AS MEDIDAS PROVISÓRIAS E O PRINCÍPIO DA LEGALIDADE TRIBUTÁRIA 

Gabriela MEROTTI[1] 

RESUMO: O princípio da legalidade tributária impõe ao Estado limitações que não pode invadir o patrimônio de seus súditos sem que antes haja instituído um tributo por meio de lei. Muito já se debateu na doutrina sobre a possibilidade de instituição e majoração de impostos por meio de medida provisória ante ao fato de que a Constituição conferiu a estas “força de lei”. O Supremo Tribunal Federal já se posicionou a respeito inclinando-se pela possibilidade. Ocorre, no entanto, que é necessário se proceder a distinção entre esses dois institutos, lei e medida provisória, a fim de que possamos verdadeiramente e estreme de erros optar pela solução que melhor adimple as intenções do legislador constituinte.

Palavras-chave: Legalidade. Medida Provisória. Instituição. Majoração. Tributos.

1 INTRODUÇÃO

O presente ensaio tem o objetivo de elucidar a questão que de há muito é travada na doutrina tributária acerca do princípio da legalidade que rege o Direito Tributário e a possibilidade, ou não, de o Executivo, em uma situação de relevância e urgência, se instituir ou majorar tributos valendo-se das medidas provisórias.

O tema é polêmico e não é por menos que a doutrina se divide. A complexidade do caso demanda um estudo mais detido do caso e de suas particularidades. Tentar-se-á, em apertadas linhas, traçar um panorama geral do problema, pelo que, desde já, pedimos licença ao leitor.

2 O PRINCÍPIO DA LEGALIDADE TRIBUTÁRIA

Um dos princípios basilares de um Estado dito democrático é o da legalidade. Em nossa Constituiçãoo mandamento está previsto, a um primeiro momento, no artigo 5º, inciso II. Posteriormente, em seara tributária, o encontramos insculpido no artigo 150, I, da mesma Lex Maxima.

Segundo Celso Antônio Bandeira de Mello, o princípio da legalidade é o princípio específico do Estado de Direito, é justamente aquele que o qualifica e que lhe dá a identidade própria.

Através dele pretende-se a garantia de que a atuação do Executivo nada mais seja senão a concretização da vontade geral, expressada através da lei. Avoca-se a ideia de soberania popular, de exaltação da cidadania, ideia esta consagrada pelo art. 1º da Constituição Federal que proclama que "todo poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição". Enfim, o princípio da legalidade "(...) é a tradução jurídica de um propósito político: o de submeter os exercentes do poder em concreto - o administrativo - a um quadro normativo que embargue favoritismos, perseguições ou desmandos." [2]

É de se ver, portanto, que apenas e tão somente a lei poderá instituir ou majorar tributos. Como dito, a lei é exigida para a instituição de todo e qualquer tributo, não havendo tal exigência apenas para o caso dos impostos. O que se tem discutido na doutrina é justamente qual a amplitude do termo “lei” utilizado no artigo 150, inciso I, da Constituição Federal e se as medidas provisórias poderiam ser entendidas como compreendidas nesta disposição.

Não há um consenso.

O que é imprescindível é que se defina a natureza jurídica das medidas provisórias para apenas depois concluirmos pela possibilidade ou impossibilidade de se instituir e majorar tributos por meio deste ato do Poder Executivo.

3 DA NATUREZA JURÍDICA DAS MEDIDAS PROVISÓRIAS

Na esteira das Constituições modernas e de traço social, nossa Constituição de 1988 previu o instituto das medidas provisórias para se valer o Poder Executivo nos casos de relevância e urgência, naqueles casos em que a decisão do Governo deve ser tomada de imediato não se podendo esperar a vagarosa e ineficiente labuta do Poder Legislativo, cabendo a este apenas fazer um controle repressivo da medida adotada.

Dispõe o art. 62 Constituição Federal, com a nova redação dada pela Emenda Constitucional nº. 32, de 11 de setembro de 2001, sobre as medidas provisórias, que poderão ser adotadas pelo Presidente da República, em caso de relevância e urgência, devendo submetê-las de imediato ao Congresso Nacional.

O jurista Marco Aurélio Greco sustenta que a medida provisória é ato administrativo dotado de força de lei.

De outra banda, outros concluem como sendo um ato de governo com força de lei, vez que emana do chefe do Poder Executivo.

Outro posicionamento é o que a concebe como um poder de cautela legislativa conferido ao Presidente da República, afigurando-se meio idôneo de impedir, na esfera das atividades normativas estatais, a efetivação do periculum in mora e tornar possível e eficaz a prestação legislativa do Estado. Enfim, a medida provisória seria um projeto de lei com força cautelar de lei.

Já para José Afonso da Silva, a medida provisória tem natureza de lei. Segundo o autor, as medidas provisórias são “leis especiais dotadas de vigência provisória imediata ou medidas de lei sujeitas a condição resolutiva”.

