Cristiano Augusto Venâncio[1]

Flavia Pinho de Brito Mundim[2]

Pedro Eliezer Maia[3]

  1. Introdução: origem e natureza jurídica

Com o advento da Emenda Constitucional n° 45/04, foi incluso o §3°, no artigo 102 da CR/88[4]1, cujo texto inseriu novo pressuposto de admissibilidade exclusivo dos recursos extraordinários, denominado repercussão geral.

Apesar da sua recente criação, já existiam, institutos similares nos Estados Unidos e na Alemanha e, mais recentemente, na Argentina e no Japão.[5]

Ademais, a repercussão geral teve como fonte inspiradora a argüição de relevância, instituto introduzido no ordenamento jurídico brasileiro pela Emenda Constitucional n°1/69, que permitiu ao Supremo Tribunal Federal, em 1975, criar em seu regulamento os artigos 325 a 329.

Embora ambos os institutos tenham a mesma finalidade, qual seja, criar um filtro para que o STF julgue apenas as questões que realmente confrontem os interesses da Nação, os procedimentos são totalmente diferentes. Enquanto a argüição de relevância era julgada de forma secreta e sua decisão não necessitava de fundamentação, a repercussão geral deve ser julgada em sessão pública, com decisão fundamentada, ainda que sucintamente.[6]

Com a inserção deste novo requisito de admissibilidade aos recursos extraordinários, surgiram diversas indagações acerca deste instituto: este requisito obstaria o acesso à justiça? O STF deveria realmente julgar toda e qualquer questão constitucional, fosse qual fosse? A postura legislativa de deixar a critério dos ministros do STF conceituar o que possui ou não repercussão geral é uma postura segura? A criação de um requisito baseado em normas "vagas" feriria a segurança jurídica?[7]

O objetivo do presente artigo é elucidar as questões acima elencadas, mesmo que de forma sintética, além de valorizar a importância da utilização de normas "vagas" no instituto da Repercussão Geral.

  1. Recurso extraordinário e repercussão geral

O recurso extraordinário é o recurso interposto contra decisão de última ou única instância, que tenha violado preceito constitucional federal, declarado a inconstitucionalidade de tratado ou lei federal, considerado válida lei ou ato de governo local contestado em face de Constituição Federal, ou prestigie lei local cuja validade for contestada em face de lei federal, conforme o inciso III, alíneas a, b, c e d, do artigo 102, da CF/88.[8]

Para a sua admissibilidade, são necessários alguns requisitos, dentre os quais merecem destaque: preparo, legitimidade, interposição perante o tribunal competente, tempestividade, pré-questionamento da matéria constitucional, esgotamento dos recursos pretéritos.

Com a EC 45/2004 foi inserido mais um requisito de admissibilidade aos recursos extraordinários que será o cerne do presente artigo: a repercussão geral.

Como requisito de admissibilidade formal, a repercussão geral deve ser demonstrada mediante preliminar formulada na própria petição do recurso extraordinário, cabendo ressaltar que a análise de mérito deste instituto é de apreciação exclusiva do STF.[9]

Cumpre salientar, ainda, que, devido ao fato da repercussão geral ser requisito de natureza constitucional, ela não se aplica apenas aos recursos extraordinários cíveis, mas também, aos penais, eleitorais e trabalhistas.

Recebido o recurso pelo STF, o primeiro critério de admissibilidade analisado será justamente a repercussão geral, pois, presume-se que os demais requisitos já foram analisados pelo juízo a quo.

Para que um recurso seja indeferido por negativa de repercussão geral, é necessário que dois terços dos membros do STF entendam que a matéria em questão não é relevante do ponto de vista econômico, político, social ou jurídico.

Porém, além dos critérios subjetivos, que dependem da interpretação dos ministros do STF, também existe uma hipótese objetiva para o reconhecimento da repercussão geral, previsto na Lei 11.418/06, que inseriu o §3° do artigo 543-A do CPC.[10]

  1. Repercussão geral: um obstáculo ao acesso à justiça e à segurança jurídica?

Com a criação do instituto da Repercussão Geral, que tem como objetivo elevar o STF à sua real função de guardião dos preceitos constitucionais, princípios anteriormente consolidados foram colocados a prova.

Questionou-se a obrigatoriedade do STF em julgar todos os recursos que fossem a ele endereçados, devido o princípio do "acesso a justiça". Ocorre que, julgando todos os processos a ele endereçados, o STF nunca conseguirá exercer sua real função perante a sociedade.

