virtudes e deficiências da instituição incumbida da decisão, a Corte enriqueceu sua argumentação, abrindo espaço para um novo olhar a respeito da função da jurisdição no atual contexto.

  1. 5.      Breve síntese da teoria da capacidade institucional

A teoria referida no voto do ministro Luiz Fux do caso Batistti, denominada neste trabalho de teoria da capacidade institucional, é bem definida por Adrian Vermeule, ex-assessor do juiz Antonin Scalia da Suprema Corte dos Estados Unidos e atualmente professor da Faculdade de Direito de Harvard. A ideia é apresentada em um artigo publicado em conjunto com Cass Sustein, que faz parte da obra “Judging under uncertainty”, na qual os autores procuram dar parâmetros de como deve decidir o juiz quando a norma invocada não for suficientemente clara. O trabalho começa com o seguinte questionamento:

“Suponha que uma lei, promulgada há várias décadas, proíba a introdução de qualquer aditivo a cor da comida, se esse aditivo "causar câncer" de seres humanos ou animais. Suponha que as novas tecnologias, capazes de detectar baixo nível de substâncias cancerígenas, têm mostrado que muitos aditivos potencialmente causam câncer, embora o risco estatístico é frequentemente tão pequeno quanto o risco de comer dois amendoins com níveis permitidos pelo governo de aflatoxinas.
Suponha, finalmente, que uma empresa pretende introduzir um aditivo em alimentos de determinada cor,
reconhecendo que o aditivo causa câncer, mas insistindo em que o risco é infinitamente pequeno,
e que, se a barreira legal fosse aplicada, demonstraria uma situação absurda na qual o propósito legislativo de tornar os alimentos seguros não foi promovido. Em resposta, o governo argumenta
que o estatuto deve ser interpretado literalmente, e que todos os aditivos que ‘causam câncer’ estão
banidos. Como deve o tribunal resolver a disputa?”[xxxii]

Os autores pensam que as atuais teorias de interpretação jurídica não apresentam uma estrutura adequada para pensar sobre questões desse tipo.  Para eles, as questões são debatidas em um alto nível de abstração, fazendo menção a perguntas sobre a natureza da interpretação, ou grandes afirmações sobre a democracia, a legitimidade, autoridade e constitucionalismo, o que, segundo pensam, não pode resultar em nenhum ponto de vista razoável de interpretação.

A proposta, ao que parece, não é abandonar o método dogmático de interpretação, mas agregá-lo de mais um elemento, qual seja, a análise sobre as capacidades instrumentais da instituição que será encarregada de decidir. Nesse sentido, discorrem Cass R. Sunstein e Adrian Vermeule[xxxiii]:

“Vimos que as vozes influentes no direito constitucional argumentam em favor de estratégias interpretativas em uma forma que é inadequada em relação à questão das capacidades institucionais. Aqueles que enfatizam argumentos filosóficos, ou a idéia de holística, ou interpretações intratextuais, parecem-nos ter dado muito pouca atenção às questões institucionais. Aqui como em outros lugares, nossa apresentação é que uma afirmação sobre a interpretação adequada é incompleta se não prestar atenção a considerações de governabilidade, capacidade judicial e efeitos sistêmicos, além de impor as reivindicações habituais sobre a legitimidade e autoridade constitucional”.  

Na opinião de seus defensores, o juiz deve ser formalista, ou seja, quando o texto for claro, a decisão judicial deve corresponder a uma fiel aplicação da lei. Por outro lado, quando o comando legal não for suficientemente preciso, o juiz deve respeitar as interpretações fixadas pelo Poder Legislativo ou pelo Poder Executivo.

Para Vermeule, o Poder Judiciário dispõe de informações limitadas e a formação generalista dos juízes dificulta um adequado processamento das informações disponíveis. O juiz, na opinião do autor, não pode apurar o custo de suas decisões em decorrência da complexidade das questões postas em conflito.

Por isso, a teoria critica a tendência ao ativismo e à politização do Poder Judiciário, sugerindo que o juiz considere as capacidades e limitações institucionais na eleição de seus métodos de interpretação. A respeito das sugestões de Vermeule, sintetiza Dimitri Dimoulis:

“Em resumo, o formalismo de Vermule apresenta duas características. Primeiro, uma forte desconfiança perante as capacidades do Poder Judiciário, chegando o autor a recomendar aos juízes uma postura de modéstia (modesty) e humildade (humble posture), já que suas capacidades funcionais-institucionais seriam inferiores àquelas de outras autoridades estatais.

