Introdução

O decurso do tempo produz resultados importantes na lei, realizando nascimento, alteração, transmissão ou perda de direitos. Na seara penal o transcorrer do tempo recai sobre a conveniência política de ser mantida a persecutio criminis contra o autor da infração ou de se executar a sanção em face do lapso temporal minuciosamente determinado pela lei.

Nosso ordenamento jurídico prevê várias situações em que pode ocorrer a extinção da punibilidade. De acordo com o Artigo 107, inciso IV do Código Penal Brasileiro, a prescrição é uma das modalidades que extingue o fato punível. É um benefício conferido ao réu quando o Estado não consegue satisfazer a persecução penal e o poder-dever de punir o sujeito pelo delito a ele imputado.

Assim sendo, regula-se o prazo prescricional levando em consideração o máximo da pena privativa de liberdade em abstrato, como também, pela pena efetivamente aplicada. O tempo máximo para que ocorra a prescrição é de vinte anos e o mínimo é de três anos, este último foi alterado recentemente por força da Lei nº 12.234, de 05 de maio de 2010.

O objetivo da publicação da lei em comento foi provocar alteração nos prazos a fim de possibilitar a Polícia judiciária e os membros do Ministério Público maior tempo para a perseguição penal.

Ainda, no que toca ao tema em estudo, ou seja, a prescrição retroativa, esta surgiu na década de sessenta, mais precisamente em 1964 com a edição da Súmula 146 do STF. Com a reforma penal ocorrida no ano de 1984 esta passou a resultar da combinação das disposições dos §§ 1º e 2º do Artigo 110 do Código Penal Brasileiro e do Artigo 109 do mesmo estatuto. Mencionado instituto sempre foi alvo de vários debates, quer no campo doutrinário, quer no campo jurisprudencial, sobretudo, com o advento da Lei nº 12.234, datada de 05 de maio de 2010.

 

Espécies de Prescrição

O Código Penal Brasileiro contém duas espécies de prescrição: a) Prescrição da Pretensão Punitiva (PPP); e b) Pretensão da Punição Executória (PPE). A primeira que é chamada também como prescrição da ação penal, ocorre antes do trânsito em julgado da sentença final, enquanto a segunda, também conhecida como prescrição da pena ou da condenação, ou, ainda, de prescrição da execução penal, só ocorre após o trânsito em julgado da sentença condenatória (Art. 110. caput, CPB).

A prescrição em matéria criminal é de ordem pública, razão pela qual pode ser decretada pelo juiz ex officio, ou a requerimento das partes, em qualquer fase do processo, consoante o artigo 61 do Código de Processo Penal. Senão vejamos: “Em qualquer fase do processo, o juiz, se reconhecer extinta a punibilidade, deverá declará-lo de ofício.”

Podendo, conforme a doutrina e a jurisprudência, ser pleiteada por meio de habeas corpus ou da revisão criminal.

A chamada prescrição da pretensão punitiva verifica-se antes do trânsito em julgado da sentença final condenatória e acarreta a perda, pelo Estado, da pretensão de obter uma decisão acerca do crime que imputa a alguém. Por referido motivo, não implica responsabilidade ou culpabilidade para o acusado, não reflete nos seus antecedentes e nem marca futura reincidência. Regula-se pelo Artigo 109 e seus incisos.

Nos termos do artigo 110, caput, CPB, a prescrição, depois de transitar em julgado a sentença condenatória, regula-se pela pena imposta e verifica-se nos prazos fixados no artigo 109, os quais se aumentam de um terço se o condenado é reincidente.

 

Imprescritibilidade

O artigo 5º da Constituição Federal de 1988 elenca duas hipóteses em que não ocorre a prescrição penal:

Inciso XLII: a prática de racismo constitui crime inafiançável e imprescritível, sujeito à pena de reclusão, nos termos da lei.

Inciso XLIV: constitui crime inafiançável e imprescritível a ação de grupos armados, civis ou militares, contra a ordem constitucional e o Estado Democrático.

Além deste preceito constitucional, o ordenamento jurídico conta com uma legislação infraconstitucional que regulamenta os incisos supra. A Lei nº 7.716/89 que tipifica a conduta dos crimes resultantes de preconceito de raça e cor, e a Lei nº 7.170/83, a chamada popularmente como Lei de Segurança Nacional, que define os crimes contra a segurança nacional, a ordem política e social, estabelece seu processo e julgamento e dá outras providências.

