INTRODUÇÃO:

O art. 170, da Constituição da República traça os chamados Princípios Gerais da Atividade Econômica entre os quais se destacam a propriedade e sua função social, previstos nos incisos II e III, respectivamente.

A história da propriedade confunde-se com a história do próprio homem, uma vez que desde os primórdios o indivíduo procurou satisfazer as suas necessidades vitais por intermédio da apropriação de bens. Nos dizeres de Nelson Rosenvald, “o verbo TER marca indelevelmente o direito subjetivo de propriedade, sendo inerente a qualquer ser humano, o anseio pela segurança propiciada pela aquisição de bens” (ROSENVALD,2006).

Na Roma Antiga, a propriedade era tida por absoluta, segundo a maioria dos estudiosos. Porém, Maria Cristina Pezzela consegue vislumbrar já nesta época um viés funcionalizado da propriedade, voltado para o interesse social.

Na Idade Média, todavia, não se discute a tônica da propriedade, estando esta completamente subordinada às vontades dos senhores feudais.

Mais a frente, temos o advento do Iluminismo, no sec. XVIII, e, com ele, a criação do Estado Liberal, gerando um cenário econômico propício à circulação do capital, sendo o contrato e a propriedade os pilares do direito privado.

Em que pese os ideais iluministas de liberdade, igualdade e fraternidade, mantém-se, paradoxalmente, o tratamento absoluto da propriedade.

Segundo Nelson Rosenvald, “defere-se ao homem razão e liberdade, sendo concebida uma sociedade composta por indivíduos isolados, portadores de direitos subjetivos invioláveis pelo Estado. Todos poderiam perseguir seus interesses e realizar seus ideais em um espaço de liberdade e igualdade formal, na qual os sujeitos abstratos não mais seriam qualificados por privilégios ou títulos nobiliárquicos, a par de suas diferenças sociais” (ROSENVALD,2006).

E remata, “A propriedade será alcançada segundo a capacidade e esforço de cada um e, na forma da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1989, terá garantia da exclusividade dos poderes de seu titular, como asilo inviolável e sagrado do indivíduo” (ROSENVALD, 2006).

Estamos diante da 1ª geração dos Direitos Fundamentais, marcados pela liberdade individual, sendo a propriedade considerada o direito natural e inalienável mais significativo ao homem.

Esta corrente de pensamento influenciou o Código Napoleônico de 1804, o BGB alemão de 1900 e o Código Civil Brasileiro de 1916.

No entanto, se no estágio inicial capitalista importava apenas a mera apropriação de bens pelo indivíduo, sem se cogitar do bem estar da coletividade, é flagrante a mudança de postura dos ordenamentos jurídicos nas últimas décadas.

Sobretudo após a 2ª grande guerra, os valores e a ética voltaram a permear as Constituições e as Codificações, e a solidariedade, cara ao iluminismo, mas esquecida em um primeiro momento, passou a nortear as relações pessoais, com força normativa.

Surgem então as figuras da função social, do abuso do direito e da boa fé objetiva, como normas de ordem pública a impor uma releitura dos institutos tradicionais, dentre eles, a propriedade.

No ordenamento jurídico pátrio, destaca-se como grande marco a Magna Carta de 1988, dando primazia a situações existenciais e extrapatrimoniais, traduzidas no extenso rol dos direitos e garantias fundamentais.

A FUNÇÃO SOCIAL DA PROPRIEDADE

O curso da propriedade absoluta para a propriedade-função é definida pelo eminente Ministro do STF, Eros Roberto Grau, como “a revanche da Grécia sobre Roma, da filosofia sobre o direito: a concepção romana que justifica a propriedade por sua origem (família, dote, estabilidade de patrimônios), sucumbe diante da concepção aristotélica, que a justifica por seu fim, seus serviços, sua função.”

A função social é um princípio que visa direcionar o exercício de cada direito subjetivo, uma vez que a história demonstra que não raras vezes a busca por interesses privados exige um sacrifício desarrazoado de todo o corpo coletivo.

Assim, em uma sociedade solidária e em um ordenamento no qual o indivíduo é o foco, todo e qualquer direito subjetivo deve ser funcionalizado para atender objetivos maiores.

