UNIVERSIDADE FEDERAL DO CEARÁ

FACULDADE DE DIREITO

 

 

HUGO POMPEU ANDRADE GURGEL

 

 

 

A OPOSIÇÃO ENTRE CIDADÃO E NÃO CIDADÃO

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

FORTALEZA

2013

  1. 1.        A OPOSIÇÃO ENTRE CIDADÃO E NÃO CIDADÃO.

Convém de início, estabelecermos um parâmetro para que possamos ponderar sobre a questão do fenômeno da perda da cidadania, ou melhor, da desumanização do humano, que recai sobre alguns membros da sociedade moderna.

De origem etimológica no latim civitas - que tem por tradução a palavra cidade - o termo cidadania porta uma remissão a uma vida comunitária. Esse conceito já era bem compreendido na Grécia Antiga, onde estava relacionado a condutas dos indivíduos que pertenciam a uma comunidade, representando deveres e direitos que aqueles tinham em relação uns aos outros e para com sua cidade, o que acarretava também em participação ativa do membro na sociedade, e não apenas na passividade de respeitar as limitações à individualidade e à liberdade pessoal de agir.

Logicamente, como todo conceito sociológico, a cidadania teve sua concepção modificada ao longo da história da humanidade, conformando-se e emoldurando-se ao sabor da dinâmica dos valores sociais e morais que surgiam e se extinguiam dentro da trama espaço-tempo de cada sociedade.

Hodiernamente, decorre de sua estreita relação com o social, o fato de cidadania ser mais perceptível ao senso comum que definível. Trata-se de um conceito arraigado perante os indivíduos de uma sociedade, mas que apresenta para cada um diferentes significações e aplicações. Assim, cidadania nos é, vocábulo considerado equívoco, tamanha a gama de situações em que o inserimos e em abrangência quase que inesgotável.

Partindo da acepção de vida comunitária, somam-se as ideias de solidariedade, respeito – mútuo entre si e entre o meio ambiente que os cerca – e, por fim, encontra-se em voga, a questão da inclusão das diferenças e minorias.

Conforme aduz Bueno (2011):

Nas relações interpessoais sobressaem outros aspectos subjacentes nos significados etimológicos da palavra: o subjetivo direito individual e coletivo ao exercício do poder político (escolher e ser escolhido); a prática da política em prol da comuna; o cuidado e a boa convivência com os demais concidadãos (aqueloutros que também vivem nas suas cercanias); o respeito aos aparelhos estatais (instituições, regramentos, bens materiais ou imateriais etc.); a cooperação para o bem estar alheio; o resgate daqueles indivíduos e grupos que (por razões econômicas, raciais, étnicas, físicas etc, geralmente alheias à sua vontade) são postos à margem do status que se convenciona denominar-se sociedade; e a consideração para com os valores que o grupo acredita devam ser aceitos e seguidos por todos os seus integrantes.

Somando-se sorrateiramente ao conceito de cidadania, tais ideias se imbricaram de tal forma que, dificilmente se encontrará definição desta, onde não esteja presente uma ou outra ou todas essas “aspirações”.

Resta-nos que é impensável a cidadania na hipótese de referir-nos a um homem apenas, vivendo absolutamente isolado. De modo que, poderemos até mesmo perceber a presença de elementos caracterizadores da cidadania na referida situação – tais como o respeito à natureza e a busca por relacionamentos com outros indivíduos (decorrente do estado de necessidade, visando segurança própria) – mas torna-se inviável a condição de cidadão sem qualquer convívio com semelhantes.

Na verdade, é pouco provável a vida humana em completo isolamento. Desde os primórdios do homem, este buscou o agrupamento como forma de assegurar sua sobrevivência no meio e suprir necessidades diversas.

Resolvidas essas questões surgiram as necessidades decorrentes do próprio agrupamento. A segurança, alcançada pela convivência, contra as intempéries da natureza exigiu seu preço. O homem agora buscava defender-se não apenas dos perigos e dificuldades naturais, mas também da conduta nociva de outros homens. Urgia a necessidade de um controle entre convivas.

