A INTERVENÇÃO DO PODER JUDICIÁRIO NAS DELIBERAÇÕES DA ASSEMBLEIA GERAL DE CREDORES NA RECUPERAÇÃO JUDICIAL DE EMPRESAS

 

Igor Thiago Rocha Pereira

Jéssica Gisele Campos

(Acadêmicos do 9º Período do Curso de Direito da Universidade Estadual de Montes Claros – UNIMONTES)

 

 

1. RESUMO

A Lei 11.101/05 (Lei de Recuperação de Empresas e Falência), substituta do antigo Decreto-lei 7.661/45, introduziu no ordenamento jurídico brasileiro o instituto da Recuperação Judicial de Empresas, cuja finalidade é viabilizar a reestruturação da empresa em dificuldades econômico-financeiras, evitando, deste modo, sua provável falência. A nova lei elegeu como baluartes da recuperação judicial, os princípios da função social e da preservação da empresa e atribuiu, em contrapartida, aos credores, reunidos em assembleia geral e sob a gerência do Poder Judiciário, a faculdade de aprovar, modificar ou reprovar o plano de recuperação apresentado pelo devedor no processo de recuperação (art. 35, I, alínea “a”).

Contudo, como se sabe, a Lei 11.101 foi sancionada em 2005, e, por ser tão jovem, ainda gera dúvidas e entendimentos ambíguos entre os operadores do direito. Exemplo disto, são as divergentes decisões nos Tribunais Estaduais e as discrepantes opiniões doutrinárias sobre a relativização da soberania das deliberações da assembleia geral de credores face ao poder de intervenção do Judiciário no processo de recuperação judicial de empresas.

Dados divulgados pelo SERASA Experian (2013) apontam que após a entrada em vigor da Lei 11.101/05, houve uma redução brusca da quantidade de falências decretadas frente o crescente número de recuperações judiciais deferidas. Logo, pode-se aferir que o instituto da recuperação judicial de empresas “saiu do papel” e vem ganhando força no cenário econômico nacional, razão pela qual, merece ser examinado.

Daí, a importância do estudo alvitrado, pois propõe uma análise aprofundada a cerca do tema, visando esclarecer tais imprecisões e reduzir a insegurança jurídica projetada por tamanha dicotomia teórica e prática.

2. ASPECTOS HISTÓRICOS

A redemocratização do Brasil, além de inúmeras conquistas e “reconquistas” políticas e sociais, proporcionou, igualmente, ao país, um amplo crescimento econômico, baseado, sobretudo, no maior desenvolvimento de suas indústrias, serviços e exportação; aumentando, consequentemente, o número de empresas e a sua importância no cenário nacional, como fonte geradora de emprego e riqueza.

Ao mesmo tempo, os últimos anos caracterizaram-se, também, por uma grande instabilidade econômico-financeira mundial. Uma série de crises de crédito e confiança geraram graves impactos na economia nacional, como a diminuição no consumo de diversos produtos, a redução de crédito e/ou a elevação do seu custo, provocando um desalinho financeiro para várias empresas, v. g. a crise financeira deflagrada nos E.U.A. em 2008.

Porém, o infortúnio de uma empresa nem sempre é desencadeada por uma crise internacional. Na grande maioria dos casos, decorre de dificuldades inerentes à própria atividade, além de outros fatores, como os problemas de gestão.

Inicialmente, tem-se que a superação da crise de determinada empresa deve resultar de uma “solução de mercado”, a partir da iniciativa de empreendedores e investidores, que identificando o fato gerador da crise, mobilizam-se em prol da reorganização e reestruturação daquela atividade.

Porém, se, em princípio, não há solução de mercado para a crise de uma empresa, é porque ela não comporta recuperação, pois, como sugeriu Fábio Ulhoa Coelho (2012, p. 214), as más empresas devem falir para que as boas não se prejudiquem.

