AÇÃO DE INVENTÁRIO E PARTILHA[1]

Tirciane Chuvas[2]

 

O artigo busca levantar discussões sobre a ação de Inventário e Partilha a partir do caso hipotético que segue: Lindomar celebrou contrato de locação com Emanoel sobre um imóvel residencial em 2001, no interior do Amapá. Após um ano, o contrato foi prorrogado por prazo indeterminado. Em 2004, Emanoel, que recebia o pagamento em espécie e sem atrasos, faleceu. Lindomar, por sua vez, desconhecia os familiares de Emanoel e nenhum herdeiro reclamou o recebimento dos alugueis, motivo pelo qual deixou de pagá-lo, mas continuou habitando o imóvel. Em 2006, no Mato Grosso do Sul, teve início a ação de Inventário e Partilha movida pelo único filho de Emanoel, Amadeu, que não incluiu o imóvel do Amapá porque desconhecia diversos bens do espólio. Este ano, Lindomar propôs ação de usucapião sobre o imóvel no qual reside há 10 anos. Os personagens relevantes deste caso são Lindomar, Emanoel e Amadeu.

Na perspectiva de que Lindomar tem direito à usucapião pelo decurso do tempo, inicialmente destaca-se a teoria objetiva da posse de Ihering, adotada pelo ordenamento brasileiro, que é sustentada apenas no corpus – mero contato físico, direto e permanente; a fruição com a coisa –, bastando somente a exteriorização da intenção, como se proprietário fosse, para a sua caracterização. É o jus possidendi, considerada como um dos elementos da própria exteriorização da propriedade. Para Ihering[3], a posse é a condição do exercício da propriedade, a noção de animus já se encontra na de corpus, sendo a maneira como o proprietário age em face da coisa de que é possuidor. Assim, a posse de Lindomar, que fixou residência no imóvel, se revela na maneira em que ele age em face do mesmo, tendo em vista a sua finalidade social.

No que tange à alteração do caráter da posse, ainda que boa parte da doutrina defenda que a posse precária não convalesce, impossibilitando a mutação da causa possessionis, para Cristiano Chaves de Farias e Nelson Rosenvald:

(…) diante da tendência atual de conceder função social à posse, é possível gerar usucapião em imóvel cujo possuidor mantenha poder de fato sobre a coisa, sem oposição e com autonomia por longos anos, em detrimento do proprietário que abandona seu direito subjetivo e esvazia o conteúdo economic do domínio[4].    

Lindomar sempre honrou seus compromissos pagando o aluguel em dia, e só deixou de fazê-lo por que desconhecia parentes de Emanoel. Após a morte deste, Lindomar demonstrou o animus domini, deu função social ao imóvel e concedeu destinação econômica ao mesmo em nome próprio. Passados dez anos sem que ninguém o procurasse, resolveu requerer a usucapião do imóvel:

O prazo para usucapião extraordinária começa a contar no instante da formação do animus domini, caracterizado pela intenção do possuidor em excluir o proprietário (...) Assim, prevalecerá o direito fundamental social de moradia[5] (...)

Interpreta-se assim o art. 1.208, CC, não mais em sua literalidade, mas considerando que “os direitos existem para serem exercidos e não apenas conservados” [6].

Ainda que não tivesse justo título e boa fé, Lindomar teria direito à demanda, com base no art. 1.238, CC[7], que fixa o prazo da usucapião extraordinária em quinze anos, independente de título e boa-fé. Esse prazo, porém, será reduzido a dez anos se o possuidor houver estabelecido no imóvel a sua moradia habitual, ou nele realizado obras ou serviços de caráter produtivo. A perda do imóvel pelo antigo proprietário pela usucapião, se houver, reside então, como é evidente, na sua inércia em recuperar a coisa, nesse período de dez anos, o que é o caso. Lindomar, assim, cumpre todos requisitos para a demanda.

No que diz respeito à ação de Inventário e Partilha, um imóvel que faz parte de um inventário pode fazer parte de um processo de usucapião, desde que o “posseiro” do imóvel tenha adquirido a propriedade do mesmo pelo decurso do tempo legal antes da abertura do processo de inventário. No caso em questão, o referido imóvel sequer foi incluído no espólio, não sendo objeto da ação de Inventário e Partilha, legitimando Lindomar a requerer o tal direito.

O demandante adquiriu a propriedade do imóvel somente pelo decurso do tempo legal, sendo a sentença que julgar procedente a usucapião apenas declaratória deste direito. O imóvel, por sua vez, não deverá nem mesmo ser arrolado pelo inventariante em suas declarações iniciais. Acrescenta-se que se o processo de inventário tivesse sido aberto, a citação da ação de usucapião se daria em mome do inventariante nomeado pelo juiz. Se o processo de inventário ainda não tivesse sido aberto, a citação deveria se dar na pessoa de Amadeu, o herdeiro.

