Amanda Ferreira Leite Primo

RESUMO


O presente artigo analisa a argüição da culpa mortuária no direito sucessório do companheiro frente à atual dinâmica das relações familiares em que o desenlace matrimonial fundado na observância da culpa mostra-se completamente inadequado. A Lei Maior ampliou o conceito de família abrangendo as relações humanas fundadas no afeto e, diante destas surge a necessidade de inversão do pensamento exposto no Código Civil Brasileiro no que pertine à sucessão do companheiro quando da morte do seu consorte que era apenas separado de fato. Imputar a culpa ao cônjuge falecido pelo término do relacionamento conjugal, quando da abertura da sucessão, ocasionando benefício ao ex-cônjuge em detrimento do companheiro que sofrerá desvantagens no seu direito de suceder, bem como contradições nas regras constitucionais disciplinadoras das figuras jurídicas do casamento e da união estável.


Palavras-Chave: Separação de Fato. Culpa. Sucessão. Companheiro.


SUMÁRIO: 1. INTRODUÇÃO. 2. A FAMÍLIA AO LONGO DA HISTÓRIA. 3. O CASAMENTO E SUA DESCONSTITUIÇÃO. 3.1 A SEPARAÇÃO JUDICIAL. 3.2. A SEPARAÇÃO DE FATO 3.3 O DIVÓRCIO. 4. O RECONHECIMENTO DA UNIÃO ESTÁVEL. 4.1 OS PRESSUPOSTOS. 4.2. A AUSÊNCIA DO LAPSO TEMPORAL. 5. O COMPANHEIRO NO DIREITO SUCESSÓRIO. 5.1 DIRETRIZES ADOTADAS NA VIGÊNCIA DO CÓDIGO CIVIL DE 2002. 5.2 A PARCELA HERDADA. 6. A CULPA MORTUÁRIA DO ART. 1.830 DO C.C/02. 6.1 A INVIABILIDADE DA ARGUIÇÃO DIANTE DOS ARGUMENTOS QUE AFASTARAM A RELEVÂNCIA DA CULPA CONJUGAL. 6.2 AS REPERCUSSÕES NO DIREITO DO COMPANHEIRO. 6.3 PROPOSTAS PARA UMA MELHOR SUCESSÃO DO COMPANHEIRO. 7. CONSIDERAÇÕES FINAIS. 8. REFERÊNCIAS.



1. INTRODUÇÃO


Inicialmente cabe ressaltar que o artigo abordará a repercussão da culpa mortuária no direito sucessório do companheiro, fazendo uma análise sobre o art. 1.830 do CC/02. Sabe-se que o direito como instrumento de organização da sociedade estabelece os fatos da vida com importância no mundo jurídico pretendendo abarcar todas as situações possíveis. Entretanto, por não conseguir acompanhar a dinâmica da realidade social que rompe com as tradições surge a necessidade de constante atualização normativa, ou seja, de "oxigenação das leis" .
Nessa tentativa de oxigenação o Novo Código Civil trouxe à sucessão causa morte o instituto da culpa mortuária que se apresenta contrário a qualquer tentativa de adequação do ordenamento jurídico a atual conjuntura das relações humanas por desconsiderar a separação fática, possibilitando o cônjuge sobrevivente suceder o autor da herança, mesmo não mantendo qualquer laço afetivo com este, sendo necessário a comprovação da ausência de culpa na descontinuidade da convivência conjugal, e assim, caracterizando uma garantia ao direito sucessório do ex-cônjuge sobrevivente.
Ao dispor sobre tal espécie de culpa, no art. 1.830 do CC/02, o legislador produziu um grande problema para as situações nas quais se configura a união estável entre o autor da herança e seu companheiro, ainda que separados apenas de fato. Da leitura do art. 1.511, deste mesmo diploma jurídico, tem se que somente existi casamento com a plena comunhão de vida entre o casal. Não observada a convivência entre os cônjuges, restará desconstituído os laços do matrimônio por força da separação de fato e, esta concepção era a albergada no Código de 1916.
Em sendo assegurado ao cônjuge sobrevivente o direito de suceder o de cujos, por decorrência da culpa mortuária, como se daria a proteção ao companheiro com o qual aquele vivia em união estável. Como entidade familiar constitucionalmente reconhecida, não seria também digna de tutela no direito sucessório? Cabe dizer que o fundamento jurídico do direito sucessório no Brasil esta não apenas na proteção da propriedade, como também da família por ser esta a base da sociedade, exigindo proteção especial do estado, conforme o art. 226 da Constituição Federal de 1988.
É fato que a legislação pátria não tem, dentre os seus objetivos, o desejo de equiparar o companheiro ao status do cônjuge, por não prever a igualdade na totalidade dos direito assegurados àquele, frente a isto surge a necessidade de averiguar as implicações da culpa mortuária no direito sucessório do companheiro. E em sintonia exige-se, também, que se discorra como o direito sucessório é aplicável nas relações decorrentes do casamento e da união estável.
A leitura do art. 1.830 do C.C/02 proporciona o entendimento de que o mesmo consiste numa espécie castigo àquele que por não ter cumprido com seus deveres matrimonias acabou por promover a impossibilidade da vida em comunhão, e numa gratificação ao esposo lesado.
Vale dizer que a sucessão deve mostrar-se compatível com a realidade fática e as inovações normativas trazidas pela Constituição Federal de 1988, permitindo inseri-lá na nova estrutura social marcada pela configuração da união estável, conferindo assim paridade de armas aos companheiros perante os cônjuges na tutela dos seus direitos sucessórios, de forma que os fatos pretéritos não os prejudiquem.