Por outro lado, não se pode olvidar que, também existem conjunturas diversas que dificultam a recuperação de uma atividade empresarial, sobretudo os interesses particulares que sobre ela recaem, que, por sua natureza, impedem que, até mesmo, uma “solução de mercado” repare o problema. Logo,

quando as estruturas do sistema econômico não funcionam convenientemente, a solução de mercado simplesmente não ocorre. Nesse caso, o estado deve intervir, por meio do Poder Judiciário, para zelar pelos vários interesses que gravitam em torno da empresa (dos empregados, consumidores, fisco, comunidade etc.). (ULHOA, 2012, p. 215)

Durante muito tempo, tratou-se o problema da insolvência comercial apenas com a realização do passivo do devedor, atendendo tão somente as pretensões dos credores. O Estado pouco se importava com a viabilidade de uma medida que prevenisse a falência do comerciante em crise. Nesse sentido, Maria Celeste Morais Guimarães (2007, p. 267) afirma que,

por grande período da história, a solução da insolvência das empresas ficou restrita ao círculo privado dos interesses do devedor e de seus credores. A solução da crise econômica e financeira das empresas não reclamava uma ingerência do Estado, que, alheio, assistia o desenrolar do conflito. Os postulados do liberalismo reforçavam esta tendência.

A partir no século XIII, a quebra do comerciante passou merecer abordagem distinta, a exemplo das repúblicas italianas de Gênova, Florença e Veneza, quando se concebeu, portanto, a possibilidade de reestruturação do comerciante em crise, por meio de mecanismos tutelados pelo Estado.

No Brasil, o assunto foi tratado pela primeira vez no Código Comercial de 1850, embora já fossem aplicadas aqui, disposições falimentares presentes nas legislações lusitanas.

A propósito, o sistema falimentar instituído pelo Código Comercial logo caiu em descrédito. Seu lento e oneroso processo de execução comprometia, principalmente, a reestruturação dos devedores em concordata suspensiva da falência, além dos impertinentes embargos gerados pela “autonomia excessiva dos credores e o falseamento do sistema na aplicação da lei, quando se cancelavam os princípios que a inspiravam” (VALDERDE APUD GLADSTON MAMEDE, 2006, p. 38), o que lhe fadou ao fracasso.

Após sofrer sucessivas modificações, por decretos e leis, que alteraram substancialmente sua estrutura legislativa, o sistema falimentar do Código Comercial de 1850 foi substituído pelo Decreto-lei 7.661/45 (Lei de Falências e Concordatas), editado ainda no período do “Estado Novo”, em que, a concordata, sinteticamente, constituía um benefício da lei para o devedor “honesto” frustrado em seus negócios, que atendesse as condições legais. O referido decreto-lei reduziu a autonomia dos credores e reforçou o poder dos magistrados nas decisões das falências e das concordatas.

Vítima das abruptas e ligeiras mudanças na politica econômica nacional, oriundas, principalmente, do processo de globalização, o Decreto-lei 7.661/45 tornou-se, rapidamente, defasado e impróprio para atender o emergente mercado brasileiro. Waldo Fazzio Junior (2010, p. 01) aponta que,

por meio de uma sistemática processual que prestigiava a morosidade e condenava ao relento os créditos não públicos, e enfatizando o componente punitivo do concurso coletivo, a LFC (Lei de Falências e Concordatas) já não dava conta dos intricados problemas diuturnamente gerados pelos processos de concordata e de falência, cada vez mais complexos, burocráticos e inócuos.

Logo, ao contrário da concordata do Código Comercial de 1850, em que os juízes exerciam um papel meramente homologatório do pacto de reestruturação aprovado pela assembleia dos credores, no Decreto-lei de 1945 os magistrados possuíam amplos poderes e exerciam grande influência no destino da empresa em crise (ESPINDOLA, 2010).

