A NATUREZA ENQUANTO SUJEITO DE DIREITOS: uma análise a partir das teorias subjetivas

 

Márcia Thaís Soares Serra Pereira

 

SUMÁRIO: Introdução. 1. Breve estudo acerca das teorias subjetivas. 1.1 Teoria da Vontade. 1.2 Teoria do Interesse. 1.3 Teoria Eclética. 2. A natureza como sujeito de direitos: reflexões e inferências. 2.1 A Constituição do Equador. 2.2 Análise à luz das teorias subjetivas. Considerações Finais.

 

RESUMO

Estudo sobre a questão da natureza enquanto sujeito de direitos. Trata-se de um estudo bibliográfico, de cunho dedutivo, no qual busca-se discutir, à luz das teorias subjetivas, a real possibilidade de se incluir a natureza enquanto sujeito de direitos. Para tanto, parte-se da análise das teorias subjetivas, quais sejam: teoria da vontade, teoria do interesse e teoria eclética ou mista. Posteriormente, procede-se à compreensão da Constituição do Equador, enquanto instrumento normativo que viabiliza tal discussão. E, por fim, faz-se uma análise articulada entre o referido instrumento normativo e as teorias estudadas, de modo a construir um referencial teórico que fundamente tal discussão.

Palavras-chave: Natureza. Teorias subjetivas. Constituição do Equador.

INTRODUÇÃO

 

A Constituição do Equador, datada de 2008, inovou ao incluir como sujeito de direitos a natureza. Versa seu artigo 72 que esta tem o direito de ser respeitada integralmente, seja por meio da manutenção ou da regeneração dos seus ciclos vitais. Significa dizer que a natureza passa a deter o poder de exigir a proteção aos seus direitos, fato até então desconsiderado por diversos ordenamentos jurídicos mundiais, dentre os quais se encontra o Brasil.

Aliás, o ordenamento jurídico brasileiro, em diversas legislações – das quais destaca-se a Constituição Federal – busca assegurar aos indivíduos a existência de um ambiente equilibrado e sustentável, mas seu enfoque encontra-se sob a perspectiva do homem enquanto sujeito de direitos (e, como tal, tem direito a um ambiente saudável e equilibrado) e não da própria natureza enquanto titular deste direito.

Isso posto, torna-se de incontestável relevância analisar o posicionamento adotado pela Constituição Equatoriana, que muda o sujeito desta relação jurídica no nítido propósito de possibilitar a defesa do ambiente natural e, por consequencia, assegurar melhor qualidade de vida às futuras gerações. Deste modo, o presente estudo tem como objetivo geral perceber, à luz das teorias subjetivas do direito, sob qual perspectiva a natureza pode ser entendida enquanto sujeito de direitos.

Para tanto, são estabelecidos objetivos específicos, a saber: a) conhecer as principais características das teorias subjetivas; b) identificar a percepção dada à natureza na Constituição Equatoriana; c) analisar a natureza enquanto sujeito de direitos à luz das teorias subjetivas.

No intuito de alcançar tais objetivos, o presente estudo foi dividido em dois capítulos principais. No primeiro capítulo, discutir-se-á acerca das teorias subjetivas (teoria da vontade, do interesse e eclética ou mista). Busca-se neste capítulo analisar as principais características de cada uma das teorias subjetivas, de modo a compreendê-las e aprofundar os estudos sobre as mesmas.

No segundo capítulo, será analisada a questão da natureza enquanto sujeito de direitos. Para tanto, a Constituição do Equador será utilizada como ponto de partida, haja visto que foi a primeira constituição a adotar o posicionamento da natureza enquanto sujeito de direitos. Após esta análise inicial, proceder-se à discussão da temática (natureza enquanto sujeito de direitos), à luz das teorias subjetivas.

Deste modo, espera-se que, a partir de uma análise mais pormenorizada de tais teorias, tenha-se condições de compreender a natureza enquanto sujeito de direitos, tal como proposto na Constituição do Equador e perceber de que forma a mesma pode ser assim compreendida.

1 BREVE ESTUDO ACERCA DAS TEORIAS SUBJETIVAS

O direito subjetivo objetiva analisar a relação existente entre pessoas físicas ou jurídicas que compõem a sociedade, as quais pretendem ser objeto das regras jurídicas existentes. Em outras palavras, sempre que se discute acerca de teorias objetivas, busca-se analisar a aplicabilidade do direito enquanto norma em face do sujeito (seja ele pessoa física ou jurídica).