2. A FAMÍLIA AO LONGO DA HISTÓRIA


A história da evolução humana nos mostra que a grande diversidade de formação familiar remonta aos primeiros passos das civilizações mais remotas. A família consiste no grupamento humano que compreende o conjunto das primeiras relações sociais adquiridas pelo homem, é a estrutura que fundamenta a forma de viver os fatos da vida e, que lastreia a sociedade, não podendo ser compreendida senão à luz das relações multifacetadas, marcadas por suas peculiaridades. Disso surge a impossibilidade de se fixar um padrão de família, sendo necessário concebe-lá em harmonia com os movimentos de transformações históricas e sociais.
Os primeiros modelos familiares foram marcados pela família patriarcal, hierarquizada e concebida para a formação de um patrimônio, era dirigida como um meio de produção sem qualquer intervenção do Estado. No período da Idade Média as relações familiares eram regidas exclusivamente pelo direito canônico, tendo a Igreja Católica se utilizado do poder que dispunha para impor dogmas e tabus fundados na idéia de fidelidade, de pudor, de indissolubilidade do casamento, de culpa e vergonha, que até hoje repercutem na sociedade.
No Brasil, o Código Civil de 1916 mostrava-se condizente com tais valores como fruto de uma sociedade ruralizada recém saída do período colonial. Não se conferia efeitos jurídicos aos que não formalizassem sua união, que eram rebaixadas à condição de pecado. Contudo, a sociedade avançou passando a prever novos valores mais de acordo com o desenvolvimento alcançado, tendo a Constituição Federal de 1988 introduzido uma vasta gama de valores com fundamento na preservação da dignidade da pessoa humana, agora as relações passam a ser regida pelo afeto entre seus membros.
A desvinculação da família como mera unidade econômica trouxe a noção de que esta deveria ser mais igualitária, reforçando a nova tendência que lhe foi atribuída, de promover o desenvolvimento de seus membros tendo em mente o afeto que os une. Nesse momento, é forçoso reconhecer que além da família tradicional, fundada no casamento, outras formações tornaram se aptas a gozar da tutela estatal.
A união estável atinge o status de entidade familiar já que predomina o entendimento de que a família não mais se configura sobre o vínculo indissolúvel do matrimônio, sendo o sentimento o laço que mantém a sociedade conjugal, terminado o afeto inexiste razão para a sua manutenção. E no que diz respeito a esta nova conjuntura familiar Rodrigo da Cunha Pereira dispõe que "o Estado cada vez mais é afastado do âmbito de incidência das relações sociais, pois este não pode mais controlar as formas de constituição das famílias [...] ela é mesmo plural" .


3. O CASAMENTO E SUA DESCONSTITUIÇÃO


Até o advento da Constituição de 1988 a concepção de família estava atrelada à decorrente do casamento, religioso e indissolúvel, imperava a regra "até que a morte os separe" . O casamento era visto como um ato solene celebrado entre um homem e uma mulher em caráter definitivo não sendo possível sua extinção e, mesmo com o surgimento da Lei do Divórcio a visão matrimonializada da família permaneceu.
Com a edição do Código Civil de 1916 surge a única possibilidade legalmente prevista, à época, de romper com matrimônio, o instituto do desquite, que exigia como causas justificadoras: o adultério, a tentativa de morte, a sevícia ou injúria grave e o abandono voluntário do lar conjugal. O vínculo conjugal permanecia inalterado, inviabilizando novos casamentos, mas não novos vínculos chancelados pelo afeto, cessavam os deveres de fidelidade e de manutenção da vida em comum sob o mesmo teto apesar de permanecerem os deveres de mútua assistência.
As relações extramatrimonias não eram reguladas pelo legislador o que lhe inviabilizava produzir qualquer efeito jurídico, contudo, tal repúdio não foi capaz de coibir o nascimento das relações não respaldadas nas normas legais. Quando da edição da Lei do divórcio nº 6.515/77 o antigo desquite foi revogado, sendo inseridas duas novas figuras jurídicas destinadas à desconstituição dos laços do matrimônio. Nasce então a separação judicial e o divórcio, sendo a primeira destinada ao término da sociedade conjugal e a última ao término do casamento. E como assevera Eduardo de Oliveira Leite "ninguém atinge o divórcio sem antes ter sido separado" .
Superada a visão do casamento, sobre o prisma exclusivamente econômico, este passa a ser concebido como uma comunidade de afeto, da qual diante da sua ausência brota um autêntico direito à sua dissolução. Logo, se estabelece que quando da constituição do casamento já se protege a possibilidade de dar, ou não, continuidade a este.


3.1 A SEPARAÇÃO JUDICIAL


A separação como uma das modalidades de "descasamento" pode ser obtida através da vontade de ambos os cônjuges ou por iniciativa de apenas um deles. Havendo intenção de ambos em romper o casamento, torna-se desnecessário qualquer perquirição quanto às razões da separação.
É permitido ao casal separar-se depois de decorrido um ano de celebrada as núpcias, independentemente do fato do vínculo afetivo se extinguir antes do decurso deste prazo. Se apenas um dos cônjuges toma a iniciativa, este terá que atribuir ao outro a culpa pelo fim da união, mas se o outro cônjuge posteriormente anuir com essa iniciativa observa-se-a a conversão de uma separação judicial em consensual. É preciso lembrar que o divórcio só poderá ser pleiteado depois de decorrido um ano da separação, com a conversão desta. O separado fica desobrigado dos deveres do matrimônio, no que pertine aos deveres de fidelidade, de coabitação e do regime de bens, só não podendo casar, o que para Maria Berenice reflete uma situação de "quase um limbo, a pessoa não está mais casada, mas não pode casar de novo" .
A questão da culpa será exaustivamente discutida quando da análise não apenas sobre a óptica do direito de família, como também sobre o prisma do direito sucessório. Porém não se pode deixar de esclarecer que o legislador, vinculado aos tempos remotos das relações sacralizadas pelo casamento, ainda permite a discussão da culpa pelo término dos laços do matrimônio, conforme a redação do art. 1.572 do C.C/02 leva a inferir ao dispor: "qualquer dos cônjuges poderá propor a ação de separação judicial, imputando ao outro qualquer ato que importe grave violação dos deveres do casamento e torne insuportável a vida em comum". Entretanto, pelo que já foi exporto em relação às premissas constitucionais o término do casamento decorre do fim do afeto do indivíduo para com o seu par.
O sistema de causas culposas como pressuposto da dissolução resta totalmente ultrapassado. A não constatação da culpa do outro cônjuge não pode ser usada como motivo para obrigar alguém a permanecer casado.