Acontece que, nos moldes propostos pelas concordatas do Código Comercial de 1850 e do Decreto-lei 7.661/45, dificilmente a recuperação da empresa era alcançada. Ao contrário, estes institutos “se converteram em verdadeiros instrumentos de própria extinção da atividade empresarial. Raramente uma empresa em concordata conseguia sobreviver (...)”, de tal sorte que, “se extinguiam periodicamente, fontes de produção, geradoras de empregos, de créditos, de tributos, de gerência social e de fonte de fortalecimento da economia brasileira” (MACHADO, 2007, p. 21).

Consequentemente, diante da desastrosa situação gerada pela ineficiência na aplicação da legislação falimentar vigente até então, e, sobretudo, “consciente da necessidade de uma reforma legislativa em setores fundamentais do interesse nacional, foi criada, no início da década de 90 do século XX, no Ministério da Justiça, uma comissão para elaborar um projeto de reforma da Lei de Falências” (MACHADO, 2007, p. 23). Após anos de estudos e debates, em 09 de fevereiro de 2005, o Projeto de Lei 71 foi sancionado, transformando-se na Lei 11.101, Lei de Recuperação de Empresas e Falência.

3. ALTERAÇÕES INTRODUZIDAS PELA NOVA LEI DE RECUPERAÇÃO DE EMPRESAS E FALÊNCIA

Sob o prisma da Teoria da Empresa, adotada pelo nosso ordenamento jurídico a partir do Código Civil de2002, aLei 11.101/05 modernizou o nosso sistema falimentar, atualizando o processo de Falência e criando a Recuperação Extrajudicial de Empresas e a Recuperação Judicial de Empresas; proposta, esta última, em substituição a obsoleta figura da concordata, existente, como cediço, desde o Código Comercial de 1850.

A nova lei e, especialmente, o instituto da recuperação judicial de empresas, objeto deste estudo, já “nasceram” com a importante tarefa de assegurar sobrevida útil às empresas viáveis em crise econômico-financeira, bem como, trouxe

como divisa a reestruturação empresarial como meio de proporcionar maiores possibilidades de satisfazer aos credores, minimizar o desemprego, fortalecer e facilitar o crédito e, em consequência, poupar o mercado dos reflexos perversos da insuficiência dos agentes econômicos. (FAZZIO JUNIOR, 2010, p. 2-3)

Na recuperação judicial de empresas, o devedor apresenta em juízo um plano que deverá demonstrar as medidas a serem implementadas, visando à reorganização da atividade e a demonstração da sua viabilidade econômica e não apenas a forma de satisfação dos credores (GUIMARÃES, 2007, p. 172).

Com efeito, a Lei 11.101/05 prioriza, por meio dos institutos de recuperação do devedor em crise, a salvaguarda da empresa, buscando, exatamente, mudar esse cenário desfavorável criado pela ineficiência da concordata e garantir os interesses econômico-sociais envoltos na falência de uma atividade empresarial, restando, como medida extrema, a execução concursal.

O art. 47 da Lei 11.101/05 é contundente, nesse aspecto, ao prever que:

A recuperação judicial tem por objetivo viabilizar a superação da situação de crise econômico-financeira do devedor, a fim de permitir a manutenção da fonte produtora, do emprego dos trabalhadores e dos interesses dos credores, promovendo assim, a preservação da empresa, sua função social e o estímulo à atividade econômica. (BRASIL, 2013)

Logo, os princípios da preservação da empresa e da função social da empresa, insertos no art. 47 da Lei 11.101/05, ocupam importante função na sistemática introduzida pela nova lei falimentar, pois, por meio deles, busca-se com mais afinco a reestruturação da empresa; sobretudo, pela sua importância para a sociedade, notadamente, na geração de emprego, na melhoria do bem estar social, na geração de riqueza, na alocação de recursos e, consequentemente, no desenvolvimento regional.

