A sucessão testamentária e os últimos anseios do testador

O patrimônio deixado pelo falecido aos seus herdeiros constitui o que se entende por herança. Ao longo da evolução histórica foi se criando a noção de testamento, através dele o testador pode expressar suas últimas vontades. O Código Civil de 1916 definiu testamento em seu artigo 1.626, in verbis: “Considera-se testamento o ato revogável pelo qual alguém, de conformidade com a lei, dispõe, no todo ou em parte, do seu patrimônio para depois da sua morte”.

Nos tempos antigos os bens de família eram tidos como uma espécie de legado, e seus sucessores jamais se dispunham deles. Eram verdadeiras relíquias, o valor de tudo que era passado de geração para geração era imensurável. Desfazer-se de tal bem, móvel ou imóvel, era praticamente fora de cogitação, assim como nos assevera Francisco José Cahali e Giselda Maria Fernandes Novaes Hironaka:

Entre os antigos, pois, Roma, em Atenas ou na Índia, vislumbrava-se a fortuna de uma família como algo praticamente imóvel, assim como o fogo sagrado e o túmulo dos antepassados. Tais bens e valores, fundidos, associados e imobilizados, “viam” passar as gerações, e não, ao contrário passam de mão em mão, através dos tempos. (2007, p. 214)

Poucas são as pessoas que gostam de falar sobre a morte, ou sobre o que irá acontecer após ela. Mas esse é um costume adquirido ao longo dos anos pelos brasileiros, o hábito de testar sobre seus bens, seja porque não possuem filhos, por querer beneficiar alguém, ou pelo fato de reconhecer algum filho havido fora do casamento. Nesse sentido, também é o entendimento de Giselda Maria Fernandes Novaes e Rodrigo da Cunha Pereira:

O escopo precípuo do testamento é, sem dúvida, dispor do patrimônio para depois da morte. Equivale a dizer que o fito comum aos testamentos é servir como forma de atribuição de bens. Não é essa, todavia, a sua única finalidade. É possível, além da formulação de disposições de índole patrimonial, que contenha disposições pessoais como o reconhecimento de filhos, a nomeação de tutor, a deserdação, o perdão ao sucessor indigno, etc. (2004, p. 231).

O Código Civil de 2002 não trás definição expressa sobre o que é o testamento, mas, define suas características em seus artigos 1.857 e 1.858, que preceituam ser este um ato solene e formal e que deve atender a todas as peculiaridades impostas na lei, sob pena de ser considerado nulo. Ainda sobre suas condições lembram Francisco José Cahali e Giselda Maria Fernandes Novaes Hironaka:

Em síntese, então, mostra-se o testamento como um ato: a) personalíssimo, uma vez que apenas o testador pode realizá-lo; b) revogável, porque a qualquer tempo o testador pode produzir novo instrumento revocatório do anterior, no que respeita as disposições de caráter patrimonial; c) unilateral, porque se aperfeiçoa apenas e exclusivamente com a manifesta vontade do testador; d) gratuito, porque não se compadece de qualquer aspecto oneroso, embora suporte a existência de imposição de encargos a herdeiro instituído ou legatário, o que não desvirtua a sua condição característica de gratuidade; e) solene, porque exige, para valer, a estrita observância dos requisitos essenciais e das formalidades legais; f) causa mortis, porque sua eficácia só será produzida após a morte do testador. (2007, p. 218).

Destarte, o testamento compreende a última vontade do autor da herança, por meio do qual disporá de seus bens para seus sucessores, ou até mesmo para outras pessoas às quais fará doações. Assim sendo, o testador não poderá deixar de suprir os direitos de seus herdeiros legítimos em relação à herança, os quais possuem qualidade de necessários, de modo que não poderão ser privados pela vontade do sucedido, a não ser por impedimento previsto em lei, como por exemplo, nos casos de deserdação. Como enfatiza Carlos Roberto Gonçalves:

A sucessão testamentária dá-se por disposição de última vontade. Havendo herdeiros necessários (ascendente, descendentes ou cônjuge), divide-se a herança em duas partes iguais e o testador só poderá dispor livremente da metade, denominada porção disponível, para outorgá-la ao cônjuge sobrevivente, a qualquer de seus herdeiros ou mesmo a estranhos, pois a outra constitui a legítima, àqueles assegurada no art.1846 do Código Civil. (2011, p. 43). 

