Poligamia: Mitos, ritos e implicações legais

"Sou rico por ter seis mulheres" é a afirmação de um agricultor moçambicano residente na vila Municipal de Gorongosa a norte da província de Sofala, em entrevista recente ao matutino nacional ??Notícias?.
Parece mito mas é mais rito e até certo ponto poema milagroso do viver dos homens desde há séculos, do sul ao norte desta criatura do sol, nossa terra querida e inestimável.
Ter muitas mulheres é garantia de obediência da mulher em relação ao homem e via de se obter uma produção agrícola abastada ? Testemunho do referido polígamo.
Ainda mais para o norte da mesma província, nos distritos de Maríngue e Chemba, testemunhámos, em trabalho de campo sobre as razões do fraco índice de casamentos e de registo de nascimento, que quem tem uma única mulher é considerado o matulão dos solteiros, homem sem experiência e que não pode fazer parte do grupo dos anciãos, os que resolvem os diferendos sociais, porque não tem traquejo de gestão: Precisa de ter no mínimo três mulheres para ser verdadeiro homem e decano social.
Descaindo mais para o sul do país, não deparámos metáfora diferente sobre este mito de ritos: Ter mais que uma mulher justifica-se por razões demográficas, sociais e até económicas ? em certas realidades, as mulheres persuadem seus próprios maridos a tomar uma segunda esposa e assim elas não se sentem sozinhas e encontram ajuda garantida para as inúmeras tarefas domésticas (as mais velhas governam as novas e ficam com menos tarefas, reduzindo os calos nas mãos). Aqui ressalta a fuga da mulher da escravidão doméstica mais do que a sua voluntariedade à partilha do homem.
Também se estampa a razão de se ter muitas mulheres à procriação: A mulher deve fazer muitos filhos e se coadjuvada nessa tarefa, minimiza-se o seu próprio sofrimento.
No além e no hemisfério norte, a poligamia fez parte da história dos homens: os Mórmons, no Estado de Utah nos E.U.A, formaram o símbolo da poligamia no ocidente. Ficou registada na história da América do Norte, a faceta de uma religião que assumiu a poligamia como ritual santo até que no início de 1852, o Congresso aprovou uma série de leis proibindo-a.
A linha do islão assume, mediante certas restrições, casar-se até quatro mulheres. O islamismo impõe que o homem polígamo tenha condições económicas bastantes para proporcionar benesses iguais a cada uma das esposas. Esta situação não acontece noutros casos de poligamia aonde há discriminação nos benefícios: a mais nova é a acarinhada pelo homem que a considera fresca em detrimento das mais velhas que apesar de deterem o governo do lar (porque assim manda a tradição), ficam prejudicadas quanto à vida íntima e material.
Enfim, seria uma lista interminável de realidades que admitem a poligamia agregando mitos e ritos próprios.
Verdade seja dita que quando a mulher vive numa situação de homem-partilhado pela poligamia, nunca se lhe é consensual (não existe uma pura poligamia consentida). Tudo não passa de um conformismo imposto pela superioridade ritual. O consenso da mulher e da comunidade em relação a poligamia é aparente e uma genuína farsa porque vinca-se o refúgio no consenso para reduzir a sujeição serviçal ou seja o consenso decorre do beco sem saída para a mulher. Há uma dominação serviçal imperdoável e que se estatela eternamente no íntimo da mulher. Nestas condições, jaz um sofrimento inconfessável por toda esta gira masculina, escalando casas a casa, para receber, egoisticamente, o prazer e bons tratos.
Num mundo cada vez mais vulnerável pela descarregada propagação do Hiv-Sida, os heróis de poligamia poderão constituir uma fonte de desgraça para famílias e sobretudo crianças que inocentemente ficarão desamparadas ou mesmo vão nascendo infectadas.

Implicações na lei e no direito

A poligamia é um símbolo de desigualdade entre homem e mulher e gera situações de desequilíbrio no usufruir de direitos constitucionalmente protegidos.
Partindo do artigo 36, a Constituição da República não permite que o homem se sinta poligâmico e considere que a mulher seja monogâmica.
Esta disposição, por si, elucida a visão que o Estado projecta quanto à organização social centrada na família, como espaço privilegiado no qual se cria, desenvolve e consolida a personalidade dos seus membros e onde devem ser cultivados o diálogo e a entreajuda.
A família só poderá desempenhar a sua função social se respeitada a linha de igualdade e liberdade entre os seus principais actores: Homem e Mulher. A estes dois, deve-se o mútuo e recíproco respeito, faculdade que deve ser concretizada na constituição da família pelo casamento.
Numa linha prática, depara-se que o homem acaba não casando com nenhuma das mulheres porque ele acarinha a mais nova, mas, casando com ela pode provocar celeuma social e há casos em que a mais velha até se suicida ou mata o homem com ajuda dos seus familiares para poder ficar com os bens. Casando com a mais velha, a nova revoltar-se-ia e poderia sancionar o homem, reduzindo o carinho.
Ainda a Constituição da República, consagra no número 3 do artigo 120 que o casamento deve se orientar no princípio de livre consentimento entre o homem e a mulher, como instrumento de concretização da igualdade entre ambos, na medida em que a ninguém deve ser imposta supremacia na escolha do parceiro ou do modelo social de vida. Esta indicação sugere que ninguém possa legalmente achar-se patrono da relação conjugal e toda a atitude deve assentar na reciprocidade.
Os pressupostos acima mencionados só podem ser realizáveis se respeitada a singularidade do casamento e sobretudo a sua base voluntária com propósitos equilibrados em todos os aspectos da vida conjugal.