Nestes termos, o presente capítulo busca analisar as teorias objetivas, quais sejam: teorias da vontade, do interesse e teoria mista. É o que se constata a seguir.

1.1  Teoria da vontade

A teoria da vontade tem como expoente Windscheid, importante jurista que no século XX tornou-se reconhecido pelos conhecimentos na área do direito romano.

De acordo tal teoria, o direito subjetivo decorre da vontade assegurada pela lei. Em outras palavras, trata-se de uma faculdade psicológica. É o que se extrai dos ensinamentos trazidos por Miguel Reale:

Inspirando-se na noção de facultas agendi, sustentava Windscheid que o direito subjetivo é sempre uma expressão da vontade, entendido esse termo, a princípio, de maneira empírica, como uma faculdade psicológica. O homem sabe, quer a age. Quanto o homem quer e age, ele se situa variavelmente no âmbito de regras de direito. O direito subjetivo, portanto, é a vontade juridicamente protegida (REALE, 2006, p. 251).

Em outras palavras, entende-se que, por meio desta teoria, o sujeito tem a liberalidade de agir de acordo com a sua vontade. Ademais, Montoro (2000, p. 443) descreve que a vontade pode assumir dois aspectos:

Esse poder da vontade apresenta-se sob dois aspectos distintos. Ora como poder (Willensmacht) de exigir determinado comportamento, positivo ou negativo de outras pessoas, por exemplo, o direito de o credor cobrar a dívida, o empregado receber o salário ou o inquilino usar o prédio alugado. Ora como “poderio” ou “soberania” da vontade (Willens-kerrschaft), isto é, como capacidade de adquirir ou extinguir direitos e obrigações como, por exemplo, o direito que tem o proprietário de vender ou alugar sua propriedade, o direito, comum a toda pessoa capaz, de celebrar contratos ou rescindí-los quando a outra parte não cumpre o pactuado.

No entanto, apesar do esforço para caracterizar a forma como a vontade evidencia o direito subjetivo, entende-se que este nem sempre é o entendimento que deve prevalecer, vez que, em diversas ocasiões, a conduta humana encontra-se condicionada ao interesse legal, àquilo que está previsto no ordenamento jurídico e não necessariamente ao que se tem vontade de fazer ou não fazer.

Deste modo, entende-se que a norma poderá impedir a atuação do sujeito ou, ao menos, limitar a sua conduta, para que não incorra em sanções legais. Este, aliás, é o entendimento trazido por Tércio Sampaio Ferraz Júnior, a saber:

De início, a vontade livre é um dado existencial: pode ser constatado, mas não pode ser demonstrado. Faz parte da essência humana esse poder de optar. O homem age e a causa de sua ação é a vontade livre. Nisso o homem é diferente dos animais, regidos por instintos. A vontade livre é, assim, condição da responsabilidade. Só o homem é responsável, moral e juridicamente. A vontade humana, porém, pode estar sujeita a coações. Quando a coação é irresistível, a vontade não atua livremente (FERRAZ JÚNIOR, 2003, p. 145)

Deste modo, em face dos argumentos e críticas apresentados, entende-se que uma outra teoria deve ser analisada, qual seja, a teoria do interesse, conforme se verá a seguir.

1.2 Teoria do interesse

A Teoria do Interesse, ilustrada por Jhering, traz a ideia de que a natureza jurídica do direito subjetivo está alicerçada no interesse juridicamente protegido. Em outras palavras, dado o conflito de interesses existente na sociedade, entende-se que o direito subjetivo consiste naqueles interesses escolhidos para serem protegidos legalmente. É o que se constata abaixo:

Segundo Jhering, em toda a relação jurídica existe uma forma protetora, uma casca de revestimento e um núcleo protegido. A capa, que reveste o núcleo, é representada pela norma jurídica, ou melhor, pela proteção à ação, o que quer dizer, por aqueles remédios jurídicos que o Estado confere a todos para a defesa do que lhes é próprio. O núcleo é representado por algo que interessa ao indivíduo (REALE, 2006, p. 253).

Apesar da relevância da citada teoria, a mesma também foi alvo de críticas, vez que o interesse não necessariamente relaciona-se à proteção legal. Isto porque nem tudo o que é interessante está previsto na lei e vice-versa.