Portanto, a sucessão testamentária compreende a quem o autor quer que seja transmitida sua herança, bem como todas as suas manifestações de última vontade, lembrando que o autor da herança sempre terá que respeitar a parte que é de direito de seus herdeiros legítimos, podendo então testar somente sobre a parte denominada disponível. Evita-se, desta forma, que o testador manifeste o desejo de prejudicar seus herdeiros por algum desentendimento que possa ter ocorrido entre estes ou até mesmo por simplesmente não simpatizar-se com seu genro ou nora.  Desse modo expõe:

É testamentária a sucessão que se opera de acordo com um testamento. Portanto ela depende da vontade do testador, que, por ato manifestado em vida, pode dispor de sua parte, chamada disponível, no sentido de que seja transmitida a pessoa de sua livre escolha. (1998, p. 262).

É importante ressaltar que a liberdade de testar no direito brasileiro não é como nos primórdios da história romana, ou como no Código Civil de 1916. Ao contrário, existem limites na legislação atual que protegem os herdeiros, estabelecendo reservas patrimoniais, que por vezes, não são respeitadas pelo de cujus. Se estas não forem observadas é provável que, posteriormente, quando colocadas em questionamento após a abertura da sucessão não irão subsistir.

A sucessão testamentária deve englobar as transformações familiares que acontecem ao longo dos anos para que, dessa forma, não ocorram injustiças ou vinganças por parte de autor da herança. Deve ainda ser levada em consideração a época em que vivemos, ponderando os interesses do testador face às necessidades de seus herdeiros para assim viabilizar a devida adequação social. Diante desse posicionamento, veja-se:

Destarte, o direito testamentário deve voltar-se para as transformações que sofrem hoje a família e a propriedade, procurando a lei acompanhar agora os novos fenômenos sociais. Assim, sem esquecer do formalismo inerente ao testamento, invólucro que tem em mira validamente proteger a vontade do morto, esse formalismo deve ser adaptado à época do computador, para servir àquelas duas instituições, dinamizando-se as disposições do Código Civil já anacrônicas, hoje mero exemplo de academismo jurídico. (2014, p. 192)

Desse modo, é perfeitamente possível compreender que a sucessão testamentária guarda a vontade do seio familiar, de quem amealhou o patrimônio ao longo dos anos e deseja que este seja preservado para as próximas gerações. Esse desejo do testador ocorre porque ele não quer que seus herdeiros passem por dificuldades financeiras quando este estiver ausente. O de cujus teme que seus herdeiros não consigam estabelecer a vida financeira sem o apoio por ele conferido. Para tentar amenizar essa angustia é que são elaborados os testamentos.

Esse posicionamento é notadamente defendido pelo autor VENOSA (2014, p. 191) “Como o direito sucessório é corolário imediato da família e mediato do direito de propriedade, também a sucessão testamentária é consequência do posicionamento da família e da propriedade dentro do contexto legal, do ordenamento jurídico”.

O testamento é então como um tabernáculo, que guarda a vontade do testador, encerra o seu anseio, sabendo que só será esse último suspiro um acontecimento futuro que sobrevirá após a sua morte, e que deve ser acatado dentro dos limites impostos pela legislação. Elaborado com muito cuidado, é uma forma de tranquilizar o próprio autor da herança, de modo que este confie no poder judiciário, que fará com que a partilha de seu patrimônio ocorra conforme suas disposições. Senão fosse assim, certeza nenhuma teria o de cujus sobre como seus bens serão divididos após o seu falecimento.

O surgimento das cláusulas restritivas impostas em testamento no Código Civil

É notório que no direito sucessório a herança é extremamente protegida e assegurada aos herdeiros de forma plena, presumindo-se a vontade do testador. No entanto, mesmo havendo essa plenitude em relação ao direito de herança, o Código Civil de 2002 dispõe de algumas restrições à legítima. São as chamadas cláusulas restritivas impostas em testamento.

