A REVISTA ÍNTIMA REALIZADA EM FAMILIARES DE PRESOS:  Medida de segurança versus desrespeito à dignidade humana

Medida de segurança versus desrespeito à dignidade humana[1]

Amanda Beatriz Sousa[2]

Paula Mª B. Aragão Azevedo[3]

Yuri Frederico Dutra[4]

 

RESUMO

O presente artigo busca estudar a realidade da Revista Intima no sistema carcerário, analisando-apor uma perspectiva baseada em duas teorias opostas: os defensores da revista, sob o aspecto da segurança, e aqueles que se contrapõem a ela, revelando um caráter, muitas vezes vexatório e desregrado com que a revista é aplicada, resultando em constrangimentos e ferindo a dignidade humana daqueles que se submetem ao procedimento, o qual é visto de forma preventiva mesmo havendo outros métodos, menos invasivos que poderiam ser utilizados.

INTRODUÇÃO

A revista pessoal ocorre como meio do fortalecimento da segurança dos estabelecimentos penais, uma vez que a violência desmedida exige da sociedade a cobrança de soluções rápidas diante das autoridades competentes. Desta forma, passou a impor não somente aos presos, mas também aos amigos e familiares, em nome da segurança, procedimentos de revista corporal por ocasião das visitas nos sistemas carcerários. O procedimento da revista que se compreende a partir da leitura do art. 244 do Código de Processo Penal permite que em determinada situação (fundada suspeita), a dispensa da obrigação de autorização judicial para prática do ato de revista.

Contudo, existem limites que a mesma deve obedecer para não afrontar os princípios constitucionais que norteiam o procedimento. É importante frisar também que a pena imposta ao preso não pode dele ultrapassar, atingindo terceiros e gerando situações constrangedoras e humilhantes. Além do mais, não existe uma unanimidade quanto à verdadeira eficiência do método no controle do ingresso de substâncias, armas, produtos nas penitenciárias. Demonstrando mais uma vez a ausência plena de limites na realização do procedimento.

Sendo assim, é de extrema necessidade o ajustamento da revista nos estabelecimentos penais ao Parecer Constitucional e aos Princípios baseados em Abordagens Internacionais de Direitos Humanos, para que o Estado possa garantir às pessoas livres, familiares e amigos dos presos, o direito de poder visitar os parentes sem sofrerem nenhum tipo de violação física, moral e psicológica e a preservação da dignidade que ainda possuem.

1. Revista Íntima: método de aplicação, eficácia do procedimento e conseqüências

Inicialmente é necessário ressaltar a existência de vários tipos de Revista Pessoal. Segundo Adilson Luís Franco Nassaro[5], as revistas classificam-se em quatro tipos: a) quanto à natureza jurídica do procedimento: preventiva e processual; b) quanto ao nível de restrição de direitos individuais imposto: preliminar eminuciosa; c) quanto ao sujeito passivo da medida: individual e coletiva; e d) quanto à tangibilidade corporal: direta e indireta.

A revista pessoal é preventiva quando realizada por ação da polícia administrativa ou por alguma autoridade competente no campo da prevenção da prática de crimes. Porém, a partir da constatação do exercício delituoso ou contravenção penal passa a abranger interesse eminentemente processual. Classifica-se como preliminar quando, durante a revista, ocorre poucaressalva aos direitos individuais, e minuciosa ou “íntima”, quando essa restrição é mais acentuada. A revista individual constitui situação particular de busca pessoal, enquanto que a coletiva é realizada no acesso a eventos ou, então, em situações específicas. Por fim, a ocorrência decontato físico entre oagente e o revistado caracteriza a revista direta e a ausência do contato físico constitui a revista indireta.

O Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária (CNPCP)[6] exigiu ao menos a existência da “fundada suspeita” para realização da revista direta (sobre o corpo do indivíduo) no âmbito do sistema penitenciário e, mais, afastou a subjetividade da mesma:

Art. 2º A revista manual só se efetuará em caráter excepcional, ou seja, quando houver fundada suspeita de que o revistando é portador de objeto ou substâncias proibidos legalmente e/ou que venha a por em risco a segurança do estabelecimento.

Parágrafo único. A fundada suspeita deverá ter caráter objetivo, diante de fato identificado e de reconhecida procedência, registrado pela administração, em livro próprio e assinado pelo revistado.(grifamos) 

Contudo, ao estabelecer a “fundada suspeita”, o CNPCP não estabeleceu os limites da revista, dando margem para a existência de possíveis excessos, arbitrariedades e ao desrespeito à dignidade da pessoa humana.

A ausência de limites para a realização da revista pessoal, não foi suficiente, o Estado foi além e passou a permitir a chamada “revista íntima”. Também conhecida como revista vexatória, o método de aplicação consiste no desnudamento do indivíduo, com a exposição das partes íntimas, chegando inclusive, a ocorrer à penetração do dedo do executor da medida no interior dos órgãos sexuais da pessoa revistada.

O direito à visita íntima nas cadeias masculinas foi instituído em 1987, passando a vigorar logo em seguida. Já nas penitenciárias femininas, isso só foi possível em 2001. O procedimento é realizado com os familiares dos reclusos e obedece á uma série de regras e normas do próprio sistema penitenciário local.