Segundo ARRUDA ALVIM, com o instituto da repercussão geral o STF potencializará seu papel no cenário jurídico, pois não mais necessitará julgar assuntos rotineiros sem maior importância. Se processos desprovidos de uma propagação mais ampla deixam de ser julgados, as questões de maior relevância para a sociedade podem ter "finalmente" uma solução.[11]

O argumento de que todas as causas são importantes é falho, pois, se considerarmos que todas as causas têm o mesmo patamar adimitimos que nenhuma delas é realmente importante. Nas palavras de ARRUDA ALVIM, se isso ocorrer haverá "a banalização definitiva do significado real de 'importante'"[12].

Além do mais, a Justiça brasileira possui toda uma estrutura constituída pelas Justiças Estaduais e Federais, que cobrem todo o território brasileiro. Essa estrutura possibilita a todos o acesso à justiça, através de um sistema recursal abundante, que muitos juristas consideram como excessivo.

Deve-se ressaltar também que, com a Repercussão Geral o STF terá fortalecida suas funções jurídicas e políticas[13]. A função essencial do STF não é servir de terceira ou quarta instância para o judiciário, mas sim proteger os preceitos constitucionais.

Além do mais, a própria sociedade é a maior interessada em ver julgados os recursos dotados de repercussão geral, em detrimento dos que não a possuem.O próprio legislador já previa este interesse social ao inserir o §6º no artigo 543-A do CPC[14], que permite a manifestação de terceiros sobre a análise da existência ou não da repercussão geral.

Como já dito anteriormente, para se inadmitir um recurso extraordinário por negativa de repercussão geral, é necessário que dois terços dos ministros do STF entendam que o caso em apreço nãoa possuam.[15] Tal afirmativa garante que a segurança juridica não deixará de existir nem será diminuída na prestação jurisdicional.

4.A repercussão geral como cláusula geral

Para se admitir a repercussão geral em um recurso extraordinário, conforme o § 1º do art. 543-A do Código de Processo Civil, "será considerada a existência, ou não, de questões relevantes do ponto de vista econômico, político, social ou jurídico, que ultrapassem os interesses subjetivos da causa."

Conforme ABBUD, há quem diga que os requisitos previstos no dispositivo supracitado não possuem caráter jurisdicional, mas político e pautam-se em critérios meta-jurídicos.[16]

Tal pensamento é incoerente pois, segundo ABUDD:

"(...) a concorrência de elementos não estritamente jurídicos (no sentido positivista) para o raciocínio judicial, como princípios, valores, máximas de experiência, ponderações de ordem econômica, política ou social etc. é traço que, além de presente em qualquer interpretação jurídica, em maior ou menor grau, marca sobremaneira toda exegese de cláusulas gerais e conceitos jurídicos indeterminados(...)".[17]

Desta forma pode-se concluir que os critérios anteriormente chamados de "meta-jurídicos", são fundamentais para a interpretação jurídica.Nas palavras de ARRUDA ALVIM, a aplicação destes critérios provocará "uma interação entre a norma e a realidade, esta última sendo "operada" por aquela, e a realidade "alimentará" a significação da norma."[18]

Deve-se ressaltar, também, que o próprio dispositivo legal confere juridicidade às decisões que negam ou reconhecem a repercussão geral baseadas nos fatores já descritos, ao prescrever que "a súmula da decisão sobre a repercussão geral (...) valerá como acórdão".[19]Desta forma, as decisões tomadas pelo STF servirão como paradigmas para os demais tribunais e jurisdicionados.[20]

A norma que instituiu a repercussão geral, pauta-se em conceitos vagos, para que o aplicador da lei, ao analisar o caso concreto, busque os "valores sociais" para aplicar adequadamente a norma.

ARRUDA ALVIM entende que não se deve definir o que repercute geralmente. Caso houvesse previsão legal de todos os casos em que se deve aplicar a repercussão geral exaustivamente, haveria um rol extenso de incisos extremamente causuísticos e complexos, além de serem inevitavelmente incompletos, levando-se em conta a celeridade das mudanças sociais.[21]

Conforme ABBUD a exigência da repercussão geral nos recursos extraordinários, constitui uma "cláusula geral" por valer-se de conceitos jurídicos indeterminados.[22] Esta técnica legislativa vem sendo utilizada nos setores mais importantes do direito, o que constitui uma tendência atual.

No entendimento de ARRUDA ALVIM, outra técnica legislativa não seria eficaz no caso da repercussão geral. Uma técnica que possui uma linguagem precisa não seria capaz de retratar uma realidade social. Normas fixas e precisas são incapazes de retratar sociedades dinâmicas.[23]

Quando o legislador utiliza normas vagas para definir um determinado instituto, ele deseja conferir maior flexibilidade ao ordenamento jurídico, fazendo com que a norma acompanhe a dinâmica da sociedade. Tal assertativa majora o papel do intérprete da lei, que deverá aplicar a norma de acordo com os "valores sociais" em voga naquele momento.

