A pureza para Kelsen e Kant:

notas preliminares para estudo em Filosofia do Direito

 

Gisele Mascarelli Salgado

pós-doutora em Direito pela FD-USP, doutora e mestre em Filosofia do Direito pela PUC-SP, bacharel em Direito e Filosofia

            Muito se fala da Teoria Pura do Direito de Kelsen, porém muitas de suas idéias continuam sendo pouco ou mal entendidas pelos estudantes de Direito. Kelsen está longe de ser um autor fácil. Sua forma de escrever é truncada, a complexidade dos temas que trata também não é a das menores. Ele requer do leitor uma leitura pausada, atenciosa e um domínio da tradição que estava dialogando. Kelsen dificilmente cita seus interlocutores.

O próprio Kelsen na primeira versão da “Teoria Pura do Direito” diz sobre sua postura: “limito-me nêle  a fazer uma exposição positiva da minha doutrina, sem perder tempo a discutir com os inúmeros adversários que, com o correr do tempo tenho encontrado no meu caminho. Creio poder fazê-lo, visto que nos meus livros anteriores sempre mantive com eles abundantes polêmicas”[1]. Essa postura também será mantida na Teoria Pura do Direito na sua segunda edição que é considerada sua “obra-prima”.

            Porém, se há dificuldades de toda a sorte em Kelsen, uma delas passa muitas vezes despercebida, apesar de evidente. Kelsen para apresentar sua Teoria Pura do Direito, utiliza-se de jargões kantianos e muitas vezes segue os passos de Kant, como um caminho a ser modificado, mas em que a mata densa já foi cortada para a passagem. Quanto aos jargões Kelsen utiliza-se da distinção de ser e dever-ser, nitidamente de influência kantiana.

            A proposta de entender a influência da Kant em Kelsen é arriscada, mas não fora de propósito. Sabe-se através da biografia de Kelsen que ele dedicou-se ao estudo das obras de Kant. Kelsen estudou com o Hermann Cohen, professor da chamada Escola de Marburgo, que ensinava Kant em suas aulas. Cohen é um comentador de Kant, que apresenta posições interessantes, e chega a recusar o conceito de “coisa em si” kantiano. Esse professor de Kelsen escreve dentre outros livros, um denominado “Ética da vontade pura”, e acredita-se que tenha saído daí a inspiração para o título de seu livro. Porém não pode-se negar que mais do que Cohen, pode ter sido o próprio Kant inspiração para o Kelsen. O Kant a que se refere aqui é o Kant da Crítica da Razão Pura. 

            Kelsen certamente bebeu em diversas fontes e recebeu outras influências, como a de Jellinek, Marx Weber, Freud, etc. Ele participou da Escola de Viena, tendo tido contato com Wittgenstein, Carnap, e com a filosofia da linguagem. Então, porque Kant teria sido tão importante para Kelsen? Dentre outras tantas respostas possíveis, parece haver uma em especial que é extremamente importante para se entender o fundamento da Teoria Pura do Direito.

            Kant e Kelsen parecem perseguir objetivos bem parecidos em seus livros. A semelhança parece não ser mera coincidência. Kant ao escrever sua “Crítica da Razão Pura” visava dar um outro estatuto para a metafísica, que para ele tinha tomado rumos estranhos. Kant depois de afastar a metafísica tradicional, irá estabelecer uma nova metafísica, que diz científica. Primeiro Kant apresenta um panorama de como estava a metafísica de sua época, constatada a confusão, Kant propõe um método racional para colocar “ordem na casa”.

            Kant irá afirmar que há coisas em que o homem não consegue conhecer, e para a razão não cair em obscuridades e contradições é necessário se delimitar até onde ela pode ir. Kant visava com isso restringir a Metafísica que tinha como objetivo conhecer coisas que estavam para além do conhecimento humano, como, por exemplo, Deus. Assim afirma Kant, logo no início do prefácio da primeira edição da Crítica da Razão Pura :

“A razão humana, num determinado domínio dos seus conhecimentos, possui o singular destino de se ver atormentada por questões que não pode evitar, pois lhe são impostas pela sua natureza, mas às quais também não pode dar resposta por ultrapassarem completamente as suas possibilidades”[2].