                  Durante a vigência das Ordenações Filipinas não existiam no ordenamento jurídico possibilidades de impor restrições à legítima. A lei Feliciano Pena (Lei 1.839/1.707), serviu então como escopo para a o Código Civil de 1916, introduzir no ordenamento jurídico essa possibilidade, cujo objetivo era proteger o patrimônio familiar para evitar que ele fosse dilapidado pelos sucessores inexperientes, como nos demonstra Carlos Roberto Gonçalves:

Em nosso direito pré-codificado a legítima era uma quota da herança, reservada aos herdeiros necessários sem qualquer limitação. Não podia ser onerada por condições, encargos e legados, nem pela designação de certos bens. Todavia o Decreto n. 1.839, de 31 de dezembro de 1.907, denominado Lei Feliciano Penna, passou a permitir que o autor da herança impusesse, por meio de cláusulas testamentárias, restrições aos direitos de seus sucessores, prescrevendo inalienabilidade ou incomunicabilidade dos bens que comporiam, depois de sua morte, a legítima a estes assegurada. (2011, p. 210)

O testador passou a ter o respaldo do Código Civil de 1916, podendo, então, fazer o livre uso da limitação, vez que não tinha o direito de privar os herdeiros necessários da legítima, mas poderia obstar a utilização e fruição econômica dos mesmos. A cláusula de inalienabilidade era inicialmente permitida pelo artigo 1.676 do Código Civil de 1916 que dispunha:

Artigo 1676. A cláusula de inalienabilidade temporária, ou vitalícia, imposta aos bens pelos testadores ou doadores, não poderá, em caso algum, salvo os de expropriação por necessidade ou utilidade pública, e de execução por dívidas provenientes de impostos relativos aos respectivos imóveis, ser invalidada ou dispensada por atos judiciais de qualquer espécie, sob pena de nulidade.

Naquela época surgiram várias críticas em relação às cláusulas que favoreciam somente a vontade do testador e a revolta dos herdeiros era grande, pois não poderiam dispor dos bens herdados. Ante a análise dessas críticas, o entendimento doutrinário, bem como o inconformismo dos herdeiros, o Código Civil de 2002 trouxe uma mudança ao dispor: “Art. 1.848. Salvo se houver justa causa, declarada no testamento, não pode o testador estabelecer cláusula de inalienabilidade, impenhorabilidade, e de incomunicabilidade, sobre os bens da legítima.” (Grifo nosso).

Essa inovação do Código Civil de 2002 proibiu a imposição dessas cláusulas, mas não as extinguiu totalmente do ordenamento jurídico colocando o termo justa causa como fator determinante para sua validação, o que causou vários questionamentos devido à expressão ser de cunho subjetivo. A imposição de cláusulas restritivas pode ser vista de forma positiva, ou de forma negativa como mostra Venosa:

A imposição da cláusula proibitiva de alienar pelo testador pode vir imbuída de excelentes intenções: receava ele que o herdeiro viesse a dilapidar os bens, dificultando sua própria subsistência ou de sua família; tentava evitar que o sucessor ficasse, por exemplo, privado de um bem para moradia ou trabalho. Como geralmente a cláusula vem acompanhada da restrição da incomunicabilidade, procurava o testador evitar que um casamento desastroso diminuísse o patrimônio do herdeiro. São, sem dúvida, razoes elevadas que, a priori, só viriam em beneficio do herdeiro. Contudo, não bastassem os entraves que o titular de um bem com essa cláusula tem que enfrentar, sua oposição podia ser imotivada pelo sistema de 1916, poderia o testador valer-se dela como forma de dificultar a utilização da herança, quiçá como meio de vingança ou retaliação, uma vez que não podia privar os herdeiros necessários da legítima. (2006, p. 155)