Primariamente a força física fez a lei de ajuste entre os indivíduos. Surgiram as figuras dos líderes dos clãs, que pelo medo impunham a ordem. Entretanto, com o crescimento populacional e aproximação entre diferentes clãs, os conflitos entre ordens e condutas permitidas eram inevitáveis.

O homem se apercebe de que a convivência só seria possível se cada um seguisse um padrão mínimo de comportamento público, que possibilitasse a preservação do bem de todos e da própria liberdade individual de agir.

Assim, de modo contraditório, o indivíduo seria tão mais livre quanto mais se aproximasse do padrão médio da conduta socialmente aprovada e aceita de acordo com os costumes. A delimitação da liberdade individual estava nas regras sociais e estas asseguravam a liberdade dos demais.

As crescentes demandas sociais e o consequente aumento do número de regras deu formação às instituições que, cada qual a seu modo, buscava “normatizar” a convivência e tranquilizar a vida em seus aspectos intra e extra comunidade.

A identificação cultural entre indivíduos, a fixação territorial e a nacionalização e estatização das comunidades, (sem olvidarmos as revoluções e guerras travadas em prol dessas conquistas no decurso histórico da humanidade) faz surgir normas positivadas e constitucionalizadas de bem comum e de regras de convivência social.

Aprimorou-se o social de modo que o bem comum atuou de forma livre a contestar os direitos individuais. Qualquer indivíduo que pertença a uma comunidade, embora desconheça todas as regras institucionalizadas, tem por certo a ampla noção do que seria aceito ou não - do que seria passível de regulamentação social - e assim, muitas vezes pauta suas ações no mero receio da repressão da comunidade. Há a prevalência de um “bom senso” que é dado pela reiteração de condutas de outros indivíduos.

A cidadania adquire novos contornos e outras concepções. Apresenta-se o caráter formal da cidadania, vinculada a noção de Estado-nação (e a regras do direito internacional), que trazem a ideia de pertencimento a uma comunidade nacional. Bem como, o caráter substantivo, que aborda a posse de direitos políticos, civis e sociais, e relaciona-se de sobremodo com a ciência política e a sociologia. Neste último aspecto encontramos a noção do senso comum de cidadania e os mais amplos significados do termo.

Assim a cidadania moderna se consolidou por etapas e, segundo T. H. Marshall (apud Camargo, 2011):

[...] só é plena se dotada de todos os três tipos de direito:

1. Civil: direitos inerentes à liberdade individual, liberdade de expressão e de pensamento; direito de propriedade e de conclusão de contratos; direito à justiça; que foi instituída no século 18;

2. Política: direito de participação no exercício do poder político, como eleito ou eleitor, no conjunto das instituições de autoridade pública, constituída no século 19;

3. Social: conjunto de direitos relativos ao bem-estar econômico e social, desde a segurança até ao direito de partilhar do nível de vida, segundo os padrões prevalecentes na sociedade, que são conquistas do século 20.

Observe-se, contudo, que no Brasil ocorre um caso peculiar de conquista de direitos. Ocorre uma inversão na lógica descrita acima. Segundo o historiador José Murilo de Carvalho (apud Camargo, 2011):

[...] vieram os direitos sociais, implantados em período de supressão dos direitos políticos e de redução dos direitos civis por um ditador que se tornou popular (Getúlio Vargas). Depois vieram os direitos políticos... a expansão do direito do voto deu-se em outro período ditatorial, em que os órgãos de repressão política foram transformados em peça decorativa do regime [militar]... A pirâmide dos direitos [no Brasil] foi colocada de cabeça para baixo.

É notório que, ainda nos dias atuais, boa parcela da população encontra-se afastada dos direitos mínimos de existência. Paradoxalmente, estão localizados dentro de uma sociedade, porém, excluídos do exercício dos direitos que esta confere a qualquer indivíduo.