Com base no acórdão de ação semelhante do Tribunal de Justiça de Santa Catarina (TJSC), a pretensão de Lindomar é legítima:

   
   
   
   

USUCAPIÃO EXTRAORDINÁRIO - IMÓVEL USUCAPIENDO ALVO DE INVENTÁRIO - IRRELEVÂNCIA - ALEGATIVA DE CESSÃO DE RESTRITA ÁREA PARA RESIDÊNCIA, POR QUESTÕES HUMANITÁRIAS - IRRELEVÂNCIA, UMA VEZ VERIFICADOS OS DEMAIS REQUISITOS DA POSSE AD USUCAPIONEM. O fato do imóvel objeto de usucapião ser alvo de processo de inventário, não impede que o mesmo seja usucapido, uma vez que este tipo de ação real sobre imóvel tem natureza declaratória de propriedade, nem mesmo impede sua aquisição por este modo originário de aquisição de propriedade o fato de sua posse ter sido cedida, para moradia do requerente, por questão humanitárias, se a posse deste é inconteste e superior a vinte anos, tratando-se de pequena gleba divisada e cercada, efetuando o postulante o pagamento dos tributos e tarifas incidentes sobre o imóvel, emitidas em seu nome. Isso porque, a teor do disposto no art. 550 do Código Civil Brasileiro, não figuram como um de seus pressupostos, justo título e boa-fé, sendo disciplinada a discussão sobre o domínio (TJSC - Apelação Cível n. 35.202, DJSC de 24.5.95), se presente o animus domini (acórdão citado); o que pode ser revelado por prova testemunhal (TJSC - Apelação Cível n. 41.289, DJSC de 16.10.95, pág. 14). Mesmo que a posse se iniciasse por mera tolerância - art. 497, CCB - o transcurso do longo lapso sem efetiva reação por parte dos proprietários pode conduzir ao surgimento do requisito do animus domini (JTARS 76/304; TJMS, Ap. 77.538/3, in ADVJur 1990, pág. 343, v. 49.998). (…) Aduz que a ação de inventário em curso não produz efeito impeditivo para o julgamento da presente ação de usucapião. Apelação Cível n. 97.010126-0, da Capital. (Apelacao Civel: AC 101260 SC 1997.010126-0). [8]

Considerando que Lindomar não tem direito à usucapião, temos, nesta hipótese, uma relação jurídica de contrato de locação que concedeu à Lindomar o direito à posse direta, mas “não a posse propriamente dita. Como esclarece Ovídio Baptista da Silva, ‘o locatário jamais sera possuidor em virtude do contrato de locação e nem o usufrutuário por força dam era relação jurídica de usufruto’” [9]. Desta forma, em se tratando de desdobramento da posse como resultado da formação de direitos obrigacionais, não existe transferência de poderes dominiais em favor do Lindomar, que não possuia o animus domini ao celebrar o contrato.

Destaca-se ainda o art. 1.197 do CC, segundo o qual o possuidor direto tem direito de defender sua posse contra o indireto, mas a recíproca também é válida. Assim, o possuidor indireto, diante de resistência à devolução da coisa, pode adotar “ação possessória contra aquele que será convertido em possuidor precário, por reter a coisa consigo indevidamente após o término da relação jurídica” [10]. (grifo meu)

Dito isto, temos que Lindomar exerce posse injusta precária. Lindomar era titular de uma posse direta e justa, obtida através da relação contratual. Porém, manteve o bem em seu poder, arrogou-se na qualidade de possuidor, apropriando-se indevidamente do imóvel. Lindomar não se preocupou em procurar um possível herdeiro de Emanoel para manter o contrato de aluguel.

Importante ressaltar que a precariedade distingue-se da clandetinidade e da violência, que poderão gerar usucapião extraordinária (art. 1.238, CC) [11]. A posse precária não apresenta vícios originários, mas posteriores, precisamente no instante da recusa da devolução do bem no prazo estabelecido. Com a morte de Emanoel, o contrato de aluguel se extinguiu, passando Lindomar, ao permanecer no imóvel, a ser possuidor injusto pela precariedade. E para Silvio de Salvo Venosa, “o possuidor precário sempre o será, salvo expressa concordância do possuidor pleno” [12], impossibilitando assim, sua pretensão de usucapir o referido imóvel.

O Tribunal de Justiça de Minas Gerais (TJMG) pronunciou-se sobre situação similar:

AÇÃO REIVINDICATÓRIA - USUCAPIÃO - NÃO COMPROVAÇÃO - PROPRIEDADE COMPROVADA - POSSE INJUSTA (PRECÁRIA) - PRESENÇA DOS REQUISITOS ESSENCIAIS À AÇÃO REIVINDICATÓRIA. Havendo prova inconteste da titularidade do domínio dos autores, bem como da posse injusta dos réus, presentes estão os requisitos essenciais à demanda reivindicatória; - O usucapião deve repousar no reconhecimento de posse justa, mansa e pacífica, exercida por tempo suficiente à sua consumação e com animus domini, devendo ser provado por quem o alega. (Processo: 200000050509350001 MG 2.0000.00.505093-5/0001) [13]

Cumpre destacar que o inventário é a forma processual em que os bens do de cujus passam para o seus sucessores (herdeiros - legatários etc.), e a partilha é a forma processual legal para definir os limites da herança que caberá a cada um dos herdeiros e legatários. Resume-se na divisão dos bens e direitos deixados pelo falecido. Para efeito de transferência de propriedade dos bens, inclusive imóveis, o formal de partilha, que é o documento final resumo do inventário, equivale à escritura. Da mesma forma que a escritura pública é o instrumento legal para a transferência de bens imóveis entre vivos, é pelo formal de partilha, originado do processo de inventário, que os herdeiros recebem e transferem para o seu nome os bens e direitos a que possam ter direito em face da sucessão.