Ademais, percebe-se que pode haver casos nos quais realmente persista a necessidade de impor essas cláusulas. Por exemplo, quando o herdeiro for dependente químico e, em razão disso, não tenha condições de administrar o patrimônio recebido em função de seu estado de saúde. Ainda assim, o descontentamento face à justa causa apontada pelo autor da herança, na maioria das vezes, prevalecerá, e então os herdeiros não terão outra escolha senão, procurar o poder judiciário para questionamento dessas cláusulas restritivas impostas em testamento. Nesse contexto:

A justa causa de que fala o mais recente Código será discutida posteriormente, em ação judicial proposta pelos interessados. Abre-se mais um ponto de dissídio, mas de qualquer maneira limita-se o excessivo arbítrio do testador. Melhor que se excluísse simplesmente a cláusula de inalienabilidade da lei, ou então se lhe impusesse um limite temporal, prazo quiçá necessário para maior meditação sobre a venda dos bens pelo herdeiro. A incomunicabilidade e a impenhorabilidade devem ser mantidas, porque demonstram sua utilidade. Não pode, contudo, o legislador deixar de reformular integralmente um instituto anacrônico e inadequado à sociedade. (VENOSA, 2014, p. 187)

Ressalta-se que as cláusulas restritivas necessitam de interpretação maior para atingir a vontade do autor da herança em seus exatos termos. O que ocorre é que há dificuldade nessa interpretação, portanto, necessário que esteja sempre fundamentada e de forma esclarecida para evitar equívocos futuros. No caso da vontade não estar nítida aos olhos do julgador, este considerará as escrituras testamentárias frente à legislação atual. Conforme entendimento:

Em se tratando de regras interpretativas, procura o legislador suprir a vontade do falecido, buscando seu real alcance, quando a disposição de última vontade não é suficientemente clara. Na realidade, teria o legislador duas opções diante da falta de clareza e da dificuldade em fazer cumprir a vontade do morto. A primeira seria simplesmente ter por não escrita a cláusula testamentária, desprezando-se a vontade do falecido em razão da obscuridade. Nesse caso, seria o testador punido por sua falta de clareza, retirando os efeitos da deixa em questão. Contudo, o direito brasileiro, que cultua a inatacável vontade do de cujus, faz opção diametralmente oposta, e busca, no texto da lei, dar sentido à vontade que não foi expressa de maneira cristalina. (TARTUCE e SIMÃO, 2011, p. 348).

Denota-se que as cláusulas restritivas impostas pelo testador devem sempre ser interpretadas da melhor forma possível, pois, no direito brasileiro, a vontade do de cujus é de extrema importância. Vale ressaltar que o testador deve apontar justa causa que seja plausível, e não pautada em fatos superficiais, para que em uma demanda futura não caia por terra seu anseio. Apesar da última vontade do falecido ser muito importante deve estar sempre dentro dos limites da legislação.

  Cláusula de inalienabilidade

As cláusulas de inalienabilidade são aquelas que impedem a alienação do bem. Este, não pode ser vendido, doado, ou sofrer qualquer tipo de permuta, de forma que o domínio do bem se torna limitado. Assim, qualquer tipo de transação de um bem clausurado, pode ser anulada, seja ela gratuita ou onerosa. Essas cláusulas quando impostas pelo testador visam proteger o herdeiro para que este ou o seu consorte não dilapidem o patrimônio construído. Neste sentido, constituem-se meio de evitar que os bens sejam dissipados.

Na vigência do Código Civil de 1916, houve grande discussão em torno dessas cláusulas para saber se a inalienabilidade implicaria também na impenhorabilidade do bem e na incomunicabilidade. A súmula 49 do Supremo Tribunal Federal veio pacificar o entendimento de que a inalienabilidade acarreta a incomunicabilidade, in verbis: “A cláusula de inalienabilidade inclui a incomunicabilidade dos bens”.

Posteriormente, o Código Civil de 2002, consagrou que a cláusula de inalienabilidade traz sim a impenhorabilidade e a incomunicabilidade, conforme artigo in verbis: “Art. 1911. A cláusula de inalienabilidade, imposta aos bens por ato de liberalidade, implica impenhorabilidade e incomunicabilidade”.