Não se trata dos casos de Estados que não reconhecem alguns desses direitos (mesmo que os tenham positivado). A análise que se faz é referente à realidade brasileira e sua democracia, que apesar de avanços, ainda não logrou êxito no tratamento dos grupos e indivíduos que se encontram à margem do amparo estatal.

A cidadania é para o país um dos fundamentos da República Federativa do Brasil, conforme a Constituição Federal de 1988 preceitua em seu art. 1º:

Art. 1º A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos:

I - a soberania;

II - a cidadania;

III - a dignidade da pessoa humana;

IV - os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa;

V - o pluralismo político.

Ainda assim, para muitos cidadãos, os únicos fundamentos que vigem são: a soberania e o pluralismo político, que sobrepujam os demais.

É inimaginável, para não dizer inconcebível, tal situação onde um indivíduo que está inserido em uma comunidade é tolhido em seus direitos mais elementares. Cidadão sem cidadania? Dignidade da pessoa humana sem os direitos que a cidadania garante? Valor social do trabalho sem a dignidade humana?

O que dizer então, se a exclusão, antes decorrente de falhas e omissões das políticas públicas, passa a decorrer de atos de autoridades e membros da sociedade que, de forma deliberada passam a operacionalizar o aumento do contingente de socialmente renegados? Quando outros indivíduos da comunidade agem de forma a (pré) julgar e condenar sumariamente, os convivas que supostamente violaram as regras sociais, transformando, da noite para o dia, cidadãos em não cidadãos?

Em uma sociedade moderna, com tantos indivíduos e uma incrível pluralidade de costumes e regras sociais associadas às leis, não é raro que uma conduta (despretensiosa ou não) de um indivíduo transgrida qualquer um desses regulamentos.

Em particular, o indivíduo acusado de um crime é condenado de imediato pelo senso comum social. E com a condenação vêm as consequências e estigmas.

A comunidade reconhece na figura do transgressor, um estranho (um estrangeiro, ou melhor, quase um ser extraterrestre), alguém que não pertence àquela sociedade porque não respeita seus valores e costumes, portanto, não merece guarida nas leis que ampara o conviva que segue as regras de convivência. Contraditório, uma única lei apresenta uma dualidade de aplicações: serve de amparo (consolo) para a vítima (sociedade) e punição para o infrator (“bandido”).

Diuturnamente, muitos são os condenados sociais, e não é preciso sequer provas de culpa, basta o “aval” da autoridade pública em indicar o acusado, apresentando-o com indícios de autoria. Logo a imprensa, a mídia, trata de tirar seu proveito da situação, promovendo, com o alarde que lhe é peculiar, a divulgação da concretização da “justiça” através da prisão de um indivíduo nocivo à sociedade.

Diante da prévia condenação do infrator por essas duas instituições, a população (com algumas exceções) assume o papel de inquisidor, imputando culpabilidade de imediato e sem qualquer possibilidade de defesa.

Verificam-se, nestes procedimentos, condutas que “desumanizam humanos, negam a cidadania a pessoas acusadas de delitos e pregam ou promovem a violação dos direitos” (CEDECA, 2011, p. 47).

Diante deste quadro, direitos e garantias fundamentais constitucionais são negados em nome da “justiça”. Entre as mais claras violações encontram-se as que afetam os seguintes incisos do art. 5º, da Constituição Federal:

[...]

V - é assegurado o direito de resposta, proporcional ao agravo, além da indenização por dano material, moral ou à imagem; 

[...]

X - são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito a indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação; 

[...]

LVII - ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória; (BRASIL, 1988).

O cárcere brasileiro, por suas condições, por si só já representa a desumanização de um infrator. A pena apresenta um caráter de vingança social e não de correção, assim, quanto mais sofrimento se puder infringir, melhor. O senso comum não admite penas “brandas” ou qualquer “regalia”. Tudo deve ser da pior forma possível. Qualquer violação de direitos de um acusado é consentida pela comunidade.

Note-se mais uma violação a garantia constitucional do art. 5º:

III - ninguém será submetido a tortura nem a tratamento desumano ou degradante;

[...]