Segundo, a opção formalista se justifica pragmaticamente porque produz as melhores consequências (better consequences) e não por razões exiomáticas, tais como a vinculatividade da linguagem, a hierarquia das fontes do direito e as finalidades do sistema jurídico (segurança e legalidade como imperativo de submissão do Judiciário à decisão política das autoridades legitimadas pelo voto popular).” [xxxiv]   

Embora inaugure uma nova discussão sobre os limites da intervenção do Poder Judiciário em questões essencialmente políticas e aprofunde a análise sobre as consequências resultantes do ativismo judicial, a teoria da capacidade institucional apresenta inconsistências e dificuldades de adaptação à realidade brasileira.

A análise proposta corresponde a um exame empírico das potencialidades de cada instituição, com o objetivo de atribuir o poder de decisão ao órgão mais capaz, o que parte, de acordo com o pensamento de seus defensores, de severas críticas ao Poder Judiciário.

Ocorre que, na prática, é extremamente difícil obter informações suficientes que permitam tal comparação. Não há meios hábeis a reunir elementos confiáveis sobre as técnicas de interpretação, as capacidades e os valores vigentes em cada uma das instituições. A proposta ao que parece, torna a técnica decisória desmesuradamente complexa, o que implica em obstáculos insuperáveis a sua aplicação.

O foco apenas nas incapacidades do Poder Judiciário também representa uma deficiência da teoria de Vermeule, porque olvida as dificuldades existentes para os outros órgãos do Estado. A esse respeito, observa Badin, ao propor uma análise institucional comparada:

“Embora tenha cumprido papel fundamental ao ampliar nossa compreensão a respeito das limitações do poder judiciário, a “crítica da capacidade institucional” não é capaz, por si só, de responder à pergunta básica: se e quando deve o judiciário atuar na formulação das políticas públicas. Pois se é certo, como pressupõem alguns dos trabalhos da “crítica da capacidade institucional”, que o judiciário tem enormes dificuldades e limitações para fazer as escolhas de políticas públicas, não está claro que as demais instituições candidatáveis a fazer as mesmas escolhas não tenham seu desempenho ainda mais comprometido por suas próprias limitações.

A resposta à pergunta acima não será dada, portanto, a partir de uma análise monoinstitucional, centrada exclusivamente nas imperfeições do judiciário. É preciso comparar suas fraquezas e méritos relativamente às fraquezas e méritos das demais instituições candidatáveis a fazer as escolhas de políticas públicas em cada caso concreto. Pois todas as instituições são imperfeitas (no sentido de que não funcionam tal qual idealizado) e por isso mesmo a resposta à pergunta acima depende de uma análise institucional comparada.” [xxxv]

 Outra inconsistência que se poderia verificar na transposição da teoria da capacidade institucional para a realidade brasileira seria a incompatibilidade de suas premissas com o ordenamento jurídico. No nosso país, a ampla intervenção do Poder Judiciário em questões políticas decorre de uma opção bem delineada na Constituição Federal.

O controle abstrato de constitucionalidade, o mandado de injunção e a possibilidade de editar súmulas vinculantes são exemplos de uma clara opção da Constituição por um Poder Judiciário presente e ativo. Por isso, parece contraditória a proposta de limitar a atuação judicial a pretexto de prestigiar uma interpretação formal. A respeito dessa inconsistência, observa Dimitri Dimoulis:

“O que diria Vermeule no atual debate sobre o controle de políticas públicas pelo Judiciário? Vermeule examinaria provavelmente se os juízes brasileiros estão tecnicamente preparados para verificar com êxito a constitucionalidade da atuação do legislador nas várias áreas de política social e avaliar suas omissões, criando, eventualmente, normas substitutivas. Nesse âmbito, avaliaria os eventuais riscos e vantagens de tal intervenção do Judiciário do ponto de vista econômico e político, comparando-os com a determinação das políticas públicas pelos demais poderes.

Mas o problema jurídico não é saber o que podem fazer os juízes como formuladores de políticas públicas e muito menos o que os próprios juízes, enquanto cidadãos preocupados pelo bem comum, consideram como política social adequada. Só interessa saber qual é a repartição (e hierarquização) de competências prevista pela Constituição sobre essa questão. Isso decorre de dados normativos, como a criação do Mandado de Injunção para possibilitar o exercício de direitos fundamentais, ou, em contraponto, a proclamação dos direitos sociais de maneira propositalmente aberta e programática, deixando ampla liberdade de conformação ao legislador. E independe de opiniões pessoais e de projeções econômico-políticas sobre as consequências da ampliação do papel interventivo do Judiciário.” [xxxvi]

A teoria da capacidade institucional, conforme se procurou esclarecer na breve síntese acima, representa a expressão de uma reação ao ativismo judicial e à intervenção judicial nas decisões políticas dos demais órgãos do Estado.