As cláusulas, quando impostas a herdeiro necessário, desaparecem com o falecimento deste tornando o bem livre e desembaraçado sem qualquer ônus, de modo que só atingem o herdeiro e enquanto este estiver vivo. Desse modo, não seria justo se essa cláusula pudesse ser imposta livremente aos herdeiros de gerações futuras. Por esse motivo, o legislador atribuiu às cláusulas restritivas impostas em testamento a característica de inalienabilidade vitalícia. Corrobora com esse entendimento o doutrinador Carlos Roberto Gonçalves:

A cláusula de inalienabilidade não excederá, em duração, a vida do herdeiro. Nos casos em que é admitida, não obstará a livre disposição dos bens por testamento e, em falta deste, a sua transmissão, desembaraçados de qualquer ônus, aos herdeiros legítimos, pois, quando vitalícia, extingue-se com a morte do herdeiro necessário, não podendo ultrapassar uma geração. Como o testamento só produz efeitos após a morte do testador, quando os bens já estarão livres da restrição, a deixa é válida. (2011, p. 212)

Existem também formas de inalienabilidade temporária por meio das quais o testador impõe ao seu herdeiro uma condição para que ele receba o bem livre desse gravame. Tal condição pode ser estipulada a seu gosto, qual seja, condição de se casar, de se formar em algum curso, dentre várias outras que ele poderá estabelecer. Essas condições decorrem do desejo do autor da herança em ver seu patrimônio preservado, pois, na maioria das vezes se percebe que essas condições tem caráter contributivo na vida pessoal do indivíduo.

 Frise-se, ainda, que essa condição temporária também não pode ser imposta para futuras gerações. Mas figura como estratégia do autor da herança para que o herdeiro satisfaça um anseio seu, ou seja, uma vontade privada. Nesse sentido, é o entendimento de Francisco José Cahali e Giselda Maria Fernandes Novaes Hironaka:

Já a inalienabilidade temporária apresenta-se como uma restrição ao direito de dispor do herdeiro ou do legatário, que cessa, ou pode cessar, com o decurso do tempo. Assim, por exemplo, extinguir-se-á o gravame pelo fato do advento de termo ou do implemento da condição, pois a realização de evento futuro e certo (termo) trarão para o beneficiário, consequentemente, a faculdade de livre disposição do bem. (2007, p. 278).

As cláusulas de inalienabilidade podem, também, ser absolutas, ou seja, quando não definem nenhuma pessoa para a qual o bem possa ser vendido, não trazem nenhuma hipótese de venda ou de qualquer outro meio de dispensa, sendo gerais para todos os bens. No entanto, também podem ser relativas quando definirem em seu escopo a quem o bem possa ou não ser vendido, conforme mostra Maria Berenice Dias:

A lei atual não diz- dizia o Código Civil anterior (CC/1916 1.679) -, mas a inalienabilidade pode ser absoluta ou relativa, vitalícia ou temporária. Mas tais possibilidades persistem. É absoluta se é vedada a alienação a quem quer que seja, Relativa quando impede a venda a determinadas pessoas, ou autoriza que seja vendido somente a quem o testador indicar. (grifo do autor) (2011, p. 288).

Essa possibilidade existente no Código Civil de 1916, como se percebe, tinha como objetivo satisfazer a vontade do testador, no sentido de evitar que seus bens fossem vendidos a alguém que ele tivesse inimizade, ou simplesmente pelo fato de não querer que um bem que já foi seu passasse a pertencer, após a sua morte, a alguém que ele não queira. E ainda trazia a possibilidade do autor da herança indicar a pessoa para qual o bem poderia ser vendido, o qual indicava um amigo ou conhecido de sua confiança para quem o bem seria vendido.

Diante das cláusulas de inalienabilidade existe ainda a possibilidade de sub-rogação dos bens, que consiste em vender o bem clausulado e transferir o gravame para outro bem de mesmo valor, ou de valor inferior, sendo que deverá o herdeiro prestar contas de como utilizou o restante do dinheiro ao juiz através de um procedimento de jurisdição voluntária. A seguir o entendimento de Maria Berenice Dias:

A demanda de sub-rogação da cláusula de inalienabilidade é de jurisdição voluntária. Não se submete ao juízo do inventário e não cabe a citação nem do testamenteiro, nem do inventariante ou dos herdeiros. É indispensável a participação do Ministério Público, pois a cláusula foi imposta em testamento(CPC 82 II). (2011, p. 293).  