3.2. A SEPARAÇÃO DE FATO


No plano do direito brasileiro a separação de fato passou a ter relevância em razão da Emenda Constitucional nº 9, de julho de 1997, que ao regular o divórcio dispunha sobre a duração da separação fática por mais de cinco anos com sua posterior conversão em divórcio.
A separação de fato pode ocorrer por uma série de motivos se caracterizando tanto por uma atitude individualizada de apenas um dos cônjuges, quanto pelo consenso destes no tocante a insuportabilidade na manutenção da vida em comum, não cabendo qualquer discussão visto ser uma opção das partes em não se subordinar a intervenção do estado no âmbito de suas relações privadas, o que não exige qualquer formalidade para uma posterior reconciliação dos mesmos.
É com a separação de fato que, realmente, se põe fim ao matrimônio. Cessada a convivência o casamento para de produzir efeitos, estando pendente apenas da chancela estatal, não mais existindo qualquer dever dele decorrente, como o dever de fidelidade. Isto dito conclui-se que os separados de fato já podem constituir uma união estável, ainda permanecendo a proibição de novo casamento
Com o fim da vida em comunhão ocorre também a cessação do regime de bens disciplinador da união, ausente o vínculo socioafetivo a razão de ser da comunicação patrimonial deixa de existir. E após a separação de fato, apesar da não oficialização da separação judicial ou divórcio, tem-se que os bens adquiridos por qualquer dos cônjuges só pertencerá a quem o conquistou, evitando-se o enriquecimento sem causa.


3.3 O DIVÓRCIO


O divórcio, conforme dispõe a Constituição Federal em seu §6, art. 226, pode ser requerido, por qualquer dos cônjuges, quando comprovada a separação de fato por mais de dois anos, restando àqueles cujo vínculo afetivo já foi rompido recorrer ao mecanismo da separação.
A ação de divórcio, que também pode ser consensual ou litigiosa, quando fundamentada na extinção da vida em comum por mais de dois anos, é concebida como divórcio direto, diferenciando-se da ação de conversão da separação em divórcio. Diante disso, não cabe falar em culpa no divórcio. E em se tratando de divórcio consensual, de cuja união não tenha resultado filhos menores ou incapazes, é possível obtê-la pela via extrajudicial, sendo tal entendimento estendido para a separação consensual.
A dissolução do casamento ocorre com o divórcio previsto no art.1.571,§ 1º do C.C/02, com os ex-cônjuges tornando-se aptos a contrair novas núpcias, pois os divorciados são livres para se casar novamente.


4. O RECONHECIMENTO DA UNIÃO ESTÁVEL


Inicialmente cabe dizer que a união estável é o instituto jurídico caracterizador de uma convivência pública, contínua e estável, que objetiva constituir família em virtude do vínculo afetivo observado entre aqueles que a compõe. Além disso, Washington de Barros Monteiro preceitua que "a união estável deve ser [...], entre pessoas de sexo diferente, não importando o tempo que dure, nem a existência de filhos comuns" .
Por não exigir qualquer formalidade para se concretizar, não é pertinente lhe impor qualquer impedimento ou limitação, salvo o requisito de que nenhum dos companheiros encontre-se em plena comunhão de vida com o seu respectivo cônjuge, o que configuraria uma relação adulterina, violando um dos valores que sustentam as relações em nossa sociedade, a monogamia.
Não se pode deixar de falar que é totalmente descabida a fixação de um prazo para a sua efetivação na realidade social, apesar de no passado a lei nº 8.971/94 ter fixado um prazo de cinco anos, o que não se visualiza na Constituição 1988. Nesse sentido é o posicionamento majoritário da doutrina, aqui representada por Maria Berenice Dias:

A união estável, porém, não dispõe de qualquer condicionante. Nasce do vinculo afetivo e se tem por constituída a partir do momento em que a relação se torna ostensiva, passando a ser reconhecida e aceita socialmente. Não há qualquer interferência estatal para a sua formação, sendo inócuo tentar impor restrições ou impedimentos. Tanto é assim que as provas da existência da união estável são circunstanciais [...] .

Sob a égide do Código Civil de 1916, que não reconhecia qualquer proteção ou efeito jurídico às relações extramatrimonias, as uniões estáveis eram denominadas de concubinato conferindo-lhe um cunho depreciativo, mas aos poucos foram alcançando o respeito do legislador. Nesta época elas eram localizadas no Direito das Obrigações e tratadas como sociedades de fato que ao serem marcadas pela boa-fé, isto é, pelo desconhecimento da simultaneidade conjugal permitia àquele que se identificasse neste contexto solicitar uma parte sobre o patrimônio adquirido durante a constância da, então, sociedade conjugal, evitando-se o enriquecimento sem causa do parceiro adúltero.
Hoje, o Código Civil de 2002 regula a união estável entre os arts. 1.723 e 1.726, indicando os elementos que a caracterizam, os direitos e deveres dos companheiros, determinando no art. 1.725 que as relações patrimoniais entre aqueles que vivem em união estável regem-se pelo regime de comunhão parcial de bens, salvo disposição escrita dispondo de modo diverso. Os bens adquiridos onerosamente na constância da união estável se comunicam, conservando cada qual o patrimônio arrecadado entes da relação.
Ressalta- se que as relações não formalizadas sobre os laços do matrimônio somente atingiram status de união estável por força da jurisprudência, sendo posteriormente inseridas no Direito de Família. Contudo, o fato que mais marcou o processo de reconhecimento dos efeitos jurídicos da união estável foi apresentado pela Constituição Federal de 1988, a chamada Constituição Cidadã, que dispõe no seu art. 226, §3º: "Para efeito de proteção do estado, é reconhecida a união estável entre o homem e a mulher como entidade familiar, devendo a lei facilitar sua conversão em casamento." Tal entendimento foi posteriormente reproduzido pelo Código Civil de 2002 que no seu art. 1.723 apresenta a seguinte redação: "É reconhecida como entidade familiar a união estável entre o homem e a mulher, configurada na convivência pública, contínua e duradoura e estabelecida com o objetivo de constituição de família."