 Ainda que passível de críticas e eivada inconsistências, a teoria tem o inegável mérito de trazer o juiz para o plano da realidade, confrontando-o com as consequências sociais, econômicas e políticas de suas decisões e colocando-o numa posição de reverência aos demais Poderes do Estado.

Ao propor ao Poder Judiciário que, ao decidir, considere as suas deficiências e limitações institucionais, a doutrina inclui um novo elemento na atividade hermenêutica, fazendo com que o juiz trabalhe com um senso de auto-crítica que o situa no jogo democrático e o responsabiliza ainda mais pelas decisões tomadas em substituição aos órgãos políticos.

  1. 6.      Conclusão

Da teoria do moderno constitucionalismo, reponta o controle judicial como um de seus mais importantes dogmas, que confere ao juiz a relevante missão de extrair dos abstratos princípios contidos na Constituição soluções e utilidades concretas para a vida das pessoas.

Em decorrência dessa posição de destaque conferida pelas Constituições ao Poder Judiciário, surgiu uma preocupação que vem ocupando há algum tempo os estudiosos do direito: como garantir que essa atividade de aplicar ao caso concreto princípios dotados de alto grau de abstração seja feita de forma segura e racional?

A resposta à questão, inicialmente, foi construída a partir de critérios teóricos destinados a orientar o juiz na sua atividade de criar soluções jurídicas por meio da interpretação de princípios e normas.

 Em seguida, já diante de uma judicialização intensa, a doutrina passou a procurar, além de critérios dogmáticos para a atividade hermenêutica, limites ao próprio controle judicial.

Neste segundo momento, inserem-se as teorias relacionadas com a capacidade institucional, que evidenciam as deficiências e falhas do Poder Judiciário para lidar com decisões essencialmente políticas.

A teoria, sugerindo ao juiz uma posição de modéstia perante os órgãos políticos do Estado, inclui novos argumentos à técnica decisória, o que coloca o juiz às voltas com as consequências sociais, econômicas e políticas de suas decisões.

Ao propor que o juiz se abstenha de substituir os órgãos políticos quando estes se mostrarem institucionalmente mais bem aparelhados para lidar com determinada questão (ainda que com as falhas e inconsistências apontadas no trabalho), a doutrina procura conferir mais racionalidade e tecnicidade à atividade jurisdicional, o que representa um avanço para a doutrina constitucional.

Na jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, a evolução da discussão pode ser verificada nas decisões sobre o controle judicial de atos exclusivamente políticos. Após uma seguida reiteração da tradição jurídica formada em torno do princípio da inafastabilidade do controle judicial, a Corte se absteve de analisar determinado ato da alçada do chefe do Poder Executivo. E o fez reconhecendo que o Poder Judiciário não seria a instituição adequada para examinar os pressupostos do ato essencialmente político impugnado.

A relevância do precedente reside exatamente no reconhecimento da incapacidade do Poder Judiciário para substituir uma decisão tomada no exercício de função política do Poder Executivo. A decisão, como se procurou observar, reflete uma preocupação da comunidade jurídica com as consequências que o protagonismo do Poder Judiciário na área pública pode gerar.

Sem negar a importância da atuação do Poder Judiciário na arena política, a doutrina vem se preocupando não apenas em estabelecer critérios dogmáticos para um juiz ideal decidir sobre casos hipotéticos, mas com as limitações materiais inerentes às instituições e a própria falibilidade humana.

A escolha de quem decide, inegavelmente, implica na escolha do conteúdo da decisão. Por isso parece ser importante que o princípio da inafastabilidade do controle judicial seja temperado com outros aspectos inerentes à complexa realidade democrática, para que sua aplicação sirva tanto para garantir o livre exercício das atribuições políticas dos órgãos estatais quanto para proteger direitos garantidos pela Constituição.

O papel do Poder Judiciário no atual Estado Constitucional e Democrático de Direito é ainda uma questão aberta, mas as propostas doutrinárias que estão sendo apresentadas apontam para a necessidade de uma maior reverência por parte do julgador às decisões políticas tomadas por órgãos mais bem informados ou equipados.

  1. 7.      Referências

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[i] BARROSO, Luís Roberto. Judicialização, Ativismo Judicial e Legitimidade Democrática. Disponível em: http://www.direitofranca.br/direitonovo/FKCEimagens/file/ArtigoBarroso_para_Selecao.pdf. Acesso em 31/10/2011.