Asmatérias que possuem ou não repercussão geral, serão fruto do julgamento contínuo de causas pelo STF, resultado de um processo de "decantação permanente" . Com o tempo o STF possuirá um rico rol de matérias ondeestá presente a repercussão geral.[24]

Destarte, é impressindível salientar que uma posição tomada pelo STF pode ser colocada a prova quando esta estiver ultrapassada. Existem dois casos em que a repercussão geral será presumida, conforme o §3º do artigo 543-A do CPC: quando a decisão recorrida for contrária a verbete sumular ou então à jurisprudência dominante.

Quando se presume a repercussão geral em causas com decisões contrárias ao entendimento predominante, assegura-se a certeza e segurança juridica mas, mais importante que isso, garante-se a "dinâmica da oxigenação do sistema".[25] Decisões sobre determinados assuntos não podem e não devem ser eternas, pois, os valores sociais são mutantes e, por este motivo, as decisões também devem ser.

5.Considerações Finais

Entendemos como importantíssima a criação do requisito de admissibilidade da repercussão geral para que os recursos extraordinários sejam julgados. O Supremo Tribunal Federal deve exercer sua real função de defensor dos preceitos constitucionais vigentes e não mais atuar como terceira ou quarta instância do judiciário.

Mais importante do que elevar o STF à sua devida função jurisdicional, foi a forma como a repercussão geral foi introduzida em nosso ordenamento. A definição deste instituto como cláusula geral, valendo-se de conceitos vagos, nos leva a crer que, enfim, o legislador começa a perceber a realidade dinâmica e multifacetada da sociedade.

A noção de Repercussão Geral foi inteligentemente construída sobre alicerces indeterminados e não cabe ao legislador especificá-los, sob pena de engessar a interpretação do operador da lei.

Essa vagueza e indeterminação de seus conceitos é o que garante a transcendência deste instituto. Podemos, neste caso, constatar a flexibilização do texto legal e, consequentemente, a percepção da necessidade de se adotar um novo sistema juridíco, sistema esse que deve ser aberto, móvel, inacabado e que sempre possa ser confrontado à realidade social correspondente àquele determinado momento.

Além do mais, o mesmo artigo que exige a repercussão geral como pressuposto para que os recursos extraordinários sejam julgados, presume esta mesma repercussão geral nas decisões que forem divergentes do entendimento do STF. Este fato faz com que o STF continuamente reconheça as novas tendências juridicas, operando num patamar que garanta a segurança juridica, ou seja, assegurando que qualquer regra jurídica será interpretada segundo os princípios, normas e costumes de determinada sociedade, em determinada época.

Quanto ao legislador, este deve focar-se na função dinâmica ao sistema jurídico, no sentido de tirar deste seu carater conceitual e preenchê-lo com ações.

Funadamental é conceber que a sistematica jurídica evolui continuamente no sentido da pluralidade, pois, cada vez mais o direito surge como uma política social a ser desempenhada.

Desta forma, numa sociedade onde as possibilidades socio-econômicas e politico-religiosas são incontáveis, cada vez mais é urgente a criação de normas que atendam às necessidades de dinamismo e flexibilizem o direito, como por exemplo, o instituto da repercussão geral.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRAFICAS:

ABBUD, ANDRE A. CAVALCANTI, O Anteprojeto de Lei sobre a Repercussão Geral dos Recursos Extraordinários, RePro n 129 de 2005. P. 117

ALVIM, ARRUDA. A EC N. 45 e o Instituto da Repercussão Geral. Em: Reforma do Judiciário: primeiros ensaios críticos sobre a EC n. 45/2004, São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2005. p. 74

BRAWERMAN, André . Recurso Extraordinário, Repercussão Geral e a Advocacia Pública. Revista Brasileira de Direito Constitucional, v. 10, p. 143-161, 2007.

SOUZA, Bernardo Pimentel. Introdução aos recursos cíveis e à ação rescisória. 5. ed. São Paulo: Saraiva, 2009. 807 p.




[1] Advogado, Pós Graduando em Direito Público pelo IEC/PUC-MG.

[2] Advogada, Pós Graduanda em Direito Público pelo IEC/PUC-MG.

[3] Advogado, Pós Graduando em Direito Público pelo IEC/PUC-MG.