4.1 OS PRESSUPOSTOS


A união estável como entidade familiar decorrente de uma relação extramatrimonial que não se submete às formalidades de qualquer natureza e tem como requisitos caracterizadores de sua constituição a convivência pública, continua, duradoura como marido e mulher, com o objetivo de constituição de família.
Pelo termo público deve se ter em mente a idéia de notoriedade no meio social do vínculo que une o casal, passado a ser vistos "como se casados fossem". Logo, pondera Dias "só se pode afirmar que a união estável inicia de um vínculo afetivo. O envolvimento mútuo acaba transbordando o limite do privado começando as duas pessoas a ser identificadas no meio social como um par" .



4.2. A AUSÊNCIA DO LAPSO TEMPORAL


A primeira lei a regular as uniões estáveis foi a lei nº 8.971/94 que fixava, dentre os requisitos para sua configuração, o prazo mínimo de 5 anos, sendo inferior no caso da existência de prole. Partia-se do pressuposto de que o lapso prazal não poderia ser descontínuo já que a estabilidade da união constitui um dos seus elementos basilares. Quando da interrupção de tal prazo se fazia necessário reiniciar nova contagem para ficar configurada a existência da união estável.
Cabe dizer que para grande parte da doutrina essa lei se mostrou claramente inconstitucional por força da equiparação constitucional entre os institutos do casamento e da união estável e, como não há qualquer prazo que marque o início do casamento o mesmo deve ocorrer com a união estável, bastando a sua identificação na sociedade para comprovar sua existência. Nessa linha Noêmia Alves Fardin relata que:

Muitas vezes pode acontecer que uma união de três ou quatro anos seja mais sincera e revestida de sentimentos mais verdadeiros que outra com mais de cinco anos de duração. Será que esta união não merecerá reconhecimento jurídico, não podendo a companheira ou companheiro valer-se do que dispõe a Lei nº 8.971/94?


Apesar da lei atual não fixar um prazo mínimo para a caracterização da união estável, há que se ter em mente que ela não pode ser passageira, momentânea, mas deve ser prolongada no decurso do tempo sem apresentar solução de continuidade, ou seja, exigi-se a durabilidade do vínculo. Não é o lapso prazal que indica a existência da união estável.


5. O COMPANHEIRO NO DIREITO SUCESSÓRIO


Nas palavras de Cahali e Hironaka "sucessão em sentido amplo indica a passagem, a transferência de um direito de uma pessoa (física ou jurídica). A relação inicialmente formada por determinados titulares passa, pela sucessão, a outros" . A transferência ocorre em razão da morte de um dos sujeitos da relação jurídica e opera-se a título universal, em regra, abrangendo todo o patrimônio deixado pelo falecido e respeitando a ordem de vocação hereditária, ou seja, a sequência de pessoas vinculadas ao falecido, por laços sanguíneos ou de parentesco, uns em detrimentos do outro, conforme determina o art. 1.829 do C.C/02. Não há solução de continuidade nas relações jurídicas titularizadas pelo falecido, a transferência da herança se dá de forma automática e é regida pela lei vigente na data do óbito do autor da herança.
Ocorre que, em sede de direitos sucessórios provenientes da união estável o Código Civil mostra-se extremamente deficiente e em desarmonia com os preceitos da Constituição Federal que a elevou ao patamar de entidade familiar merecedora da tutela do Estado, não se justificando o tratamento desigual dado aos companheiros. O companheiro ao contrário do cônjuge não foi erigido à condição de herdeiro necessário, não lhe sendo estendido o direito real de habitação, tão pouco o direito ao usufruto, já reconhecido em lei infraconstitucional.
A lei 8.971 de 29 dezembro de 1994 agraciou os conviventes com o reconhecimento do direito à sucessão dos bens do de cujus, na falta de herdeiros necessários, e diante da presença de parentes deste o companheiro sobrevivente o sucedia no direito ao usufruto dos bens nas mesmas condições do cônjuge, ou seja, em terceiro lugar na ordem de vocação. Anos depois a lei 9.278 de 10 maio de 1996 estendeu o direito real de habitação para o companheiro, em complemento à lei acima relatada.
No que pese a omissão do atual Código Civil, muitos doutrinadores entendem que tais leis não foram revogadas pelo mesmo o que exige que tais direitos sejam conferidos aos companheiros quando por estes pleiteados. Representando estes doutrinadores Dias pontua:

Como o novel estatuto não revogou expressamente esses diplomas legais, e não disciplina exaustivamente a matéria, pois não prevê o direito de habitação e o direito de usufruto, mister reconhecer que não estão derrogados esses direitos deferidos na legislação pretérita. Outra não pode ser a conclusão em face do que dispõe os §§ 1º e 2º do art. 2º da LICC .

Importante mencionar que a lei 8.971/94 dispunha ainda, de forma diferente do entendimento doutrinário e jurisprudencial anterior que a divisão do patrimônio se dava por meio da meação dos bens adquiridos na constância da união, cabendo prova do esforço comum, tendo a lei 9.278/96 passado a presumir tal esforço. Há que ser dito nas palavras de Claudia de Almeida Nogueira que "[...] o direito a meação é conferido independentemente de morte do convivente. Adquire-se este direito no momento da compra dos bens durante a convivência" . Não se confunde com a parcela herdada na sucessão, esta decorre da morte do autor da herança.