Aduz ainda, quanto o instituto da sub-rogação, Carlos Roberto Gonçalves: “Permite o estatuto processual, nos arts. 1.103 e seguintes, a sub-rogação do vinculo da inalienabilidade, isto é, a transferência do gravame para outros bens livres, desde que se convença o juiz da sua necessidade e conveniência.” (2011, p.354).

Denota-se, ainda, que a possibilidade de sub-rogação dos bens possui aspectos positivos de modo que os herdeiros podem dispor dos bens convertendo outros com a cláusula restritiva de inalienabilidade. Por outro lado, existem também pontos negativos, pois nesse tipo de procedimento podem ocorrer muitas fraudes, tais como valores elevados demasiadamente, motivos desleais, e pagamentos indevidos. Desse modo expõe Silvio de Salvo Venosa:

Não resta dúvida de que por meio do procedimento de sub-rogação são praticadas fraudes. Avaliações tendenciosas, falsos motivos, pagamentos por fora. Com toda a fiscalização judicial, a fraude poderá estar presente. Tanto mais será procurada a fraude quanto mais rígida for uma disposição jurídica, como é a cláusula de inalienabilidade. Não é menos verdadeiro também que por meio da sub-rogação se minimizam os males praticados pelo testador na imposição desse gravame no passado, males esses que se estendem por anos, décadas, uma geração após sua morte. Em qualquer caso, incumbe ao juiz verificar das reais conveniência e oportunidade da sub-rogação do vínculo. O processo de jurisdição voluntária permite ao juiz que adote para cada caso a solução que reputar mais conveniente e oportuna (art. 1.109 do CPC). Em hipótese alguma, porém, se permite a exclusão do vínculo. No sistema do vigente Código, a solução será a mesma se a cláusula não for declarada ineficaz por sentença. (2014, p. 186)     

Portanto, as cláusulas restritivas que impõem inalienabilidade dos bens recebidos pelos herdeiros têm o escopo de garantir que o patrimônio construído pelo testador, ora falecido, não seja dilapidado pelos seus sucessores. Em alguns casos realmente, os sucessores assim dizendo, não são capazes de administrar o patrimônio que lhes será transmitido. Então a inalienabilidade é uma forma encontrada pelo de cujus, no âmbito da sucessão testamentária, para garantir que o patrimônio será preservado e passado para a próxima geração.

Cláusula de impenhorabilidade

A cláusula de impenhorabilidade, como o próprio nome diz, impede que o bem seja penhorado, de modo que não seja garantia de credores no processo de execução. Esse fato gera grandes discussões quanto à possibilidade de ocorrer fraude contra credores. A doutrinadora Maria Berenice Dias aponta entendimento de que esta cláusula de impenhorabilidade “é de questionável conteúdo ético, pois consiste em blindar o herdeiro. Ao fim e ao cabo, visa protegê-lo de seus credores. Impedida a penhora dos bens recebidos por herança, desonera o herdeiro de responder por seus débitos” (2011, p. 289).

Muito se discute sobre os frutos e rendimentos dos bens gravados com cláusulas de impenhorabilidade, em relação a suas características ou as possibilidades dessa extensão, como nos assevera Carlos Roberto Gonçalves: “Os frutos e rendimentos caracterizam-se pela sua alienabilidade, pois se destinam à satisfação das necessidades do titular da coisa. Desse modo, a cláusula de inalienabilidade imposta a esta não os atinge.” (2011, p. 214).