Obviamente, o caráter social da recuperação judicial de empresas, de modo algum, descarta os interesses dos credores em verem adimplidos os seus créditos. Não se está falando em promoção da preservação da atividade empresarial em detrimento das obrigações sobrestadas pela situação de crise. Na verdade, essa nova sistemática busca conciliar a possibilidade de reorganização da empresa com a regularização da sua relação com os credores.

Tanto é que, o legislador, ao criar a nova Lei de Recuperação de Empresas e Falência atribuiu aos credores, sob a gerência do Judiciário, o poder de aprovar, modificar ou reprovar o plano de recuperação apresentado pela empresa em crise (art. 35, inciso I, alínea “a”), dada a importância da sua participação no processo de recuperação judicial de empresas.

Nesse sentido, Fábio Ulhoa Coelho (2012, p. 344) afirma que,

a Assembleia dos Credores é o órgão colegiado e deliberativo responsável pela manifestação do interesse ou vontade predominantes entre os que titularizam crédito perante a sociedade empresária requerente da recuperação judicial sujeitos aos efeitos desta. De maneira geral, nenhuma recuperação de empresa se viabiliza sem o sacrifício ou agravamento do risco, pelo menos em parte, dos direitos de credores. Por esse motivo, em atenção aos interesses dos credores (sem cuja colaboração a reorganização se frustra), a lei lhes reserva, quando reunidos em assembleia, as mais importantes deliberações relacionadas ao reerguimento da atividade econômica em crise.

Logo, havendo objeção pertinente, por qualquer credor, ao plano de recuperação apresentado pelo devedor ao juízo competente, cabe ao magistrado convocar a assembleia de credores, para que, atendidos os requisitos legais de instalação e deliberação assemblear, estes, manifestem-se sobre a proposta de recuperação, decidindo sobre a modificação, aprovação ou rejeição do plano.

4. A INTERFERÊNCIA DO PODER JUDICIÁRIO NAS DELIBERAÇÕES DA ASSEMBLÉIA GERAL DE CREDORES

Em que pese à importância dos credores no processo de recuperação judicial de empresas, a extensão dessa participação deve ser avaliada de maneira mais crítica, pois alguns equívocos sobre essa questão podem gerar insegurança jurídica e, até mesmo, o desvirtuamento deste importante instituto para a sociedade e economia brasileira. Concomitantemente, deve-se analisar, outrossim, qual o papel do juiz nesse contexto e qual a dinâmica necessária para que as finalidades almejadas pela nova lei falimentar sejam alcançadas.

Pois bem. Uma corrente de estudiosos e operadores do Direito, valendo-se de uma hermenêutica, um tanto quanto singela e, porque não, equivocada da Lei 11.101/05, tem atribuído às deliberações oriundas da assembleia geral de credores, na avaliação do plano de reestruturação do devedor, um valor soberano e absoluto, blindando-as, de certa forma, de possível interferência do Poder Judiciário, a quem caberia, supostamente, a mera função de “chancelador” das decisões emanadas daquele órgão.

Para esta corrente, não caberia de forma alguma ao Poder Judiciário apreciar o mérito das decisões assembleares, podendo os credores exercer o seu direito de voto considerando interesses meramente particulares; competindo ao juiz, apenas e tão somente, observar o atendimento dos requisitos legais e homologar o plano aprovado pelos credores ou decretar a falência da empresa em crise, quando rejeitada a proposta de reestruturação. Concomitantemente, Juliana Horst (2011, p. 84) entende

pela impossibilidade de interferência do Poder Judiciário ao homologar o plano de recuperação judicial, ao argumento de atender à função social da empresa em crise econômico-financeira. Isso porque a própria legislação conferiu o poder de decisão sobre a preservação da empresa aos credores que não possuem a obrigação legal de, com fundamento na função social da empresa, colocarem seus interesses particulares em segundo plano.