5.1 DIRETRIZES ADOTADAS NA VIGÊNCIA DO CÓDIGO CIVIL DE 2002


O Código Civil de 2002 regula a sucessão na união estável dispondo no caput do seu art. 1.790:

Art. 1.790. A companheira ou o companheiro participará da sucessão do outro, quanto aos bens adquiridos onerosamente na vigência da união estável, nas condições seguintes:
I - se concorrer com filhos comuns, terá direito a uma quota equivalente à que por lei for atribuída ao filho;
II - se concorrer com descendentes só do autor da herança, tocar-lhe-á a metade do que couber a cada um daqueles;
III - se concorrer com outros parentes sucessíveis, terá direito a um terço da herança;
IV - não havendo parentes sucessíveis, terá direito à totalidade da herança.

Da leitura do referido art. conclui-se que o direito sucessório do companheiro se restringe, qualquer que seja o caso, aos bens adquiridos onerosamente na vigência da união. Logo, Silvio Rodrigues discorre:

[...], se durante a união estável dos companheiros não houver aquisição a título oneroso de nenhum bem, não haverá possibilidade de o sobrevivente herdar coisa alguma, ainda que o de cujus tenha deixado valioso patrimônio, que foi formado antes de constituir união estável .

Em resumo, o dispositivo diferencia a sucessão do companheiro quando em concorrência com os filhos comuns ou apenas do falecido, prevendo que caberá a aquele ao concorrer com os filhos comuns a quota parte que for por lei atribuída a cada um dos filhos, e no caso da concorrência com os filhos somente do falecido lhe restará a metade do que couber a cada um dos respectivos. No caso do companheiro concorrer com os demais parentes sucessíveis terá direito a um terço do que for de direto a cada descendente, somente lhe sendo atribuída a totalidade da herança quando não houver qualquer parente sucessível. Urge dizer que essa totalidade na herança se limita aos bens arrecadados durante a vigência da referida união.


5.2 A PARCELA HERDADA


Não obstante o art. 1.790 do C.C/02 ser claro ao dispor que a companheira ou o companheiro somente terá direito a suceder o outro nos bens adquiridos onerosamente na vigência da união estável cabe esclarecer que a limitação sobre o direito hereditário destes não se faz adequada por levar a entender que o mesmo já possui direito de meação sobre tais bens, em razão do regime de comunhão parcial de bens previsto no art. 1.725 do Código Civil.
Contudo não se pode confundir meação com direito hereditário, enquanto aquela decorre da relação patrimonial existente em vida entre os interessados, e é estabelecida por lei ou por disposição das partes, este tem origem na morte, sendo a herança transmitida de acordo com as previsões legais ou a vontade do autor expressa no testamento. Portanto, alguém pode ser meeiro sem ser herdeiro, e vice versa, as causas justificadoras destas condições jurídicas são distintas. Zelo Veloso esclarece diante desta confusão que:

Se os bens são comuns, o companheiro sobrevivente tem direito à meação. Mas este direito não tem origem na morte do outro convivente. O meeiro já é dono de sua parte ideal antes da abertura da sucessão, por outro título. Trata-se de situação que decorre do Direito de Família, não do Direito das Sucessões. A meação do falecido é que vai ser objeto da sucessão, juntamente com outros bens, de propriedade exclusiva se houver .

Há, ainda, que se ter em mente nos dizeres de Carlos Roberto Gonçalves que:

Bens adquiridos onerosamente com recursos provenientes da venda de um bem particular não poderá integrar o acervo hereditário do companheiro, aplicando-se à hipótese, por analogia, o art. 1659, I do Código Civil, que, ao tratar do regime da comunhão parcial de bens, aplicável à união estável na ausência de pacto, estabelece expressamente: "Excluem-se da comunhão os bens que cada cônjuge possuir ao casar, e os que lhe sobrevierem, na constância do casamento, por doação ou sucessão, e os sub-rogados em seu lugar .

Ou seja, por bens adquiridos antes da época de iniciada a relação não entram na sucessão, não importando que mais tarde sejam usados para a aquisição de outros, vigorará a data da sua aquisição primária.


6. A CULPA MORTUÁRIA DO ART. 1.830 DO C.C/02


A sucessão da pessoa que vem a falecer na constância da união estável não está adstrita à regulação pelo disposto no art. 1.790 do Código Civil. Como se não bastasse a forma desigual como a sucessão dos unidos estavelmente é disciplinada, o mesmo diploma jurídico preceitua no art. 1.830 que:
Somente é reconhecido direito sucessório ao cônjuge sobrevivente se, ao tempo da morte do outro, não estavam separados judicialmente, nem separados de fato há mais de dois anos, salvo prova, neste caso, de que essa convivência se tornara impossível sem culpa do sobrevivente.

Isso significa que o cônjuge sobrevivente mesmo já separado de fato poderá ser chamado a suceder o de cujus se a separação não contar com mais de 2 anos e, ainda que já esteja separado há mais tempo o mesmo poderá suceder desde que comprove a culpa do outro pelo término da relação. Nestes dois casos cabe discussão quanto à necessária exclusão do cônjuge em razão da separação fática. Cahali e Hironakalecionam que "em qualquer dessas hipóteses, não é a pendência de dissolução do vínculo, mas a separação de fato, na forma prevista na lei, o fundamento para a exclusão do cônjuge" . Perante a imprecisão da legislação nesse tocante Eduardo de Oliveira Leite comenta que:

Desaparece a pretensão ao direito sucessório do cônjuge sobrevivente se, ao mesmo tempo da abertura da sucessão não mais era casado com o de cujus. Se o direito à sucessão, do cônjuge sobrevivente decorre do casamento, a inocorrência do mesmo faz ruir o direito dele decorrente. Não mais subsistindo a sociedade conjugal, não há como justificar a sucessão de alguém que não é mais cônjuge.
A vocação do cônjuge pressupõe a subsistência do vínculo conjugal e, por isso mesmo não há como invocar o direito se já ocorreu a separação judicial (com o aval do judiciário) ou mera separação fática (sem aquele aval, mas com iguais efeitos quanto á ruptura do vínculo) .