 Por se caracterizar um direito individual, as hipóteses de imprescritibilidade não poderão ser ampliadas, nem mesmo por meio de emenda constitucional, por se tratar de cláusula pétrea (núcleo constitucional intangível), conforme se verifica da vedação material explícita ao poder de revisão, imposta pelo artigo 60, §4º, CFRB/88. Vejamos o texto:

Art.60. A Constituição Federal poderá ser emendada mediante proposta:

§ 4º: Não será objeto de deliberação a proposta de emenda tendente a abolir:

IV – os direitos e garantias individuais.

 

Prescrição Retroativa

Nos termos do antigo parágrafo único do artigo 110 do CPB, depois da sentença condenatória de que somente o réu tivesse recorrido, a prescrição regulava-se pela pena imposta. A pena concreta servia de base para o cálculo prescricional que começava a partir da publicação da sentença condenatória. Suponha-se que o réu tivesse sido condenado a três meses de detenção, transitando em julgado a condenação para a acusação. A partir da sentença iniciava-se um período de dois anos da prescrição da pretensão punitiva. Como a sentença ainda não havia transitado em julgado para a defesa não se podia falar em prescrição da pretensão executória. Os dois anos deviam ser contados da data da publicação da sentença para frente, não tendo efeito retroativo, isto é, não se podendo contá-los a partir da consumação do crime ou do recebimento da denuncia.

A prescrição retroativa é um instituto genuinamente brasileiro, e, originou-se com a edição da Súmula 146 pelo STF em 1964. O e. Tribunal interpretando sobredito parágrafo passou a entender que “a prescrição da ação penal regula-se pela pena concretizada na sentença, quando não há recurso da acusação”. Conforme magistérios de Damásio de Jesus (2003, p. 728), significava: “quando não havia recurso da acusação, a pena concreta tinha efeito de regular o prazo anterior da prescrição da pretensão punitiva”.

E segue, exemplificando como passou a ser aplicado o princípio sumular:

“Suponha-se que um sujeito tivesse praticado crime de lesão corporal leve no dia 05/05/1976. Como o máximo da pena privativa de liberdade é de um ano, a prescrição da pretensão punitiva (da ação) ocorreria em quatro anos. Se o Promotor de Justiça não oferecesse denúncia ate 05/05/1980, não mais poderia fazê-lo, em face da prescrição. Suponha-se, entretanto, que a denúncia viesse a ser recebida no dia 03/10/1976, interrompendo-se o prazo prescricional e ensejando que recomeçasse a ser contado, por inteiro. De modo que a partir de 03/10/1976 deveríamos recomeçar a contar o prazo de quatro anos. O juiz deveria proferir sentença até 02/10/1980. Se não o fizesse, não poderia condenar mais o réu, diante da prescrição. Imagine-se que o juiz o condenasse a três meses de detenção em 10/11/1978, recorrendo a defesa e transitando em julgado a decisão para o Ministério Público. O STF, aplicando a Súmula 146, orientava-se no sentido de que, satisfeita a acusação com a quantidade da pena imposta, esta é que deveria ter regulado o prazo prescricional anterior. Se a pena era inferior a um ano, o prazo prescricional da pretensão punitiva era de dois anos, decorridos entre a data do recebimento da denúncia e a da publicação da sentença condenatória. Dessa forma, quando o juiz condenou o réu, o Estado já havia perdido o poder-dever de punir, atingido pela prescrição”.

Com a reforma na parte geral do Código Penal ocorrida em 1984 por força da Lei nº 7.209, o instituto da prescrição retroativa passou a resultar da combinação das duas disposições dos §§ 1º e 2º do artigo 110 e artigo 109 do CPB.

A prescrição, preconiza o §1º, depois da sentença condenatória com trânsito em julgado para a acusação, ou depois de improvido seu recurso, regula-se pela pena aplicada. Por seu turno, reza o §2º que a prescrição, de que trata o parágrafo anterior, pode ter por termo inicial data anterior à do recebimento da denúncia ou da queixa. Essa previsão legal representa precisamente a instituição da prescrição retroativa, exatamente nos moldes da Súmula 146.

Damásio Evangelista de Jesus apud César Dário (2009, p. 274), lecionou a respeito de referido instituto:

“Desde que transitada em julgado para a acusação, ou julgado improcedente o seu recurso, verifica-se o quantum da pena imposta na sentença condenatória. A seguir, adapta-se tal prazo a um dos incisos do art. 109 do Código Penal. Encontrado o respectivo período prescricional, procura-se encaixá-lo entre os dois pólos: a data do termo inicial, de acordo com o art. 111, e a do recebimento da denúncia (ou queixa) (RT 627/349), ou entre esta e a da publicação da sentença condenatória”.