Estamos aqui diante de uma sucessão legítima, em razão do parentesco de Amadeu, e não de uma sucessão testamentária, decorrente da manifestação de vontade do de cujus. Amadeu é herdeiro necessário e, obrigatoriamente, tem direito à sucessão, além de ser detentor da metade da herança legítima do falecido pai. O imóvel o qual Lindomar pretende usucapir pode ser ainda desconhecido pelo herdeiro, mas posteriormente, se descoberto, integrará o patrimônio de Amadeu, como prevê o art. 1.040, Código de Processo Civil (CPC): “Ficam sujeitos à sobrepartilha os bens: II - da herança que se descobrirem depois da partilha”[14].

Faz-se uma ressalva para a hipótese de Emanoel ter sido casado. Deixando descendente, a cônjuge não teria direito à herança, mas no regime de comunhão universal de bens, terá direito a meação, ou seja, metade dos bens do casal. Já no regime de comunhão parcial, a cônjuge só tem direito a meação dos bens adquiridos na constância do casamento. Consideremos, porém, a hipótese de Emanoel ter falecido viúvo.

REFERÊNCIAS

 

FARIA, Cristiano Chaves de; ROSENVALD, Nelson. Direitos Reais. 6ª Edição. Editora Lumi Juris. Rio de Janeiro, 2009. p. 71.

Jus Brasil. TJMG. Processo: 200000050509350001 MG 2.0000.00.505093-5/0001. ˂http://www.jusbrasil.com.br/jurisprudencia/5844252/200000050509350001-mg-2000000505093-5-000-1-tjmg˃ Acesso em: 24 set 2011.

Jus Brasil. TJSC - Apelação Civel: AC 101260 SC 1997.010126-0. ˂http://www.jusbrasil.com.br/jurisprudencia/4927307/apelacao-civel-ac-101260-sc-1997010126-0-tjsc˃. Acesso em: 24 set 2011.

Vade Mecum. 10 ed. Editora Saraiva, 2010.

VENOSA, Sílcio de Salvo. Código Civil Comentado. p. 62.

VICOLA, Nivaldo Sebastião. Site da USP. ˂www.teses.usp.br/teses/.../2/2131/.../Finais_Nivaldo_Sebastiao_Vicola.pdf˃. p. 70. Acesso em: 23 set 2011.

[1] Case apresentado à disciplina Direitos Reais, da Unidade de Ensino Superior Dom Bosco - UNDB.

[2]Aluna do 5º Período, do Curso de Direito da UNDB.

[3] VICOLA, Nivaldo Sebastião. Site da USP. ˂www.teses.usp.br/teses/.../2/2131/.../Finais_Nivaldo_Sebastiao_Vicola.pdf˃. p. 70. Acesso em: 23 set 2011.

[4]FARIA, Cristiano Chaves de; ROSENVALD, Nelson. Direitos Reais. 6ª Edição. Editora Lumi Juris. Rio de Janeiro, 2009. p. 93.

[5]Ibidem. p. 94.

[6] Ibidem. p. 94.

[7] Vade Mecum. 10 ed. Editora Saraiva, 2010.

[8]Jus Brasil. TJSC - Apelação Civel: AC 101260 SC 1997.010126-0. ˂http://www.jusbrasil.com.br/jurisprudencia/4927307/apelacao-civel-ac-101260-sc-1997010126-0-tjsc˃. Acesso em: 24 set 2011.

[9]FARIA, Cristiano Chaves de; ROSENVALD, Nelson. Direitos Reais. 6ª Edição. Editora Lumi Juris. Rio de Janeiro, 2009. p. 70.

[10] FARIA, Cristiano Chaves de; ROSENVALD, Nelson. Direitos Reais. 6ª Edição. Editora Lumi Juris. Rio de Janeiro, 2009. p. 71.

[11]Ibidem. p. 85.

[12]VENOSA, Sílcio de Salvo. Código Civil Comentado. p. 62.

[13]Jus Brasil. TJMG. Processo: 200000050509350001 MG 2.0000.00.505093-5/0001. ˂http://www.jusbrasil.com.br/jurisprudencia/5844252/200000050509350001-mg-2000000505093-5-000-1-tjmg˃ Acesso em: 24 set 2011.

[14]Vade Mecum. 10 ed. Editora Saraiva, 2010.