Corroborando com essa ideia, Erasmo França (2007, p. 194) assegura que,

o juiz exerce um controle de legalidade ou legitimidade das deliberações da Assembleia, não um controle de mérito. As deliberações da Assembleia, aliás, não precisam ser motivadas, sendo tomadas de acordo com critérios de conveniência ou oportunidade. Desde que tenham sido observadas todas as formalidades legais, e não haja votos viciados decisivos para a formação da maioria, o conteúdo das deliberações escapa ao controle jurisdicional.

Mais enfático e sem rodeios, André Luiz Santa Cruz Ramos (2012, p. 726) assegura matematicamente que “são os credores que decidem, e o juiz apenas ‘homologa’ essa decisão (...)”. Nesse mesmo sentido, ESPINDOLA (2010, p. 70) ressalta que,

a decisão é dos credores e em que pesem opiniões contrárias, que, data venia, fundamentado no principio da preservação da empresa de uma forma distorcida defendem que a decisão dos credores em assembléia pode ser ultrapassada, ressalvada aqui a hipótese prevista no §1º do art.58, a decisão daqueles em Assembléia deve ser seguida e uma vez não aprovado o plano de recuperação apresentado, deverá o Juiz decretar a falência do devedor.

Deste modo, os únicos interesses salientes seriam aqueles representados pelos credores, em absoluto desprezo aos princípios preconizados pelo art. 47 da nova lei: a função social e a preservação da empresa. Pode-se perceber a referida preterição quando ESPINDOLA (2010, p. 70) afirma que “a função social da empresa é gerar lucro, ou seja, é criar e fazer circular riquezas. Uma empresa que não o faça, cumprirá a sua função social sendo liquidada”.

Logicamente, a função social de uma empresa vai além da perseguição de lucro, sobretudo, após a adoção da Teoria da Empresa pelo Novo Código Civil, no qual, esta, considerada de maneira bem mais complexa, exerce um dinâmico papel na sociedade, seja pela geração de emprego e renda, pelo atendimento das demandas consumeristas, bem como, pelo desenvolvimento socioeconômico regional. De acordo com Rubens Requião (2006, p. 76):

Hoje o conceito social de empresa, como exercício de uma atividade organizada, destinada à produção ou circulação de bens ou de serviços, na qual se refletem expressivos interesses coletivos, faz com que o empresário comercial não continue sendo empreendedor egoísta, divorciado daqueles interesses gerais, porém um produtor impulsionado pela persecução de lucro, é verdade, consciente de que constitui uma peça importante no mecanismo da sociedade humana. Não é ele, enfim, um homem isolado, divorciado dos anseios gerais da coletividade em que vive.

Vale registrar que, essas considerações à cerca da soberania das deliberações da assembleia geral de credores, remetem, inclusive, à figura da concordata suspensiva da falência no direito falimentar do Código Comercial de 1850, na qual os credores tinham demasiada autonomia e que, por isso, restou fracassada, dado o conflito de interesses que dificultava a reestruturação do comerciante “quebrado”.

Por outro lado, distinta corrente, composta também por estudiosos e operadores do Direito, considera que a Lei 11.101/05 não atribui exclusivamente aos credores o poder de decidir sobre o futuro da empresa em dificuldades, embora reconheça a sua importância no processo de recuperação judicial da empresa. Para esse grupo conferir imediata soberania e absolutismo à decisão assemblear é arriscado, haja vista a grande possibilidade da manipulação das deliberações.

Foi exatamente este o juízo da Câmara Reservada à Falência e Recuperação do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, quando, no julgamento do Agravo de Instrumento n. 0136362-29.2011.8.26.0000, decidiu pela nulidade da deliberação da assembleia geral de credores, haja vista, considerem que o plano aprovado albergava “graves violações aos clássicos princípios gerais de direito, a diversos princípios constitucionais e às regras de ordem pública, não apresentando condições constitucionais, principiológicas e legais para ser homologado pelo Poder Judiciário”.