Ademais, além dos aspectos acima citados, destaca-se a ideia de que nem sempre o direito subjetivo reflete o interesse do titular, vez que podem existir situações em que o direito subjetivo existe mas relaciona-se a um terceiro, que não o titular.

Neste sentido, em contraposição à teoria citada, surge uma nova teoria surge, a chamada teoria eclética ou mista, a qual será apresentada a seguir.

1.3 Teoria eclética ou mista

 

No intuito de dirimir a contraposição existente entre a teoria da vontade e a teoria do interesse, surge a teoria eclética ou mista, defendida por Georg Jellinek.

A teoria eclética ou mista, faz um abrandamento das outras duas teorias, tornando uma complementar da outra e, deste modo, desconsidera a relevância atribuída unicamente à vontade e/ou ao interesse. Para o estudioso, o antagonismo entre a vontade e o interesse era apenas aparente, não havendo porque falar-se entre divergências entre as teorias, mas em conciliação. É o que se constata a seguir:

Jellinek achou que havia um antagonismo aparente entre a teoria da vontade e a do interesse, porque, na realidade, uma abrange a outra. Nem o interesse só, tampouco apenas a vontade, nos dão o critério para o entendimento do que seja direito subjetivo. O conceito de direito subjetivo implica a conjugação desses dois elementos, motivo pelo qual ele dizia: direito subjetivo é o interesse protegido que dá a alguém a possibilidade de agir. É, portanto, o interesse protegido enquanto atribui a alguém um poder de querer. (REALE, 2006, p. 255).

E por ser tão conciliadora, a referida teoria também sofre críticas. Embora seja a mais difundida, seus críticos afirmam que a mesma não busca soluções para os problemas das outras teorias, mas tão-somente une-os. Deste modo, os questionamentos e indagações existentes quanto à teoria da vontade ou à teoria do interesse, mantém-se em face da teoria eclética ou mista.

2 A NATUREZA COMO SUJEITO DE DIREITOS: reflexões e inferências

As discussões acerca da questão ambiental têm se consolidado cada vez com maior resistência e persuasão. Isto porque começa-se a perceber o desenvolvimento sustentável enquanto elemento fundamental para o progresso da humanidade, o que culmina com a necessidade de reflexão, por parte da comunidade jurídica, dos instrumentos normativos existentes.

Neste sentido, embora muito se discuta sobre a necessidade de se proteger o meio ambiente, tornando-o e mantendo-o apto à vida humana, a natureza sempre é vista como um elemento a ser protegida pelo direito, mas não como um sujeito de direito. Sabe-se, no entanto, que uma nova vertente tenta romper com a ideologia predominante, impondo um novo paradigma, no qual a natureza passa a ser considerada sujeito de direitos. É o que se constata na Constituição do Equador, a ser analisada a seguir.

2.1 A Constituição do Equador

A Constituição do Equador, promulgada em 2008, inovou ao apresentar a natureza como um sujeito de direitos. Embora esta discussão não seja tão nova – já haviam defensores desta ideia desde a década de 70 -, entende-se que o fato de ter uma Constituição na contemporaneidade merece atenção e análise.

Isto porque a adoção desta perspectiva exige por parte deste país uma nova forma de conceber e conduzir as relações sociais internas e externas que vivencia. Nestes termos, ainda que o legislador constituinte não tenha tido a ideia de transformar as relações existentes naquela realidade, a proporção que tal posicionamento assume é de extrema relevância. É o que nos ensina Monteiro (2011, p. 140):

... incluir tal ideia marcadamente ecocêntrica no seu texto constitucional significa ao Estado do Equador assumir aberta e amplamente uma posição econcêntrica, o que pode importar em relações sociais, econômicas e culturais com significativas diferenças em relação aos Estados da civilização antropocêntrica ocidental. O significado dessa “opção econcêntrica”, portanto, não é pouco. Mesmo que no início ela funcione apenas como uma referência simbólica, trata-se de uma simbologia muitíssimo forte, a ponto de em algum momento adentrar, de fato, no campo da prática.