Pelo sistema antigo não se observava qualquer discussão visto que a dissolução da sociedade conjugal não se efetivava pela mera separação fática, tão pouco pela medida judicial da separação de corpos, exigia-se a chancela do judiciário formalizada por meio de um processo marcado pela coisa julgada, quer na separação, quer no divórcio. Somente depois de consumada a dissolução o direito sucessório desaparecia entre os cônjuges. Previa o art. 1.611 do Código Civil de 1916 que: "à falta de descendentes ou ascendentes será deferida a sucessão ao cônjuge sobrevivente, se, ao tempo da morte do outro, não estava dissolvida a sociedade conjugal"
Com relação à ressalva da atribuição da culpa ao falecido para legitimar a sucessão do cônjuge sobrevivo esta é totalmente descabida diante da nova visão do direito acerca das famílias. Contrária a essa visão os tribunas tem entendido, ainda que em situações esporádicas, que a perquirição da culpa na sucessão é cabível quando devidamente comprovada e a jurisprudência do Tribunal de Justiça de São Paulo se posicionou em sede de apelação decretando que:

DIREITOS HEREDITÁRIOS. Exclusão de herdeira - Casamento pelo regime da separação total de bens - Morte de cônjuge, sem ascendentes ou descendentes, não havendo deixado testamento - Sucessão legítima deferida ao cônjuge sobrevivente (CC/02, art. 1829, III) - Da interpretação do art. 1830 do mesmo diploma legal, o direito sucessório do cônjuge sobrevivente só é reconhecido para os separados de fato há menos de dois anos, ou para os separados de fato há mais de dois anos, desde que não provada a culpa do cônjuge sobrevivente - Ônus da prova da culpa é dos terceiros interessados, na espécie os colaterais, irmãos do falecido, em ação própria - Casal separado há mais de dois anos quando o varão faleceu - Prova dos autos conflitante e inconclusiva, no sentido de demonstrar que a apelante fosse culpada da separação de fato do casal - Assim, os apelados não demonstraram o fato constitutivo de seu direito - Reforma da sentença, para julgar improcedente a ação, com inversão do ônus da sucumbência - Recurso provido. (TJSP, 1ª Câmara de Direito Privado, AP 543.700.4/0-00 - São José do Rio Preto, rel. Des. Paulo Eduardo Razuk, j. 03.02.2009)

Consagrar a culpa mortuária como requisito para sucessão do cônjuge sobrevivente separado de fato é o mesmo que chamar à sucessão alguém que não tem qualquer ligação com o falecido.


6.1 A INVIABILIDADE DA ARGUIÇÃO DIANTE DOS ARGUMENTOS QUE AFASTARAM A RELEVÂNCIA DA CULPA CONJUGAL


As concepções tradicionais acerca do direito de família, associada à simples leitura do caput do art. 1.572 do Código Civil de 2002 torna possível conceber que o legislador brasileiro permite a discussão da culpa quando do término do casamento, mesmo porque no seu art. 1.566 compreende-se que a quebra intencional do deveres do matrimônio impostos bilateralmente ensejam conseqüências a aquele que lhe deu causa, sendo então o culpado.
Contudo, a nova visão de casamento proporcionou o surgimento de sociedades conjugais regidas pelas idéias de liberdade de casar e de permanecer, ou não, casado sempre com fundamento nos sentimentos e objetivos comuns. E relacionado a isso, o fato de que a Constituição de 1988 impôs uma nova postura aos civilistas para adequar suas normas a noção da família estruturada na dignidade humana de seus membros, nesse sentido Gustavo Tepedino dispõe que "é necessário e urgente redesenhar o tecido do direito civil à luz da nova Constituição" . Vê-se desta forma que o sentimento humano passa a reger as normas referentes ao direito no plano das relações provenientes do casamento. Logo:

Nesse passo, percebe-se que a valorização do afeto nas relações não pode cingir-se apenas ao momento da celebração do casamento (formação da entidade familiar), devendo perdurar por toda a relação. Disso resulta que, cessado o afeto, está ruída a base segura de sustentação da família, exsurgindo a dissolução do vínculo como modo de garantir a dignidade da pessoa (MIZRAHI, 2001, p. 162, apud CHAVES, 2007, p.54).

Assim, o direito de não dar continuidade ao vínculo matrimonial consubstancia-se como uma conseqüência lógica da proteção conferida pela Constituição à dignidade da pessoa humana. É descabida qualquer espécie de averiguação da culpa, visto que a opção pelo desenlace conjugal representa apenas o exercício do direito de dissolver a união.
O desgaste natural do relacionamento resulta de uma variedade de fatores que somados culminam no desaparecer do vinculo afetivo, de maneira que a prática, por qualquer dos cônjuges, das condutas elencadas no art. 1.573 do Código Civil de 2002, somente reflete a total ausência de sentimento do cônjuge que a realizou para com seu par. Quem ama não comete adultério ou qualquer ato que venha a ferir a pessoa amada. Não se pode punir alguém por deixar de amar, não cabendo ao judiciário perquirir as razões de cunho íntimo que levaram ao término do casamento, o que restaria claramente inconstitucional por notória invasão na intimidade do casal.. Também importa dizer que a perquirição da culpa é descabida em virtude de, ao menos no direito de família, não gerar qualquer benefício àquele que a argui na separação, não há interesse de agir na atribuição da culpa.
O interesse de agir se efetiva na prestação jurisdicional que proporciona algum benefício para o autor da demanda. Ocorre que a constatação de uma eventual culpa na dissolução do casamento não afasta, por exemplo, a possibilidade do cônjuge "inocente" prestar alimentos ao "culpado" desprovido de recursos próprios para sua subsistência, apesar desta atender exclusivamente às necessidades básicas do referido, o que é previsto no art. 1702 do C.C/02. E no dizer de Cristiano Chaves de Farias:

Revela demonstrar, ainda, mesmo para os que entendem subsistir no ordenamento jurídico brasileiro a discussão sobre culpa na separação judicial, o reduzido interesse em sua afirmação, uma vez que dela não decorrerão efeitos significativos no mundo jurídico ou fático .