Ainda sobre essas divergências pode-se encontrar na extensa seara jurídica duas correntes, uma admitindo que os frutos e rendimentos também possam ser impenhoráveis devido à cláusula imposta, e outra que discorda dizendo que os frutos e rendimentos são alienáveis, independente de cláusula, Carlos Roberto Gonçalves aduz que:

Há uma corrente que admite que o testador pode gravá-los expressamente, juntamente com a coisa principal. Merece ser prestigiada, entretanto, a corrente contraria, que entende não podem ser clausurados, para que a propriedade não se torne de todo inútil ao dono. Como, não obstante, podem ser gravados com a impenhorabilidade, consoante entendimento majoritário, uma cláusula que os onere também com a inalienabilidade deve ser interpretada como relativa apenas a primeira restrição. Somente os bens seriam inalienáveis, permanecendo disponíveis os frutos e os rendimentos, embora impenhoráveis. (2011, p. 214).

Dessa forma, o entendimento majoritário na doutrina e na jurisprudência atual demonstra que os frutos e rendimentos dos bens clausurados não sofrem restrição judicial podendo ser usufruídos livremente pelos herdeiros. A impenhorabilidade dos bens herdados é vastamente criticada considerando a ocorrência de fraude contra credores, que se veem impedidos de receber de seus devedores o que lhes é devido em virtude desse gravame. Isso não ocorrerá em relação aos credores do de cujus, pois, quando da abertura da sucessão estes serão pagos para posteriormente sobre os bens que restarem serem gravadas as cláusulas restritivas.

Cláusula de incomunicabilidade

A cláusula de incomunicabilidade exclui o bem da comunhão de bens entre os cônjuges, independente do regime de bens estabelecido entre o casal. Logo, o testador, através dessa cláusula, protege o patrimônio de seu herdeiro para que este não possa ser compartilhado com seu cônjuge, no mesmo sentido aduz Maria Berenice Dias:

A cláusula de incomunicabilidade, como o próprio nome diz, veda que os bens do herdeiro se comuniquem com os de seu cônjuge. O autor da herança, por meio de testamento, pode determinar que seus bens não passem a pertencer ao cônjuge do herdeiro, quer legítimo, quer testamentário. A preocupação do testador é favorecer tão somente o seu herdeiro, mas ainda assim precisa justificar a restrição a legítima do sucessor. (...) (2011, p. 290)

Essa cláusula é um tanto quanto egoísta por parte do autor da herança, que, de certa forma, não quer ver o patrimônio que ele próprio construiu ser compartilhado com outra família. Na maioria das vezes essa cláusula é imposta pelo testador devido ao fato de não ter boa convivência com sua nora ou genro, da mesma forma é o entendimento de Carlos Roberto Gonçalves:

A cláusula de incomunicabilidade constitui eficiente proteção ao herdeiro, sem que, por outro lado, colida com qualquer interesse geral. O exemplo mais comum é o do pai cuja filha se casa pelo regime da comunhão de bens. Para evitar que, com a separação, os bens por ela trazidos sejam divididos com marido não confiável, ou que com a morte deste os mesmos bens sejam partilhados com seus próprios herdeiros, o genitor impõe a incomunicabilidade da legítima, impedindo o estabelecimento da comunhão (CC. art. 1.668, I). (2011, p. 214)

Em alguns casos o testador sequer chega a conhecer o companheiro de seu herdeiro, no entanto, teme que seu patrimônio seja dilapidado por alguém que não seja confiável. Essa imposição não é totalmente descabida, mas trata-se de um risco que todo ser humano pode correr de ser enganado por alguém. Desta feita, a intenção do autor da herança tem o condão de proteger seus familiares. Conforme é a opinião de Silvio de Salvo Venosa:

O testador pode temer pelo casamento do herdeiro, quer numa união que ele já conheça, já existente quando da elaboração do testamento, quer numa união futura, desconhecida do disponente. Pela cláusula de incomunicabilidade, os bens assim gravados não se comunicam ao cônjuge herdeiro, não importando qual seja o regime de bens do casamento. Enfim, temendo que seu herdeiro venha a consorciar-se com um “caça-dotes”, o bem incomunicável fica pertencendo só a ele. (2014, p. 179)

O que se pode perceber analisando o ordenamento jurídico atual é que essa cláusula só terá eficácia quando o regime de bens estabelecido entre o casal for o da comunhão universal de bens, pois, nesse regime todos os bens são comunicáveis, mas, a lei admite exceções e uma delas é a imposição de cláusulas restritivas em testamento que acaba por romper essa disposição passando o bem a fazer parte somente do patrimônio do herdeiro e não do seu cônjuge, concretizando, assim, a vontade do autor da herança.