[ii] SADEK, Maria  Tereza. Judiciário e Arena Pública: um olhar a partir da Ciência Política. In: Ada Pellegrini Grinover; Kazuo Watanabe. (Org.). O Controle Jurisdicional de Políticas Públicas. 1 ed. Rio de Janeiro: Editora Forense, 2011, v. , p. 1-33. p. 19

[iii] RAMOS, Elival da Silva. Ativismo Judicial. Parâmetros Dogmáticos. São Paulo: Editora Saraiva, 2010, 1ª Ed., p. 235/264.

[iv] Para ilustrar esta hipótese, o autor se refere ao Recurso Extraordinário n. 197.917-8/SP, em que o Supremo Tribunal Federal conferiu efeitos “pro futuro” à declaração de inconstitucionalidade de dispositivo contido na Lei Orgânica do Município de Mira Estrela que estabelecia o número de vereadores daquele Município em desrespeito à proporção exigida pela Constituição Federal.

[v] Op. Cit., p. 25

[vi] Op. Cit., p. 31

[vii] BARROSO, Luís Roberto. Judicialização, Ativismo Judicial e Legitimidade Democrática. Disponível em: http://www.direitofranca.br/direitonovo/FKCEimagens/file/ArtigoBarroso_para_Selecao.pdf. Acesso em 31/10/2011.

[viii] CASTRO, Carlos Roberto Siqueira de. O devido processo legal e os princípios da razoabilidade e da proporcionalidade. Rio de Janeiro: Forense, 2010, 5ª Ed.

[ix] 369 U.S. 186 (1962)

[x] 395 U.S. 488 (1969)

[xi] 307 U.S. (1939)

[xii] DUGUIT, Léon. Traité droit constitutionnel, Paris: Boccard. Vol. 2. P. 306.

[xiii] RANELLETTI, Oreste. La guarenteigie della giustizia nella pubblica amministrazione. A. Giuffrè, 1934 p. 56

[xiv] BONNARD, Roger. Précis de droit adminisitrative. 1935, p.200.

[xv] SHAFER, Jairo Gilberto. O Problema da Fiscalização da Constitucionalidade dos Atos Políticos em Geral. Revista Interesse Público. Belo Horizonte, n. 35. Jan. 2006

[xvi] FAGUNDES, Miguel Seabra. O controle dos atos administrativos pelo Poder Judiciário, Rio de Janeiro: Forense. 2010, p. 198

[xvii] GRINOVER, Ada Pellegrini. As garantias constitucionais do direito de ação. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1973, p. 134.

[xviii] BARBOSA, Rui. Comentários à Constituição Federal, coligidos e ordenados por Homero Pires, v. 4. p. 192.

[xix] Op. Cit. P. 199

[xx] MELLO, Celso Antonio Banderia de. Curso de Direito Administrativo. São Paulo: Malheiros, 2006, p. 368.

[xxi] FIGUEIREDO, Lúcia Valle. Estudos de Direito Administrativo. Belo Horizonte: Fórum Editora. 2007, p. 301.

[xxii] FREITAS. Juarez. Discricionariedade Administrativa e o Direito Fundamental à Boa Adiministração. São Paulo: Malheiros. 2010. 2ª Ed. p. 32.

[xxiii] http://www.stf.jus.br

[xxiv]  http://www.stf.jus.br

[xxv] http://www.historiabrasileira.com/brasil-republica/governo-de-cafe-filho. Acesso em 26/09/2011.

[xxvi] http://www.stf.jus.br

[xxvii] http://www.stf.jus.br

[xxviii] http://www.stf.jus.br

[xxix] BADIN, Arthur Sanchez. Controle Judicial de Políticas Públicas. Contribuição ao estudo do tema da judicialização da política pela abordagem da análise institucional comparada de Neil K. Komesar. Dissertação de Mestrado apresentada ao Departamento de Direito Econômico e Financeiro da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo.

[xxx]  Posição encontrada, entre outras, nas extradições nºs 272, 885 e 1.114

[xxxi] Op. Cit., p. 87

[xxxii] VERMULE, Adrian. Interpretation and Institutions. U Chicago Law & Economics, OlinWorking Paper, Nº 156, 2002; U Chicago Public Law Research Paper nº 28, p. 2. Tradução livre.

[xxxiii] VERMULE, Adrian. Interpretation and Institutions. U Chicago Law & Economics, OlinWorking Paper, Nº 156, 2002; U Chicago Public Law Research Paper nº 28, p. 49.

[xxxiv]  DIMOULIS, Dimitri. Sentidos e Vantagens cognitivas e problemas teóricos do formalismo jurídico in Direito e Interpretação. Racionalidades e Instituições. São Paulo: Editora Saraiva, 2011. p. 229.

[xxxv] Op. Cit., p. 90

[xxxvi] Op. Cit. p. 235