A ESTERILIZAÇÃO DO CURATELADO: CONFORTO PARA A FAMÍLIA, MAS PRIVAÇÃO AO ENFERMO MENTAL

 

Renato Gonçalves de Sá[1]

Victor Paiva Gomes Marques do Rosário[2]

 

Sumário: Introdução. 1. Curatela. 1.1 Tutela x Curatela 1.2 Aspectos Procedimentais 2. Esterilização e a Dignidade do Curatelado. Conclusão. Referências.

Resumo: O presente artigo trata primeiramente sobre o instituto da curatela, explicando os casos onde é aplicada e em seguida a implicação do procedimento de esterilização em indivíduos submetidos à curatela, sob o pressuposto de garantir que não dê desenvolvimento à prole em razão de eventuais abusos que venha a sofrer. O artigo demonstrará de que forma tal procedimento fere os direitos humanos, dentre vários princípios constitucionais  dos quais se destaca a proteção da dignidade da pessoa humana.

Palavras-Chave: Direito de Família, Curatela, Esterilização.

INTRODUÇÃO

A prática da esterilização em deficientes mentais é comumente praticada como forma da família desobrigar-se de cumprir com seu papel de lidar com a sexualidade do curatelado, optando por simplesmente negá-la. O que acontece na realidade é que tal procedimento trás vários danos ao desenvolvimento psíquico, além de ferir a dignidade pessoal do enfermo, privando-o de uma faceta natural da vida que poderia muito bem ser desfrutada normalmente se os seus responsáveis de fato se preocupassem com esse aspecto.

O problema, é que frequentemente acontecem casos de abusos sexuais contra essas pessoas que em razão da falta de discernimento mental não conseguem dizer não às investidas do criminoso. Sendo assim, as famílias escolhem a esterilização do curatelado para também não ter que se preocupar em vigiar o deficiente e protegê-lo desses abusos, como se o problema disso fosse unicamente a geração de filhos indesejados, sem se importar com o seu aspecto psicológico e emocional.

1.      CURATELA

Em condições normais, com o alcance dos 18 anos de idade, o indivíduo adquire a maioridade e a capacidade absoluta para as atividades na vida civil. Entretanto, existem casos onde por vários motivos, pessoas que mesmo com dezoito anos ou mais se encontram impedidas de cuidar dos próprios interesses e administrar seus bens devido à doença ou deficiência mental. Nesses casos, é necessário que outra pessoa, chamada de curador, receba a responsabilidade de proteger os interesses do incapaz.

            Segundo o código civil, artigo 1.767, estão sujeitos à curatela os: enfermos ou deficientes mentais que em razão disto não possuam discernimento necessário para os atos da vida civil; aqueles que por outra causa duradoura não puderem manifestar sua vontade; os deficientes mentais, ébrios habituais e viciados em drogas; os excepcionais sem desenvolvimento mental completo; e os pródigos.

A doutrina frequentemente discorda da necessidade do rol apresentado pela lei para a constatação da necessidade de curatela, sendo mais importante verificar na prática se existe uma causa que impeça a pessoa de exercer seus atos da vida civil. Nas palavras de Maria Berenice dias:

É de questionar a utilidade do elenco legal, pois, constatada a incapacidade, de todo dispensável rotular a causa da mesma, bastando a constatação da deficiência para o decreto da interdição. Assim, apesar do esforço do legislador, torna-se descabida a tentativa de arrolar, identificar ou definir as limitações ou inaptidões que geram o comprometimento da higidez mental. Perícia médica é que definirá a incapacidade e o grau de comprometimento a dar ensejo ao decreto de interdição por decisão judicial. O estado de alienação, por si só, não enseja a incapacitação. O que efetivamente importa é saber se existe causa incapacitante e, em caso positivo, em que grau de extensão compromete o exercício da vida civil a ponto de impossibilitar a pessoa de administrar seus negócios e gerir seus bens. (DIAS, p.446, 2009)  

1.1 Tutela x Curatela

A curatela não deve ser confundida com a tutela, pois embora semelhantes na questão de sua natureza protetiva, a tutela protege aqueles indivíduos que não possuem capacidade plena em razão da pouca idade e não estão sob o poder familiar dos pais, enquanto que a curatela se destina aos maiores incapacitados pelas razões anteriormente citadas. Outra importante diferença é que o tutor poderá ser escolhido pelos pais, enquanto que o curador é nomeado segundo o critério legal, a não ser quando os pais nomeiem curador através de testamento.

            As semelhanças são de que à curatela serão aplicadas as mesmas disposições referentes à tutela, segundo o artigo 1.774. Caberá então ao curador representar o curatelado, sendo de sua competência dar autorização para casamento, lembrando que só os pródigos e os sujeitos à curatela relativa (casos II e III do rol apresentado) é que poderão casar, sendo obrigatório o regime de separação de bens.