Importante é a lição de Celso Antônio Bandeira de Mello que traça a primeira diferença entre as leis e as medidas provisórias: “(...) as medidas provisórias correspondem a uma forma excepcional de regular certos assuntos, ao passo que as leis são via normal de discipliná-los." [3]

A segunda diferença se sediaria no fato de que as medidas provisórias são, por essência, efêmeras, ao passo que as leis tem caráter indeterminado e, quando são temporárias, já possuem seu prazo fixado previamente, ao contrário da medida provisória que possui duração máxima prevista na Constituição Federal.

Outra diferença reside em que a medida provisória que não é convertida em lei perde sua eficácia desde o início, ao contrário do que acontece com a lei ao ser revogada.

As medidas provisórias são, pois, precárias, é dizer, podem ser derrubadas pelo Congresso a qualquer momento dentro do prazo em que deve apreciá-las, em contraste com a lei, cuja persistência só depende do próprio órgão que a emanou.

Por derradeiro, as medidas provisórias, para que sejam criadas dependem dos pressupostos de relevância e urgência enquanto que no que se refere à lei, tais pressupostos não são exigidos para que ela seja editada.

Notada a diferença entre a lei e a medida provisória, em que pese a expressão "força de lei" utilizada pelo constituinte, resta certo o desrespeito ao princípio da legalidade, mais especificamente à estrita legalidade tributária, na instituição ou majoração de tributos através de medida provisória. Muito embora o Supremo Tribunal Federal já tenha se manifestado acerca do assunto tomando, inclusive, orientação diversa da aqui exposta, cremos não ser o posicionamento correto, por tudo quanto já brevemente exposto.[4]

No mesmo sentido, Eduardo de Moraes Sabbag:

“A corrente majoritária na doutrina não admite a medida provisória como ato normativo que acata os princípios constitucionais tributários, dentre os quais se destacam o princípio da legalidade tributária, o princípio da anterioridade tributária, o princípio da segurança jurídica. (Manual de Direito Tributário, 2012, pág. 82)

 

Em que pese entendimento contrário, é oportuno trazer a baila uma crítica proferida pelo Ministro Celso de Mello, no RE 239.286-6/PR, ao que concerne ao tema sob luzes.

Sustenta o Ilustre Ministro que a crescente apropriação institucional do poder de legislar, pelo Presidente da República, tem permitido a degradação da medida provisória em nítida “desmedida provisória”:

 

“(...) Devo ressalvar, inicialmente, na linha do voto vencido que proferi, em 13-08-1997, no julgamento final da ADI 1.135-DF, Rel.p/ o acórdão Min. Sepúlveda Pertence a minha posição pessoal, que, estimulada por permanente reflexão sobre o tema, repudia a possibilidade constitucional de o Presidente da República, mediante edição de medida provisória, dispor sobre a instituição ou majoração de qualquer tributo. A crescente apropriação institucional do poder de legislar, pelo Presidente da República, tem despertado graves preocupações de ordem jurídica em razão de a utilização excessiva das medidas provisórias causar profundas distorções que se projetam no plano das relações políticas entre os Poderes Executivo e Legislativo. O exercício dessa excepcional prerrogativa presidencial, precisamente porque transformado em inaceitável prática ordinária de Governo, torna necessário – em função dos paradigmas constitucionais, que, de um lado, consagram a separação dos poderes e o princípio da liberdade e que, de outro, repelem a formação de ordens normativas fundadas em processos legislativos de caráter autocrático – que se imponham limites materiais ao uso extraordinário competência de editar atos com força de lei, outorgada, ao Chefe do Poder Executivo da União, pelo art. 62 da Constituição da República. É natural – considerando-se a crescente complexidade que qualifica as atribuições do estado contemporâneo – que lhe concedam meios institucionais destinados a viabilizar produção normativa ágil que permita, ao Poder Público, em casos de efetiva necessidade e de real urgência, neutralizar situações de grave risco para a ordem pública (...). Cumpre ter presente, bem por isso, no que se refere ao poder de editar medidas provisórias a advertência exposta em autorizado magistério doutrinário (FEEREIRA FILHO, Manoel Gonçalves.” Do Processo Legislativo”, 3.ed., Saraiva, item n.152,1995, p.235): “Trata-se de um grave abuso. Ele importa no mesmo mal que se condenava no decreto-lei, Istoé, importa em concentração do poder de administrar com o poder de legislar, uma violação frontal à separação dos poderes.” Esse comportamento governamental faz instaurar, no plano do sistema político-institucional brasileiro, uma perigosa práxis descaracterizadora da natureza mesma do regime de governo consagrado na Constituição da República, como pude enfatizar, em voto vencido, no Supremo Tribunal Federal, quando do julgamento, em 1997, da ADI1.687-DF.(...)”

 

Sendo assim, parece aparente a violação às disposições constitucionais a instituição e majoração de tributos por meio de mera medida provisória, apresentando-se como medida temerária aos contribuintes haja visto que lei e medida provisória são institutos diferentes, criados para finalidades diferentes, não se justificando qualquer confusão e miscelânea quanto aos meios de fixação de obrigações tributárias.  