[4] §3 do artigo 102 da CR/88: "No recurso extraordinário, o recorrente deverá demonstrar a repercussão geral das questões constitucionais discutidas no caso, nos termos da lei, afim de que o tribunal examine a admissão do recurso, somente podendo recusá-la pela manifestação de dois terços de seus membros".

[5] Alvim, Arruda. A EC N. 45 e o Instituto da Repercussão Geral. Em: Reforma do Judiciário: primeiros ensaios críticos sobre a EC n. 45/2004, São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2005.

[6] Artigo 93, inciso IX da CR/88; artigo 543-A, §7° do CPC e os artigos 325, parágrafo único e 329, ambos do Regimento Interno do STF.

[7] Alvim, Arruda. A EC N. 45 e o Instituto da Repercussão Geral. Em: Reforma do Judiciário: primeiros ensaios críticos sobre a EC n. 45/2004, São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2005, p. 85.

[8]Artigo 102, inciso III, a, b, c e d da CR/88: "julgar, mediante recurso extraordinário, as causas decididas em única ou última instância, quando a decisão recorrida: a) contrariar dispositivo desta Constituição; b) declarar a inconstitucionalidade de tratado ou lei federal; c) julgar válida lei ou ato de governo local contestado em face desta Constituição; d) julgar válida lei local contestada em face de lei federal".

[9]§ 2o Na hipótese de o relator do recurso especial considerar que o recurso extraordinário é prejudicial àquele, em decisão irrecorrível sobrestará o seu julgamento e remeterá os autos ao Supremo Tribunal Federal, para o julgamento do recurso extraordinário.

[10]§3° do artigo 543 A do CPC: "Haverá repercussão geral sempre que o recurso impugnar decisão contraria à sumula ou jurisprudência dominante do tribunal".

[11] Alvim, Arruda. A EC N. 45 e o Instituto da Repercussão Geral. Em: Reforma do Judiciário: primeiros ensaios críticos sobre a EC n. 45/2004, São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2005. p. 83

[12] Alvim, Arruda. A EC N. 45 e o Instituto da Repercussão Geral. Em: Reforma do Judiciário: primeiros ensaios críticos sobre a EC n. 45/2004, São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2005. p. 90

[13] KOZIKOSKI, Sandro Marcelo. A Repercussão Geral das Questões Constitucionais e o Juízo de Admissibilidade do Recurso Extraordinário. Em: Reforma do Judiciário: primeiros ensaios críticos sobre a EC n. 45/2004, São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2005. p. 744

[14] § 6º do artigo 543 A do CPC: "O Relator poderá admitir, na análise darepercussão geral, a manifestação deterceiros,subscritaporprocuradorhabilitado,nostermosdo RegimentoInternodoSupremoTribunal Federal".

[15] Conforme previsão do §3º do artigo 102, da CR/88.

[16]ANDRE A. CAVALCANTI ABBUD, O Anteprojeto de Lei sobre a Repercussão Geral dos Recursos Extraordinários, RePro n 129 de 2005, p. 111.

[17]ANDRE A. CAVALCANTI ABBUD, O Anteprojeto de Lei sobre a Repercussão Geral dos Recursos Extraordinários, RePro n 129 de 2005, p. 111.

[18] Alvim, Arruda. A EC N. 45 e o Instituto da Repercussão Geral. Em: Reforma do Judiciário: primeiros ensaios críticos sobre a EC n. 45/2004, São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2005, p. 80.

[19] §7º do artigo 543-A do CPC.

[20] Alvim, Arruda. A EC N. 45 e o Instituto da Repercussão Geral. Em: Reforma do Judiciário: primeiros ensaios críticos sobre a EC n. 45/2004, São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2005, p. 84.

[21] Alvim, Arruda. A EC N. 45 e o Instituto da Repercussão Geral. Em: Reforma do Judiciário: primeiros ensaios críticos sobre a EC n. 45/2004, São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2005, p. 74.

[22]ANDRE A. CAVALCANTI ABBUD, O Anteprojeto de Lei sobre a Repercussão Geral dos Recursos Extraordinários, RePro n 129 de 2005, p. 111.

[23] Alvim, Arruda. A EC N. 45 e o Instituto da Repercussão Geral. Em: Reforma do Judiciário: primeiros ensaios críticos sobre a EC n. 45/2004, São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2005, p. 80.

[24] Alvim, Arruda. A EC N. 45 e o Instituto da Repercussão Geral. Em: Reforma do Judiciário: primeiros ensaios críticos sobre a EC n. 45/2004, São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2005, p. 74.

[25]ANDRE A. CAVALCANTI ABBUD, O Anteprojeto de Lei sobre a Repercussão Geral dos Recursos Extraordinários, RePro n 129 de 2005, p. 117.