1.2  Aspectos Procedimentais

Existem várias espécies de curatela, de acordo com o grau de inaptidão mental do interditando. Se lhe faltar totalmente a capacidade, de modo que sua vontade não  é manifestada de forma lúcida, a interdição será absoluta, para todos os atos da vida civil. Já nos casos onde a falta de aptidão é parcial, a interdição do curatelado será limitada, sendo-lhe permitidos alguns atos, como por exemplo, no caso do pródigo, e caberá ao juiz delimitar a extensão da sua interdição.

A lei oferece a determinada pessoas a legitimidade para requerer a interdição, sem ordem de preferência, qualquer um deles pode entrar com a ação, a legitimidade é concorrente. Inclusive, mais de um legitimado pode pedir a curatela em litisconsórcio. São eles: os pais ou os tutores; o cônjuge ou qualquer parente; e o Ministério Público (nos casos de anomalia psíquica, e nas hipóteses de: doença mental grave; no caso de alguma das pessoas legitimadas não promover a interdição; e se os legitimados forem menores ou incapazes).

O autor da ação precisa provar a sua legitimidade, assim como a anomalia psíquica do interditado e a consequente incapacidade de administrar  a si mesmo e seus bens. O juiz deverá então estabelecer o curador, de acordo com a ordem de preferência da lei, não podendo, entretanto ser uma escolha rígida, uma vez que deve prevalecer o interesse do curatelado.

Na curatela, são aplicadas as disposições relativas à tutela, sendo assim, a possibilidade de escusa, as normas de exercício, o que diz respeito aos bens, o dever de prestar contas, etc., também constam na curatela. Ainda que seu exercício seja um múnus público, é justo que o curador seja remunerado de acordo com a importância dos bens administrados, além de ter ele o direito de ser reembolsado por aquilo que despender.  A competência do curador desdobra-se à pessoa e ao patrimônio do curatelado, assim como à sua prole que já tenham nascido ou mesmo que ainda nascituros.

2.      A ESTERILIZAÇÃO E A DIGNIDADE DO CURATELADO

            A esterilização no Direito Civil consiste na remoção da capacidade reprodutora de uma pessoa deficiente, física ou mental,  através de laqueadura (na mulher) ou vasectomia (no homem). Essa prática, realizada em mulheres predominantemente, e, nenhuma sequer inscrita em programa de planejamento familiar, atenta contra a integridade física, saúde pública, direito de constituição de família, e, principalmente, direitos da personalidade. A ideia da família, ao realizar tal procedimento, é garantir a tranquilidade da mesma em relação ao deficiente de constituir família, acabando por ir de encontro com os direitos supracitados. (BEVERVANÇO, 2000)

            Há, claramente, um abandono da saúde pública e do planejamento familiar e um desinteresse da família em garantir a dignidade do deficiente, ao realizar um procedimento que fere sua integridade física de forma permanente, no caso da mulher. De acordo com Rosana Bevervanço:

A esta altura do presente trabalho, entendemos fundamental fazer algumas considerações acerca da problemática das pessoas portadoras de deficiência no contexto social, já que todos os direitos existentes - atendimento educacional e de saúde especializados; beneficio mensal; acesso e locomoção; aquisição de próteses, órteses; medicamentos e recursos necessários a tratamento; garantia de admissão em cargo público; vedação de preconceito; proibição de discriminação quanto a salário e critérios de admissão de trabalhador portador de deficiência, eliminação de barreiras arquitetônicas, etc. - estão, na verdade, assegurando um direito primeiro, anterior e primordial, que é o da habilitação, reabilitação e integração social. Logo, por essa ótica, deve perpassar toda a análise e interpretação das normas que tutelam os direitos das pessoas portadoras de deficiência, em uma praxis libertadora. (Ibid.)

                Podemos entender que a reintegração social de um deficiente físico ou mental é resguardada por um rol de direitos e garantias, como os citados, como aquisição de próteses, garantia de admissibilidade em concursos públicos, etc. Todos vão ao encontro da reintegração social do deficiente, e o direito de constituir família, de ter liberdade sexual, também vão neste sentido. A esterilização, no entanto, vem a ceifar esses direitos, pois o deficiente é impossibilitado de ter sua prole, apenas para o conforto mental e satisfação da família do mesmo, que autorizaram o procedimento sem pensar nas pretensões e direitos do curatelado.

            O Estado, como garantidor de todos esses Direitos, tem o dever de protegê-los o máximo que puder, com legislações e penas referentes ao ato. A Constituição Federal, no seu art. 226, parágrafo 7º, diz o seguinte:

Fundado nos princípios da dignidade da pessoa humana e da paternidade responsável, o planejamento familiar é livre decisão do casal, competindo ao Estado propiciar recursos educacionais e científicos para o exercício desse direito, vedada qualquer forma coercitiva por parte de instituições oficias ou privadas.

                O supracitado artigo deixa claro que o planejamento familiar é de decisão do casal, sendo o Estado responsável por propiciar o pleno exercício deste direito. Então fica claro que a decisão sobre o planejamento familiar cabe ao casal e não ao curador ou a família que quer tranquilidade em relação ao deficiente.