Isso posto, necessário se faz destacar o artigo 71 da citada Constituição, segundo o qual “a natureza ou o Pacha Mama, onde se reproduz e realiza a vida, tem o direito a que se respeite integralmente a sua existência e a manutenção e regeneração dos seus ciclos vitais, estrutura, funções e processos evolutivos”. [grifo meu]

Nestes termos, constata-se nitidamente a preocupação em perceber a natureza enquanto um sujeito de direitos, que deve ter os seus direitos resguardados. Por óbvio, sabendo-se que a natureza por si só não poderá assumir a atitude protetiva, a própria Constituição permite que qualquer cidadão ou até mesmo a nação possa assumir esta atitude.

Vê-se, portanto, clara inovação, a qual, por si só traz consigo questões para debate, discussões e polêmicas.

2.2 Análise à luz das teorias subjetivas

Uma vez compreendida a questão da natureza enquanto sujeito de direitos, conforme apresentado na Constituição do Equador, necessário se faz perceber, do ponto de vista teórico, a qual aspecto a mesma encontra-se vinculada.

Deste modo, traremos como ponto de análise as teorias citadas anteriormente, quais sejam as teorias da vontade, do interesse e mista.

Inicialmente, a partir da ideia de que a teoria da vontade refere-se à vontade assegurada em lei, entende-se que a mesma não poderia ser aplicada à questão da natureza enquanto sujeito de direitos. Isto por que a natureza, por si só, não pode exprimir a sua vontade e, por consequência, retorna-se ao aspecto crítico desta teoria, segundo a qual muitas vezes nossas vontades são desrespeitadas em virtude do caráter coercitivo atribuído à lei.

Ora, se a natureza não pode exprimir vontade, para anunciar o que deseja, imagine ser coagida a agir de uma maneira ou de outra. Deste modo, entende-se pela inaplicabilidade desta teoria como um todo.

No que diz respeito à teoria do interesse, entende-se que a mesma poderia ser aplicada à questão da natureza. Isto porque a natureza passa a ser vista enquanto o interesse a ser tutelado pelo Estado, em benefício da sociedade. Trata-se de uma perspectiva mais compatível com as ideias defendidas, por exemplo, na Constituição do Equador.

Sabe-se, no entanto, que o interesse não é da natureza em si, mas da própria sociedade. Deste modo, entende-se também pela não-aplicabilidade desta teoria, vez que a natureza por si só não tem como exprimir suas vontades e interesses. Este, aliás, é o motivo pelo qual também não se admite a adoção da teoria mista ou eclética.

Isso posto, entende-se que a natureza não pode ser vista como sujeito de direitos, mas tão-somente pode (e deve) ser estimulada a atitude de respeito para com a mesma, no intuito de favorecer o desenvolvimento sustentável e equilibrado.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A preocupação com a questão ambiental tem ocupado o centro das discussões das mais diferentes regiões do mundo. Deste modo, cada Estado-Nação tem assumido o compromisso de contribuir para a construção de um mundo mais saudável, que prime pelo seu desenvolvimento sustentável.

A Constituição do Equador, por sua vez, inovou ao apresentar a natureza enquanto sujeito de direitos. Isto porque, a forma com que tratou a questão, incita a mudanças de comportamentos e atitudes por parte do Estado para com as relações internas e externas que estabelece, sempre visando o bem-estar social, pautado no respeito à questão ambiental.

No entanto, entende-se que esta é uma decisão extremista e incompatível com a lógica jurídica. Não há como falar-se em natureza enquanto sujeito de direitos, tendo-se em vista que a própria natureza não pode exprimir suas ideias, vontades e interesses.

Nestes termos, defende-se a adoção de medidas protetivas ao meio ambiente, tratando a natureza não como sujeito do direito, mas como elemento que necessita de proteção, elemento que deve ser protegido pelos sujeitos que formam o direito. Qualquer outra concepção poderá ser vista como ilusória, extremista e descabida.

REFERÊNCIAS

EQUADOR. Constituição da República do Equador. 2008.

FERRAZ JR, Tércio Sampaio. Introdução ao estudo do direito: técnica, decisão, dominação. 4. ed. São Paulo: Atlas, 2003.

MONTEIRO, Isabella Pearce. Capítulo 4: Previsões relativas ao meio ambiente nas Constituições Nacionais. In: Direito do Desenvolvimento Sustentavel: produção histórica internacional, sistematização e constitucionalização do discurso do desenvolvimento sustentável. Tese de Mestrado. Faculdade de Direito da Univesidade de Coimbra, 2011.

REALE, Miguel. Lições preliminares de direito. 27. ed. São Paulo: Saraiva, 2006.