Porém, mesmo o bem sendo incomunicável essa restrição não atinge seus frutos e rendimentos, conforme determina o artigo 1.669 do Código Civil atual, assim os aumentos que ocorrerem nos bens do casal decorrentes do usufruto do bem incomunicável integrarão o patrimônio comum entre eles. Mas comparados com a divisão do bem com o cônjuge não são de grande valia, e ainda sim é respeitada a vontade do de cujus.

Ademais, a doutrina ainda trás possibilidades em que mesmo havendo a cláusula de incomunicabilidade para que os bens recebidos pelo herdeiro não se comuniquem com os bens de seu cônjuge, fica impossível evitar que isso ocorra. A exemplo disso, nos casos de falecimento do herdeiro, o seu cônjuge será seu sucessor e, em decorrência, herdará seus bens como enfatiza a doutrinadora Maria Berenice Dias algumas dessas situações:

A incomunicabilidade se justifica quando ocorre o divórcio do herdeiro. Os bens recebidos pelo cônjuge restam como seus bens reservados. Quando da morte do herdeiro, a cláusula de incomunicabilidade serve apenas para impedir que o bem passe a integrar o patrimônio comum do casal. Contudo, não tem o condão de suprimir o direito de herança do viúvo. Assim, falecido o cônjuge, na hora de separar a meação do sobrevivente, os bens clausulados não entrarão na divisão. Constituem acervo hereditário do de cujus, a ser atribuído aos seus herdeiros necessários. Porém se o falecido não tem descendente e nem ascendente, a cláusula desaparece. O cônjuge sobrevivente recebe a herança, mesmo que constituída de bens que se encontravam com cláusula de incomunicabilidade. O viúvo a ele faz jus, como herdeiro necessário que é. As cláusulas não ultrapassam a pessoa do herdeiro. Cabe figurar a hipótese de inexistirem herdeiros legítimos. De todo descabido que a herança seja recolhida como jacente, em face da falta de comunicação imposta à herança. A lei não autoriza tal conclusão. Admite o recolhimento da herança somente quando inexistir herdeiro sucessível, sem fazer quaisquer distinções (CC 1.844). (GRIFO DO AUTOR) (2011, p. 291).

Dessa forma, mesmo que exista cláusula de incomunicabilidade sobre o bem, podem ocorrer situações inevitáveis nas quais o cônjuge é o herdeiro necessário e essa cláusula irá desaparecer independente da imposição feita pelo testador. Então, diante dessa situação, a cláusula se tornará inútil no âmbito jurídico.

Por conseguinte, pode se perceber que vários podem ser os motivos para que os testadores gravem cláusulas restritivas em relação aos bens contidos na sucessão testamentária, seja porque realmente se preocupam em proteger o patrimônio familiar, para que seus herdeiros continuem a vida com conforto sem se desfazerem dos bens, ou seja, por inimizades, descontentamentos ou até mesmo brigas familiares. Nesse contexto:

Em uma visão tradicional, poder-se-ia afirmar que a cláusula de incomunicabilidade seria forma de proteção do herdeiro, que pode escolher mal seu cônjuge e, em caso de separação judicial ou divórcio, ter que partilhar o patrimônio herdado. Porém, acreditamos que na realidade pós-moderna é melhor afirmar que a referida cláusula é apenas um exercício da autonomia privada que decorre da lei. (TARTUCE e SIMÃO, 2011, p. 358)

Embora no direito sucessório seja de grande importância o princípio da última vontade do testador, existem também os limites materiais impostos pela legislação que devem ser acatados, e ainda, os direitos garantidos aos herdeiros na Constituição Federal de 1988 que devem ser colocados frente às cláusulas restritivas impostas em testamento para que sejam aplicadas de forma justa e em conformidade com nossa lei maior.