Por querer ir além do que pode e sem saber os seus limites, a metafísica tornou-se um campo em que não há parâmetros e por isso, cai no desprezo dos homens de seu tempo. Nesse ponto Kelsen se assemelha muito com Kant. O que Kelsen pretende fazer com sua “Teoria Pura do Direito” é organizar o Direito do século XIX, estabelecendo uma limpeza metodológica do objeto e com isso buscava dar um estatuto de ciência ao Direito. Assim diz Kelsen no primeiro capítulo da T.P.D. : “A teoria pura do Direito é uma teoria do Direito positivo...É teoria geral do Direito, não interpretação de particulares normas jurídicas... É ciência jurídica e não política do Direito”[3].

            A pureza de Kelsen é uma pureza metodológica, ou seja, “ela propõe garantir um conhecimento apenas dirigido ao Direito e excluir deste conhecimento tudo quanto não pertença ao seu objeto, tudo quanto não se possa, rigorosamente, determinar como Direito”[4]. Kelsen afasta do Direito a ética, a teoria política, a psicologia, a sociologia, etc.

            Deve-se ter cuidado para não afirmar o que a vulgata kelseniana vem fazendo, que o que o direito de Kelsen é um direito puro, e, portanto, irreal. O que Kelsen diz é que pretende fazer uma ciência do Direito, e para tal, tem de delimitar seu objeto. O direito não é propriamente puro. O que Kelsen visa é “libertar a ciência de elementos estranhos”, porém isso não quer dizer que o próprio Kelsen entendesse o Direito como puro, tanto é que o último capítulo de seu livro é dedicado a interpretação e lá afirma que ao interpretar surge a política do direito.

            Kelsen delimita dois campos distintos do Direito, um que lida com a ciência e outro com a aplicação. Sua Teoria Pura do Direito está voltada para o campo da ciência. O que a vulgata kelseniana faz, é ser mais kelseniana que o próprio Kelsen e afirmar que o ideal de pureza, entre outras coisas que Kelsen afirma, são próprias do Direito, enquanto Direito aplicado. O que Kelsen faz é filosofia do Direito, não propriamente um tratado de Direito.

Essa diferença pode ser ressaltada pela classificação do Direito em zetética jurídica e dogmática jurídica, proposta por Tércio Sampaio. A zetética pretende cuidar do campo do direito ligado a investigações que visam perguntar, predomina a função informativa da linguagem, não há necessidade de se chegar a uma resposta certa e determinada, pois o importante é a própria investigação. A dogmática por outro lado busca respostas, e parte de preceitos que estão afirmados como dogmas e não são discutidos, pois é a partir deles que o estudo será feito. Kelsen se insere na zetética, pois faz filosofia do Direito em sua Teoria Pura do Direito. Kelsen também foi juiz e  lidava com o lado positivo e com a apreciação dogmática do Direito (em seus estudos de Direito internacional).

A relação de Kelsen com Kant pode ser sentida ao longo de quase toda a obra de Kant. É necessário um estudo pormenorizado da relação da influência de Kant para que se passe a entender um pouco melhor o próprio Kelsen. Não se pode negar que o Kant de Kelsen, tem o filtro da teoria de Cohen. Porém, é muito provável que a dificuldade do estudo de Kelsen esteja em vários conceitos que Kelsen se apropria de Kant de forma explícita ou não.

Bibliografia:

KANT, I. Crítica da razão pura.

KELSEN, Hans. Teoria pura do Direito

­­­_____.  Teoria Pura do Direito.



[1] KELSEN, Hans. Teoria pura do direito (pequena). Prefácio. p, 1.

[2] KANT, I. Crítica da razão pura. P, 3.

[3] KELSEN, Hans. Teoria pura do Direito (segunda edição). p, 1.

[4] KELSEN, Hans. Teoria pura do Direito (segunda edição). p, 1.