XLIX - é assegurado aos presos o respeito à integridade física e moral; (BRASIL, 1988).

Até mesmo o direito à vida pode ser abalado. Para boa parte da população, a morte de um “bandido” representa um pouco mais de segurança na sociedade.

Cria-se necessariamente, um paralelo onde, diante de tal constatação, é inevitável a citação de Agamben (2002b, p. 107) sobre a questão da vida desprovida de qualquer proteção: “no homo sacer, enfim, nos encontramos diante de uma vida nua residual e irredutível, que deve ser excluída e exposta a morte como tal, sem que nenhum rito e nenhum sacrifício possam resgatá-la”.

Corrobora o entendimento contido no seguinte texto:

Se o direito a vida passa a ser relativizado em função do envolvimento na autoria de delitos, a morte do acusado passa a ser justificada, ou até consentida, quando a vítima (re)age e mata sob o argumento de legítima defesa. Vítima e acusado, em casos como esses, se confundem. (CEDECA, 2011, p. 57).

Há outro ponto de aproximação entre a figura homo sacer e do infrator moderno, pois assim como este:

[...] o reconhecimento do homo sacer não dependia exclusivamente da intervenção da autoridade judicial ou de um pontífice qualquer – quando o reconhecimento podia ser feito unicamente pela consideração dos fatos, muitas vezes públicos e incontestes, a rotulação era conseqüência imediata do delito e a posterior sentença do juiz tinha efeito meramente declaratório. (NASCIMENTO, 2010, p. 158).

Ainda, a condenação pública traz em si o estigma que estará presente em todos os atos futuros do infrator. Mesmo depois de cumprida a pena determinada, não há o reconhecimento social da possibilidade de recuperação de um indivíduo (uma vez “bandido”, sempre “bandido”), impossibilitando sua reinserção social. Considera-se a propensão criminosa ligada à índole, derivada da própria constituição biológica do indivíduo, uma mera manifestação de sua natureza e, por conseguinte, imutável.

REFERÊNCIAS

FUSTEL DE COULANGES, Numa-Denys, A Cidade Antiga. Tradução. Frederico Ozanam Pessoa de Barros. Versão para eBook. Disponível em: <http://ebooksbrasil.org/eLibris/cidadeantiga.html>. São Paulo: EDAMERIS, 1961. Acesso em: 26 jan. 2013.

AGAMBEN, Giorgio. Estado de exceção. Tradução de Iraci D. Poleti. São Paulo: Boitempo, 2004a.

______. Homo Sacer: o poder soberano e a vida nua. Tradução de Henrique Burigo. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2002b.

BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil: promulgada em 5 de outubro de 1988, atualizada até a Emenda Constitucional nº 68, de 21 de dezembro de 2011. In: ANGHER, Anne Joyce (Org.). Vade Mecum Acadêmico de Direito. 14 ed. São Paulo: Rideel, 2012.

BUENO, Douglas Aparecido. O conceito de cidadania e as relações jurídicas intersociaisBoletim Jurídico, Uberaba/MG, a. 5, nº 752. Disponível em: <http://www.boletimjuridico.com.br/doutrina/texto.asp?id=2399> Acesso em: 3  fev. 2013.

CAMARGO, Orson. O que é cidadania? Disponível em: <http://www.brasilescola.com/sociologia/cidadania-ou-estadania.htm> Acesso em: 5 fev. 2013.

CARVALHO, José Murilo. Cidadania no Brasil: o longo caminho. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2001.

CEDECA – Centro de Defesa da Criança e do Adolescente. Televisões: Violência, Criminalidade e Insegurança nos Programas Policiais do Ceará. Fortaleza: Expressão Gráfica, 2011.

NASCIMENTO, Daniel Arruda. Do fim da experiência ao fim do jurídico: percurso de Giorgio Agamben. 2010. 194 f. Tese (Doutorado) - Departamento de Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 2010.

WACQUANT, Loïc. As prisões da miséria. Tradução de André Telles. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001.