A investigação e identificação do culpado apenas se mostra adequada e indispensável no Direito Penal quando a conduta de uma determinada pessoa põe em risco a vida ou a integridade física e psíquica de outra, ou de algum bem jurídico tutelado na esfera criminal, o que impossibilita sua importação para as questões referentes à dissolução do casamento. Para o direito penal, conforme lições de Rogério Greco:

A culpa é o ato humano voluntário dirigido, em geral, à realização de um fim lícito que, por imprudência, imperícia ou negligência, isto é, por não ter o agente observado o seu dever de cuidado, dá causa a um resultado não querido, nem mesmo assumido, tipificado previamente na lei penal .

Na responsabilidade civil a perquirição da culpa também se mostra adequada e necessária, pois a obrigação de indenizar alguém quando lesado em seu direito decorre da atuação do agente com culpa, ou seja, por ação ou omissão voluntária, por negligência ou imprudência, como expressamente exigido no art. 186 do C.C/02. Ou seja, "agir com culpa significa atuar o agente em termos de, pessoalmente, merecer a censura ou reprovação do direito" . A questão crucial para o término do casamento é o fim do afeto, o que não pode ser objeto de qualquer espécie de sanção, portanto:

Ainda que seja dolorido ver o sonho do amor eterno desfeito, ninguém manda no coração e ninguém pode ser condenado por deixar de amar. Portanto, de todo descabida a mantença do instituto da culpa para se chancelar a desconstituição do casamento, devendo ser respeitada a vontade de cada um dos cônjuges. Injustificável causar prejuízos, impor perdas ou proclamar culpados se o amor acabou!

Na disciplina jurídica das relações sociais se faz necessário a implementação de formas mais civilizadas para a extinção do casamento e das relações informais cabendo ao legislador facilitar o término destas, de maneira a efetivar e proteger a substituição do princípio da culpa pelo princípio da ruptura do vínculo afetivo.


6.2 AS REPERCUSSÕES NO DIREITO DO COMPANHEIRO


É fato que a redação do art. 1.830 do C.C/02 causa grandes transtornos no âmbito do direito sucessório do companheiro. O problema surge diante da situação em que um dos cônjuges apenas separado de fato passa a viver em união estável com outra pessoa. Vindo este mais tarde a falecer sua ex-cônjuge lhe atribui a responsabilidade pelo término do relacionamento, tornando-se sua potencial sucessora. Não restaria nenhuma dificuldade se tal culpa não fosse alegada visto que a companheira sobrevivente herdaria sua parcela nos bens juntados na constância da união.
É comum que uma pessoa separada de fato venha se unir a outra pelo vínculo afetivo que dedica a esta, passando a conviver em união estável. E assim permanece por longos anos, até que vem a falecer, deixando um vultuoso patrimônio arrecadado pelo esforço comum com seu convivente. Constata-se, contudo, que diante dessa situação o mesmo não deixa descendentes, nem ascendentes. Ocorre que sua ex-cônjuge sabendo dessas informações passa a pleitear a totalidade de tal patrimônio sob a alegação de que apesar da separação fática ela não foi a culpada pelo término do casamento, atribuindo tal fato ao falecido.
Todavia, a referida cônjuge alega tal fato ensejando com isso uma enorme dúvida quanto a quem caberia a herança o de cujus. Neste ponto, Hironaka refletindo diz que:

Sob outro ângulo, subsistência do direito sucessório em favor do cônjuge separado de fato traz outro problema complexo. Qual dos dois deverá herdar? Se destinatários de quotas sobre os mesmos bens na herança, quem deverá recolher o quinhão .

A regra geral é no sentido de que a legitimação do companheiro para o recebimento da herança excluiria o direito do cônjuge, mas o art. acima citado, na analise fria da lei, admite o recebimento concomitantemente pelo cônjuge e pelo companheiro numa espécie de concorrência entre eles. Observa-se um prolongamento fictício dos laços e uma vez estabelecida a concorrência restará prejudicado o companheiro que, por só gozar de direitos sobre os bens adquiridos na constância da união estável, terá seu quinhão reduzido significativamente.
Cabe dizer ainda que nesse contexto os efeitos do inventário ficarão suspensos até que as controvérsias sejam julgadas, em sede de ações ordinárias, quanto à quem pertine a qualidade de herdeiro.


6.3 PROPOSTAS PARA UMA MELHOR SUCESSÃO DO COMPANHEIRO


Contrariando a expressa previsão da norma grande parte da doutrina entende que é necessário buscar meios para solucionar as controvérsias geradas de forma a retirar o status de herdeiro do cônjuge separado de fato, não importando o prazo ou as causa que levaram à ruptura, principalmente se na situação em questão o companheiro sobrevivente for chamado herdar o seu respectivo quinhão. Venosa discorre que:

[..] poderia o legislador ter optado em fazer a união estável equivalente ao casamento em matéria sucessória, mas não o fez. Preferiu estabelecer um sistema sucessório isolado, no qual o companheiro supérstite nem é equiparado ao cônjuge nem se estabelecem regras claras para sua sucessão .