O Desembargador Manoel de Queiroz Pereira Calças, relator do recurso, foi categórico ao apontar que, “incide-se em grave equívoco quando se afirma, de forma singela e como se fosse um valor absoluto, a soberania da Assembleia-Geral de Credores, pois, como ensinaram Sócrates e Platão, as leis é que são soberanas, não os homens”. E, ainda, que,

(...) só se pode afirmar que a Assembleia-Geral de Credores é soberana, quando ela obedece a Constituição da República seus princípios e regras - e as leis constitucionais. Se a Assembleia-Geral de Credores aprova pelo quórum estabelecido na Lei nº 11.101/2005 um plano que viole princípios ou regras, compete ao Poder Judiciário [que, como já afirmei, não é mero chancelador de deliberações assembleares tanto que tem o poder-dever de não aplicar regras inconstitucionais] o dever de recusar a homologação ao plano viciado. (TJSP, 2011)

Neste mesmo sentido, Waldo Fázio Júnior assegura que, “a aprovação do plano de recuperação passa por um crivo de sua viabilidade empresarial e, subsequentemente, pelo filtro da legalidade formal e material do Poder Judiciário” (2010, p. 161); não estando, portanto, o juízo da recuperação adstrito à mera observação do atendimento de formalidades legais, mas, estritamente vinculado ao mérito das deliberações, visando, sobretudo, coibir o abuso do direito de voto e o desvio de finalidade daquele instituto.

Fábio Ulhoa Coelho (2008, p. 162) defende que:

Pela lei brasileira, os juízes, em tese, não poderiam deixar de homologar os planos aprovados pela Assembleia de Credores, quando alcançado o quórum qualificado da lei. Mas, como a aprovação de planos inconsistentes levará à desmoralização do instituto, entendo que, sendo o instrumento aprovado um blá blá blá inconteste, o juiz pode deixar de homologá-lo e incumbir o administrador judicial, por exemplo, de procurar construir com o devedor e os credores mais interessados um plano alternativo.

5. CONCLUSÃO

Logo, não se defende aqui uma inconsequente intervenção do magistrado para simplesmente determinar, ao seu bel prazer, sobre a aprovação ou não do plano de recuperação. O que se pretende demonstrar são os riscos de conferir plenamente a um grupo tão heterogêneo e com interesses tão destoantes o destino de uma empresa viável que passa por problemas; e ao mesmo tempo, registrar a impertinência da homologação do plano de recuperação de uma empresa irrecuperável, aprovado pelos credores.

Cumpre destacar, nesse contexto, argucioso e denodado trecho do voto do Desembargador Manoel de Queiroz Pereira Calças no supracitado agravo, no qual afirma que,

a constante repetição de precedentes jurisprudenciais, inclusive desta Câmara especializada, diversos de minha relatoria, sobre a soberania da Assembleia-Geral de Credores, tem que ser complementada e aperfeiçoada, ou seja, as deliberações assembleares, construídas consoante os princípios e regras constitucionais e de acordo com as leis, são adjetivadas de soberania, a qual é haurida soberania da Carta Magna e do ordenamento legal. Se, porém, as deliberações da Assembleia-Geral forem maculadas por vícios, fraudes, simulações, manipulações, inverdades ou violações aos princípios morais, éticos, constitucionais ou às regras legais, devem ser nulificadas de ofício pelo Poder Judiciário. (TJSP, 2011) (sem grifos no original)

Assim sendo, faz-se mister que os Tribunais pátrios provoquem uma análise mais criteriosa do poder do voto dos credores e do papel do magistrado na recuperação judicial de empresas. A ideia não é mitigar os interesses dos credores face à reestruturação do devedor e de sua função social, mas garantir um processo justo e livre de abusos, assegurando que empresa, credores e toda a sociedade não sejam prejudicados por errôneas interpretações legais.

 

6. REFERÊNCIAS

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