Não Cabe ao juiz de primeiro grau reconhecer a prescrição retroativa, pois ao prolatar a sentença exaure sua jurisdição. O juiz de execução também não é competente, cabendo-lhe apenas declarar a prescrição da pretensão executória. Destarte, a prescrição retroativa pode ser reconhecida de ofício pelo Tribunal ou em grau de Habeas Corpus, Apelação e Revisão, como também em Embargos de Declaração, Infringentes e Agravo de Execução. Em se tratando de competência originária do Tribunal na impede que seja declarada a extinção da punibilidade, ainda que o réu seja condenado, não sendo obstáculo a interposição de recurso especial ou extraordinário sem efeito suspensivo.

 

Distinção Doutrinária da Prescrição Retroativa

A modalidade da prescrição da pretensão punitiva divide-se em abstrata, superveniente ou intercorrente e retroativa. Esta última possui uma subdivisão que a doutrina classificou em pré-processual e processual. Na primeira, é feito o cálculo do recebimento da denúncia ou queixa até a prática do fato delituoso. Já para a segunda, a prescrição da pretensão punitiva é aquela contada para trás, ou seja, da sentença penal condenatória até o recebimento da denúncia ou queixa.

Portanto, era patente a existência de dois cômputos distintos da prescrição penal retroativa.

 

LEI Nº 12.234, DE 05 DE MAIO DE 2010

A promulgação da Lei nº 12.234 em 05 de maio de 2010, resultante do Projeto de Lei nº 1.383/03, de autoria do Deputado Antônio Carlos Biscaia (PT – RJ), foi bem recepcionada por parte dos penalistas. Principalmente pela Polícia Judiciária, constitucionalmente responsável pelas investigações criminais, e a Promotoria de Justiça, a quem incumbe dentre as diversas funções, a de ofertar denúncia contra acusados, por meio da competente ação pública, a fim de que seja prestado o poder jurisdicional. A nova lei em vigor contém na íntegra o teor abaixo discriminado:

O PRESIDENTE DA REPÚBLICA Faço saber que o Congresso Nacional decreta e eu sanciono a seguinte Lei:

Art. 1º Esta Lei altera os arts. 109 e 110 do Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940 – Código Penal, para excluir a prescrição retroativa. (grifo nosso)

Art. 109. A prescrição, antes de transitar em julgado a sentença penal, salvo disposto no § 1º do Art. 110 deste Código, regula-se pelo máximo da pena privativa de liberdade cominada ao crime, verificando-se:

VI – em 3 (três) anos, se o máximo da pena é inferior a 1 (um) ano. (grifo nosso)

Art. 110................................................................................

§ 1º A prescrição, depois da sentença condenatória com trânsito em julgado para a acusação ou depois de improvido seu recurso, regula-se pela pena aplicada, não podendo, em nenhuma hipótese, ter por termo inicial data anterior à denúncia ou queixa. (grifo nosso)

§ 2º (Revogado). ”(NR)

Art. 3º Esta Lei entra em vigor na data de sua publicação.

Art. 4º Revoga-se o § 2º do Art. 11º do Código Penal.

Brasília, 5 de maio de 2010; 189º da Independência e 122º da República.

LUIZ INÁCIO LULA DA SILVA

Verifica-se que a intenção do legislador foi tentar extinguir da sistemática penal a prescrição retroativa, conforme preconiza o artigo 1º da lei em questão, embora a doutrina majoritária entenda que não foi o que aconteceu na prática. Sendo esse o meu humilde posicionamento.

 

Modificações Introduzidas no Ordenamento Jurídico

Conforme preleciona o Professor Luiz Flávio Gomes (apud Assis 2010, p. 64), a lei em comento inseriu no ordenamento jurídico nacional, as modificações seguintes:

Primeira: antes, quando a pena máxima aplicada ao infrator fosse inferior a um ano, a prescrição em abstrato acontecia em dois anos. Agora foi fixado em três anos (que passou a ser o menor prazo prescricional previsto no artigo 109 do Código Penal). Isso afetou a prescrição das sanções da lei em execução penal (que também passou a ser de três anos).

Segunda: a prescrição retroativa (prescrição contada para trás, depois da sentença condenatória com trânsito em julgado para a acusação) acabou pela metade. Como assim? Antes da nova lei a prescrição retroativa podia acontecer ou entre a data do fato e o recebimento da denúncia ou queixa ou entre o recebimento da denúncia ou queixa e a publicação da sentença condenatória. Dois eram os períodos prescricionais possíveis. Com a redação nova torna-se impossível computar qualquer tempo antes do recebimento da denúncia ou queixa. Ou seja: a prescrição retroativa, agora, só pode acontecer entre o recebimento da denúncia ou queixa e a publicação da sentença. Foi cortada pela metade. A prescrição retroativa, em síntese, não acabou. Foi extinta pela metade.