            Outro fundamento jurídico é a lei nº 7.853/89, que também delega ao Estado a responsabilidade em assegurar os direitos às pessoas portadoras de deficiência. A lei enumera:

Art. 2º Ao Poder Público e seus órgãos cabe assegurar às pessoas portadoras de deficiência o pleno exercício de seus direitos básicos, inclusive dos direitos à educação, à saúde, ao trabalho, ao lazer, à previdência social, ao amparo à infância e à maternidade, e de outros que, decorrentes da Constituição e das Leis, propiciem seu bem-estar pessoal, social e econômico.

Parágrafo único. Para o fim estabelecido no caput deste artigo, os órgãos e entidades da administração direta e indireta devem dispensar, no âmbito de sua competência e finalidade, aos assuntos objetos desta Lei, tratamento prioritário e adequado, tendente a viabilizar, sem prejuízo de outras as seguintes medidas:

a) a promoção de ações preventivas, como as referentes ao planejamento familiar, ao aconselhamento genético, ao acompanhamento da gravidez, do parto e do puerpério, à nutrição da mulher e da criança, à identificação e ao controle da gestante e do feto de alto risco, à imunização, às doenças do metabolismo e seu diagnóstico e ao encaminhamento precoce de outras doenças causadoras de deficiência; [...]

            Esta lei mostra, claramente, a obrigação do Poder Público de assegurar aos deficientes vários direitos básicos, dos quais o mais importante, para este paper,  é o direito a maternidade, amparado por ações preventivas que focam no planejamento familiar, nutrição da mãe, acompanhamento da gravidez, entre outros.

            Há, ainda, a lei 9.263/96, a qual responsabiliza o SUS a prestar serviços de saúde ao casal que terá filhos, dando a assistência necessária. É importante ressaltar, sobre todas as leis citadas, o princípio da isonomia, que garante tratamento igual a todos pela mesma lei.

            Em contrapartida, há certos casos em que a esterilização voluntária é permitida pela lei 9.263/96.  Esses casos são os de homens e mulheres com capacidade civil plena, maiores de vinte e cinco anos, ou, pelo menos, dois ou mais filhos vivos, observando o prazo de sessenta dias entre a manifestação da vontade e a cirurgia, etc. O parágrafo 6º afirma que, para pessoas absolutamente incapazes, o único modo de se realizar a esterilização é mediante autorização judicial. Sobre o caso tratado, posiciona-se Bevervanço:

Portanto, o curador nomeado em processo de interdição (se for o caso), representará o incapaz em Juízo (artigo 84 do Código Civil), pois a ele cabe atender o curatelado quanto a pessoa e bens (artigos 453, 422 usque 431 do Código Civil). Haverá, obviamente, a manifestação do Poder Judiciário sobre o tema que, repita-se, entende-se, somente poderá deferir o pedido de esterilização após comprovada utilização e/ou ineficácia dos meios científicos disponíveis para a contracepção (a não ser em casos de risco para a saúde e vida da pessoa portadora de deficiência), em programa de planejamento familiar voltado para elas. Assim, estar-se-á respeitando as conquistas científicas, princípios de bioética, o direito de cidadania da pessoa portadora de deficiência e o direito de personalidade delas. (Ibid.)

Logo, de acordo com a legislação, para que se haja o respeito a universalidade de Direitos básicos garantidos pelo Poder Público a todas as pessoas, independente de deficiência, seria através de via judicial, requerendo a esterilização do curatelado após comprovada ineficácia dos meios contraceptivos mais utilizados como anticoncepcional, camisinha, etc.

CONCLUSÃO

A esterilização só é aceitável quando praticada de forma responsável, dentro de um sistema efetivo de planejamento familiar, com prestação de assistência de saúde especializada à pessoas com deficiência. O que não pode, é que ao invés disso, se esterilizem essas pessoas simplesmente como escusa para não ter que cuidar desse aspecto de suas vidas, ou mesmo de não precisar vigiá-las quanto aos abusos sexuais dos quais frequentemente são vítimas.

O enfermo mental, assim como qualquer outra pessoa, também tem emoções, é capaz de amar, de estabelecer relacionamentos, e também, de ter uma vida sexual na medida do possível “normal”. Sendo assim, não é seu direito como pessoa poder desfrutar dessa etapa da vida e que isso não lhe seja cerceado de maneira impensada ou como forma de negligência.

REFERÊNCIAS:

BEVERVANÇO, Rosana Beraldi. A esterilização. Disponível em: <http:// www.ampid.org.br/Artigos/EsterilizacaoPDeficiente.php>. Acesso em 7 de novembro de 2011

BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil. Promulgada em 5 de outubro de 1988.

BRASIL. Lei 7.853 de 24 de outubro de 1989

BRASIL. Lei 9.263 de 12 de janeiro de 1996


DIAS, Maria Berenice. Manual de direito das famílias. 5. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2009.

 
VENOSA, Silvio de Salvo. Direito civil: direito de família. V.6. São Paulo:Atlas, 2007.



[1] Acadêmico do 6º Período do curso de Direito da UNDB.

[2] Acadêmico do 6º Período do curso de Direito da UNDB.