O relatório[7]sobre mulheres encarceradas, elaborado pela Comissão Interamericana de Direitos Humanos, afirma que: “a realização desse tipo de revista pessoal atua como instrumento de intimidação, uma vez que o próprio Estado informaque o número de apreensões de objetos encontrados com visitantes em vaginas, ânus ou nointerior de fraldas de bebês é extremamente menor daqueles encontrados nas revistasrealizadas pelos policiais nas celas, indicando que outros caminhos ou portadores, que não sãoos visitantes, disponibilizam tais produtos para as presas”.

A introdução de um objeto na vagina dependeria do tamanho desse objeto e da posição em que ele fosse colocado, uma vez que o órgão possui apenas 7 centímetros de comprimento e flexibilidade lateral de 6a 10 centímetros. Além disso, o fato de ser utilizado, em determinadas prisões, papel higiênico para limpar os lábios vaginais pois a presença de corrimento seria um indicador da existência de drogas no interior da vagina, não procede, até porque, a maioria dessas mulheres, são de classe baixa e acabam desenvolvendo eventualmente problemas desse tipo.

                   O Relatório Azul de 2000/2001 elaborado pela Comissão de Cidadania e Direitos Humanos da Assembleia Legislativa do Rio Grande do Sul, também demonstra a ineficácia do procedimento, ao proferir que: “tanto é público quanto notório que o tráfico de drogas nos presídios realiza-se não a partir de familiares, mas invariavelmente, com a participação e/ou conivência de integrantes do próprio sistema.” (Relatório Azul, 1995, p. 75). 

Fica nítida a ineficácia do procedimento da revista íntima, porém a mesma continua a ser realizado nos estabelecimentos prisionais de forma desregrada, o Estado deveria averiguar os funcionários que trabalham no interior do Sistema Prisional, e que poderiam estar promovendo a entrada de objetos ilícitos, contudo, prefere criar regras severas para punir os familiares, como se fossem eles os únicos culpados pelos delitos. Sendo mais fácil abster-se do ato de corrupção dentro do próprio sistema do que extinguir o procedimento da revista íntima realizada de forma humilhante.

Toda essa humilhação sofrida pelos familiares de presos acabagerando inúmeras conseqüências. Porém, sentimento que nutrem pelos filhos, maridos, namorados, avós, irmãos acaba sendo maior do que a própria violação a qual são submetidas. O medo da exposição dos órgãos sexuais torna-se pequeno diante da expectativa do encontrocom o ente e é isso que as encoraja para suportar o procedimento. E com o passar do tempo, a revista acaba sendo congregada à rotina da penitenciária, fazendo com que as pessoas se habituem e passem a conviver com ela.

Contudo, a forma rígida como é realizada acaba promovendo traumas psicológicos desnecessários e que poderiam ser evitados, principalmente, quando aplicada em crianças e jovens. Há quem veja a revista íntima como uma forma de violência sexual seja através de um olhar de desejo sexual direcionado pelo agente ou um gesto mais íntimo, o que é suficiente para caracterizar a invasão da intimidade daquele indivíduo.

Muitos visitantes são vítimas de maus tratos, olhares maliciosos, sendo tratados como verdadeiros criminosos pelos próprios agentes penitenciários e não tem com quem desabafar ou fazer reclamações referentes aos procedimentos vexatórios que invadem não só o corpo, mas também a alma e a dignidade da pessoa. Além disso, os familiares passam a gozar também da privação de liberdade juntamente com o preso, sofrem preconceitos e são estigmatizados por parte da sociedade, que acaba associando a prática do delito cometido pelo recluso aos membros da família do mesmo. Somam-se ainda as condições precárias onde a revista é realizada, sendo difícil para os visitantes se sentirem à vontade naquele local. Tudo isso representa situações constrangedoras e, sobretudo desumanas.

É como afirma Yuri Frederico Dutra em seu livro “Como se estivesse morrendo”:

“O preconceito vivenciado pelos familiares de reclusos não se dá somente na sociedade, mas na própria relação familiar com outros parentes, vivenciando isolamento, rejeição, comentários maldosos e reprovadores. Esses sentimentos levam a duas formas de comportamento do familiar de recluso: o da pessoa forte que suporta tudo sozinha e busca na rede de solidariedade de visitantes de reclusos o seu ponto de apoio para desabafo, ou o daquela que assume o papel de vítima, achando que todos fazem questão de tratá-la de forma diferenciada”. (DUTRA, 2008, p. 83.)

Diante da Comissão de Direitos Humanos e Minorias, Cristina Rauter, Professora do Departamento de Psicologia da Universidade Federal Fluminense alerta para os efeitos que perseguem as pessoas que são constantemente submetidas à revista íntima, chegando a equipará-la à tortura:

“Acrescente-se a isso o já mencionado procedimento da revista íntima, outra situação que pode ser equiparada à tortura e assim é vivida por quem passa pela experiência. Estou atendendo uma mãe de ex-preso que foi durante anos submetida a esse procedimento e que exibe hoje efeitos psicológicos semelhantes aos dos torturados, de pessoas torturadas na época da ditadura militar” (RAUTER, 2001) 

Talvez a única ajuda que essas mulheres possuam seja o apoio e o companheirismo construído entre elas mesmas. A situação de dor perante aquela situação em comum faz com que elas unam as forças e compartilhem as situações vivenciadas dentro dos presídios. É uma forma de amenizar o sofrimento e reforçar os laços de amizade. Segundo Yuri Dutra:

[...]