Não existe uma forma milagrosa para resolver essa situação, pois ela impõe que o Código Civil seja reformado, visto que ao interprete, e ao juiz é vedado promover qualquer inovação normativa, do contrário se exercerá a função de Poder Legislativo incorrendo claramente numa das hipóteses de abuso de poder. Contudo, reformulações no âmbito legislativo se fazem urgentes, por isso cumpre destacar dois projetos de leis que tramitam no Congresso Nacional destinados a corrigir as distorções criadas pelo novo Código Civil na ordem das sucessões.
O projeto de lei do Deputado Federal Eduardo Fonte do PP do estado de Pernambuco, que data de 2008, prevê para a nova redação do art.1.830 do C.C/02 a exclusão dos pontos referentes à segunda parte quando diz: "[...], salvo prova, neste caso, de que essa convivência se tornara impossível sem culpa do sobrevivente". Mas existe outro projeto de lei de autoria do Deputado Sérgio Barradas Carneiro, que melhor altera a redação do bendito dispositivo por dispor: "Somente é reconhecido direito sucessório ao cônjuge sobrevivente se, ao tempo da morte do outro, não estavam separados de fato" .
Ao operador do direito é possível discutir essas imperfeições de forma a se apresentar soluções mais coadunadas com a realidade vivenciada pelo atual direito sucessório, podendo futuramente servir de base para as adaptações a serem feitas pelo legislador mais atento ao seu tempo, na busca das soluções justas.
No plano doutrinário existem os que defendem a divisão meio a meio entre o cônjuge e o companheiro sobrevivente o que se demonstra impertinente já que um dos concorrentes estará recebendo um direito sucessório decorrente do patrimônio arrecadado pelo esforço comum do outro. Para solucionar essa antinomia, há que se ater ao básico, ou seja, à verificação da situação no momento da morte. Se quando do falecimento já estava extinta a união conjugal e consequentemente firmada a união estável retira-se o cônjuge da sucessão..


7. CONSIDERAÇÕES FINAIS


Não há dúvidas que o Código Civil de 2002 representou um grande avanço para as relações sociais, porém ao disciplinar as relações fundadas nos laços de afetividade o mesmo foi infeliz, não fixando de forma clara as regras cabíveis, especificamente quando da sucessão. Poderíamos justificar que a imprecisão resulta do fato de sua elaboração ter ocorrido num momento histórico em que as relações reconhecidas e protegidas juridicamente eram as fundadas no casamento. Entretanto, o direito como instrumento de organização da sociedade deve ser dinâmico, buscando constantemente adequar-se à realidade, sob pena de se tornar inócuo.
Há que se ter em mente que nos tempos em que vivemos a família nuclear estruturada apenas nos laços de afetividade e respeitos entre seus integrantes exige do legislador um olhar mais atento a suas necessidades. Hoje o pensamento jurídico exige estar voltado para os princípios constitucionais que são indispensáveis para preenchimento das eventuais lacunas ou contradições legais, de maneira a se garantir os direitos individuais de cada um. Deve-se perguntar até onde e autorizado ao Estado invadir a esfera intima das pessoas, para imputar culpa ao outro pelo fim o afeto. Ou seja, defini-se como culpado aquele que procura ser feliz..
Com a constitucionalização da família marcada pelo afeto e pela liberdade de sua constituição não há que se falar em culpa, mas na efetividade dos sentimentos nas relações familiares. Mudar uma visão imposta desde os períodos mais remotos da civilização humana é algo de resulta de um processo lento, mas que se faz necessário.
A óptica constitucional trouxe para o direito de família o fundamento da dissolução do vínculo conjugal lastreado nos princípios do afeto e da dignidade humana . Não se tutela mais o desafeto na sociedade conjugal por meio da culpa, salvo o ranço ainda presente no Código civil brasileiro, que apesar de posterior a Carta de 1988 se mostra em desacordo com esta. A quebra dos padrões já enraizados em nossa cultura é lenta e não decorre apenas de uma mudança normativa, o senso comum há séculos construído não se desfaz na data em que passa a viger uma lei que dispõe em sentido contrário a este.
Cabe salientar que o art. 1830 do diploma civilista vai de encontro à máxima do nosso ordenamento jurídico quanto a presunção de inocência e a ampla defesa. Não há que se falar em culpados ou inocentes, mas no império do afeto no agir das pessoas. Em que pese registrar, o direito sucessório dos companheiros foi regulado no código civil com extraordinária redução, de forma tão acanhada que demonstra um preocupante distanciamento das evoluções sociais e expectativas da comunidade criadora do direito. Isto faz com que seja absolutamente necessário que o novo Código Civil seja reformado no ponto que foi objeto de análise deste trabalho.
Devemos refletir sobre as questões abordadas aqui para que possamos mudar o atual tratamento conferido ao companheiro na sucessão, não objetivando com isso erigir a união estável ao mesmo patamar das uniões sacralizadas no casamento. O que se busca é afastar as soluções esdrúxulas apresentadas pelo Código Civil atual, sendo urgente sua reforma.
Entre as mudanças necessárias cabe a alteração do referido diploma jurídico tanto na redação do art. 1.830, como naqueles que dispõem sobre as causas da separação culposa, pois uma vez retirada a noção de culpa do âmbito do direito das famílias e das sucessões o problema aqui apresentado deixa de existir.
Toda via, até que essas mudanças sejam efetivadas no nosso ordenamento jurídico é necessário que todos aqueles que lidam com o direito tenham uma postura mais crítica diante da letra fria da lei, não podemos viver ignorando as distorções presentes no Código Civil, nesse sentido o papel do estudante do direito é fundamental, pois embora não esteja legitimado para inovar normativamente, ele dispõe de uma mente mais ligada ao tempo atual o que lhe permite perceber de forma clara as mudança ocorridas ao longo da evolução das relações, ou seja, ele encontra-se desprovido das tradicionais concepções. O direito qualquer que seja seu ramo necessita de novos posicionamentos para que adquira fôlego para as próximas mudanças.


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