Terceira: a prescrição virtual (ou antecipada ou em perspectiva), que só é admitida (sabiamente) pela jurisprudência da primeira instância (os tribunais não a admitem – Súmula 440 do Superior Tribunal de Justiça), como foi sempre atrelada à prescrição retroativa, também foi cortada pela metade. Só é possível agora entre a data do recebimento da denúncia ou queixa e a publicação da sentença.

Direito intertemporal: a lei nova é desfavorável ao réu (nos três pontos examinados). Logo, irretroativa. Só pode ser aplicada para fatos ocorridos de 06.05.10 para frente. Crimes ocorridos até 05.05.10 continuam regidos pelo Direito Penal anterior (ou seja: para esses crimes a prescrição retroativa ou virtual ainda é contada da data do fato até o recebimento da denúncia ou desta data até a publicação da sentença). É importante, por isso, saber a antiga regulamentação da prescrição retroativa ou virtual (porque é ela que rege os crimes antigos, ou seja, ocorridos até 05.05.10). A regulamentação nova só rege os crimes novos (de 06.05.10 para frente).

Prescrição da pretensão punitiva pela pena máxima em abstrato: desde 06.05.10, para crimes ocorridos desta data em diante, não se pode contar (na prescrição retroativa ou virtual) nenhum tempo anterior ao recebimento da denúncia ou queixa. Cuidado: isso não significa que não existe nenhuma prescrição nesse período pré-processual (antes do recebimento da denúncia ou queixa). Nesse período rege a prescrição da pretensão punitiva pela pena máxima em abstrato (ou seja: a investigação não pode ser eterna; caso o Estado demore muito para apurar os fatos, ocorre a prescrição pela pena em abstrato.

 

CONCLUSÃO

O Estado como ente superior de uma sociedade politicamente organizada, e o único regulador das condutas praticadas pelos seus súditos, deve agir dentro dos prazos previamente estabelecidos por ele mesmo, sob pena de sua atuação se tornar inócua ou abusiva, e consequentemente, comprometer a credibilidade do monopólio estatal: o ius puniendi.

A exclusividade de punir que é conferida a uma nação serve primordialmente como mecanismo para disciplinar e manter o equilíbrio dentro do corpo social.  Com o advento da Lei nº 12.234, datada de 05 de maio de 2010, ocorreram alterações significativas e polêmicas nos prazos prescricionais, sobretudo, com a supressão da prescrição retroativa pré-processual, conforme §1º, in fine, do Artigo 110 da Lei em análise.

Assim sendo, insta saber que a prescrição retroativa não foi extinta do ordenamento jurídico nacional, embora o artigo 1º do novo preceito normativo assevere esta exclusão.

Há de se ressaltar que o legislador aumentou o lapso prescricional de dois para três anos aos crimes cuja pena máxima em abstrato é inferior a um ano, consoante artigo 109, Inciso VI do CPB.

A conseqüência da inércia promovida pelo Estado foi remetida para o cidadão como forma de responsabilizá-lo pela não concretização de sancioná-lo no momento em que ele infringir a legislação penal vigente. Com o fim do instituto pré-processual em epígrafe, os inquéritos policiais e as ações promovidas pela Promotoria Pública poderão tornar-se infindáveis, sob o falso argumento de que a autoridade policial e o órgão ministerial agora disponibilizam de maior tempo para investigar os crimes, tornar todo conjunto probatório mais robusto e ofertar denúncias contra possíveis criminosos. Valendo ressaltar que, a prescrição da pretensão punitiva em abstrato continua vigente no ordenamento jurídico brasileiro.  

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ASSIS, Jorge César de. Alterações no prazo prescricional da pretensão punitiva e seus reflexos na justiça militar. In: Revista Jurídica Consulex. São Paulo: 331. p. 64-65, 01 nov 2010.

JESUS, Damásio Evangelista de. Direito penal: parte geral. v. 1. São Paulo: Saraiva, 2003.

SILVA, César Dario Mariano da. Manual de Direito Penal. Rio de Janeiro: GZ, 2009.

BRASIL. Lei nº 12.234, de 05 de maio de 2010. Brasília: Senado Federal, 2010.

__________. Constituição da República Federativa do Brasil de 5 de outubro de 1988. Brasília: Senado Federal, 1988.