3 CONCLUSÃO

Por todo exposto, é de se concluir pela impossibilidade jurídica de se instituir e majorar impostos tendo como instrumento uma medida provisória em respeito e homenagem ao princípio insculpido nos artigos 5º, inciso II, e 150, inciso I, ambos da Constituição Federal, qual seja, a legalidade. É de se ver que a Constituição conferiu às medidas provisórias “força de lei”, no entanto, com lei estes atos não podem se confundir. Em sendo institutos diferentes, geram, por assim dizer, efeitos diferentes. A lei, por ser medida mais formalista e respeitar o procedimento legislativo regular, é conferida maior possibilidade de invasão no patrimônio do particular.

O mesmo não se diga das medidas provisórias que são atos veiculados pelo Poder Executivo e, em muitas vezes, utilizado de forma arbitrária e ilegal, fora dos casos de necessidade e urgência. Sendo assim, inviável é se admitir que se proceda a instituição ou mesmo a majoração de tributos por meio desses atos, sob pena de se ferir de morte princípios de insigne importância tutelados pela Constituição, aos quais esta exigiu cláusula de legalidade estrita. Regra básica de hermenêutica jurídica é que as limitações devem ser interpretadas restritivamente, não se mostrando viável que se admita uma restrição ao direito dos particulares por meio de medida provisória.  Ademais, o próprio caráter efêmero das medidas provisórias, poderia gerar uma latente insegurança para as relações jurídico-tributárias.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília: Senado, 1988.

ATALIBA, Geraldo. República e Constituição. 2ª ed. São Paulo: Malheiros, 1998.

BALEEIRO, Aliomar. Curso de Direito Tributário Brasileiro.[atualizado por Misabel Abreu Machado Derzi].Rio de Janeiro: Forense, 1999.

COELHO, Sacha Calmon Navarro. Curso de Direito Tributário Brasileiro. Rio de Janeiro: Forense, 1999.

LENZA, Pedro. Breves Comentários sobre as Medidas Provisórias de Acordo com a Emenda Constitucional n. 32, de 11.9.2001. Complexo Jurídico Damásio de Jesus [on line] acessado em 15/03/2013.

MARTINS, Ives Gandra. Sistema Tributário na Constituição de 1988. São Paulo: Saraiva, 1992.

MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo. São Paulo: Malheiros, 1999.

__________. Curso de Direito Administrativo. São Paulo: Malheiros, 2002.

NICOLAU, Gustavo Rene. Novo Processo Legislativo de MP's. Direitonet [on line] acessado em 16/03/2013.

SABBAG, Eduardo de Moraes. Manual de Direito Tributário. São Paulo: Saraiva, 2012.



1Discente do 5º ano do curso de Direito das Faculdades Integradas “Antonio Eufrásio de Toledo” de Presidente Prudente. [email protected]

[2] MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo. São Paulo: Malheiros, 1999, pág. 59.

[3] MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo. São Paulo: Malheiros, 2002, pág. 115. No mesmo sentido é o entender de Eduardo Sabbag: “A MP tem apenas “força de lei” (art. 62, caput, CF), não se confundindo, portanto, com a leiem si. Conquanto o STF tenha sacramentado este “caráter legal” de que se reveste a MP, não quer dizer tal chancela que a MP seja uma lei, propriamente dita. Aliomar Baleeiro (V. Balleiro, Aliomar. Direito Tributário Brasileiro. Atualização de Misabel Abreu Machado Derzi. 11.ed. Rio de Janeiro: Forense, 2007, p.53.), aliás enfatiza este ponto, mostrando que o fato de o legislador ter usado a expressão “força de lei”, indica exatamente que MP não é lei. Nessa esteira, segue Vitorio Cassone (CASSONE, Vittorio. Verbete 1/16467. Repertório de Jurisprudencias IOB: Tributário, Constitucional e Administrativo, São Paulo: IOB, n. 19, out. 2001, PP. 569-575.) E, se tem “força de lei”, não é exatamente igual à lei, pelo fato de estar sujeita às vicissitudes da “conversão em lei”, pelo Congresso Nacional, que pode dar-se total ou parcialmente, e, até, rejeitada ou não ser apreciada no prazo de 120 dias, gerando os efeitos que lhe são próprios (ex tunc ou ex nunc), conforme o caso. (...);”

[4] O posicionamento adotado pelo Supremo Tribunal Federal é no sentido de admitir a instituição e majoração dos impostos com base em medidas provisórias: “Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 1.005-1 - DF de 19/05/1995, relator Ministro Moreira Alves: Tendo em vista que a Medida Provisória nada mais é, em última análise, do que modalidade de Decreto-Lei (e assim o é na Itália, em cuja Constituição a nossa, a esse respeito, se inspirou), a propósito do qual esta Corte, sob o império da Constituição anterior, firmou o entendimento de que ele, em matéria tributária, poderia também instituir ou aumentar tributo por ter força de lei, observando-se, por isso, o princípio constitucional da legalidade, não se pode, num exame inicial compatível com o requerido para a análise do pedido de liminar, ter objeção dessa ordem como suficientemente relevante para a concessão da cautelar requerida".