No caso específico da propriedade, a própria Constituição da República em seus arts. 5º, XXII e XXIII, e 170, II e III, a liga umbilicalmente à sua função social. Ou seja, a função social legitima o direito de propriedade.

Assim, podemos vislumbrar uma relação jurídica complexa, estando de um lado o direito do proprietário, exigindo uma abstenção erga omnes de toda a coletividade, e, de outro, o direito da coletividade de exigir que o proprietário dê à sua propriedade uma função social.

Qualquer atuação do proprietário que fique aquém do exigido pela função social será considerado abusivo.

Logo, descabe a antiga máxima de que no direito privado, o que não é proibido é permitido, pois entre o permitido e o proibido encontra-se, muitas vezes, o abusivo, que é tão ilícito quanto o proibido (art. 186,CC).

Pelo exposto, conclui Fábio Konder que “o descumprimento do dever social de proprietário significa uma lesão ao direito fundamental de acesso à propriedade” (KONDER, 2005).

A FUNÇÃO SOCIAL DA PROPRIEDADE E A ORDEM ECONÔMICA

Conforme anteriormente citado, os inc. II e III do art. 170, da Constituição da República impõem como Princípios da Ordem Econômica, simultaneamente, a propriedade privada e a função social da propriedade, cumprindo ressaltar que esta configuração se encontra presente, direta ou indiretamente, em diversas outras normas Constitucionais.

Tem-se, pois, de acordo com a orientação capitalista seguida pelo constituinte, o princípio do respeito à propriedade privada, especialmente dos bens de produção, propriedade sobre a qual se funda o capitalismo, temperado, contudo, de acordo com o inc. IV, do art. 170, pela necessária observância à sua função social, a ser igualmente aplicada à propriedade dos bens de produção.

Dentre aqueles que trataram deste tema, cumpre consignar as palavras de Léon Duguit: “A propriedade implica para todo detentor de uma riqueza, a obrigação de empregá-la em acrescer a riqueza social, e, mercê dela, a interdependência social. Só ele pode cumprir certo dever social. Só ele pode aumentar a riqueza geral, fazendo valer a que ele detém. Se faz, pois, socialmente obrigado a cumprir aquele dever, a realizar a tarefa que a ele incumbe em relação aos bens que detenha, e não pode ser socialmente protegido se não a cumpre, e só na medida em que a cumpre.” (DUGUIT, 1926).

Portanto, a economia descentralizada e o modelo econômico do liberalismo encontram-se centrados, como visto, na tutela da propriedade privada. Isabel Vaz explicita a relação mencionada: “As modificações das instituições políticas vêm operando alterações mais ou menos importantes no regime das propriedades, de modo a estabelecer certa correspondência entre o regime político e o regime econômico. Parece uma realidade que o poder econômico – seja realizado pela detenção de propriedades imóveis, de bens de produção, de tecnologia ou valores mobiliários – constitui um dos pressupostos do poder político. Quando se pretende transformar a natureza do poder político, há que modificar-se também o regime das propriedades e, através desta modificação, criam-se novos modelos econômicos.” (VAZ, 1992).

CONCLUSÃO

Toda alteração promovida no regime jurídico da propriedade poderá ser capaz de modificar o regime econômico adotado por um Estado até então.

Há, portanto, uma necessidade de compatibilização entre os preceitos Constitucionais, o que significa dizer, em última instância, que a propriedade não mais pode ser considerada, em seu caráter puramente individualista.  A esta conclusão se chega tanto mais pela constatação de que a ordem econômica, na qual se insere expressamente a propriedade, tem como finalidade assegurar “a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social.” (art. 170, CAPUT, CF), conforme já analisado amplamente, além da referência específica ao necessário cumprimento da função social por parte de toda e qualquer propriedade.

REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA

BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, 05 de out. 1988.

TAVARES, André Ramos. Direito Constitucional Econômico. 3ª edição. São Paulo.  Editora Método. 2011.

COMPARATO, Fábio Konder. Direitos e Deveres Fundamentais em Matéria de Propriedade. Artigo obtido pela internet, extraído do site www.cjf.gov.br da Revista nº03, em 12.01.2005.

ROSENVALD, Nelson. Direitos Reais. Rio de Janeiro. Lumen Juris.2006