A EFETIVAÇÃO DA FAMÍLIA SOCIOAFETIVA POR UMA LEITURA EXTENSIVA DO CÓDIGO CIVIL DE 2002[1]

 

Lucas Magalhães Barbosa **

                                                                Viviane V. Santos Zeitouni

 

 

Sumário: 1. Introdução; 2 As formas de família e seu respaldo constitucional; 3 A afetividade como argumento jurídico; 4 A supressão de lacunas por uma leitura extensiva do código civil; Considerações Finais; Referências.

 

RESUMO

É necessário o reconhecimento do instituto da filiação socioafetiva pelo Direito brasileiro. Com a evolução da sociedade referente à concepção de família restou insculpida na Constituição de 1988 a consagração de direitos da entidade familiar e a inclusão da família socioafetiva efetivando o princípio da dignidade da pessoa humana. Entretanto, o Código Civil de 2002 não atentou para esta entidade familiar, deixando de regulamentá-la infraconstitucionalmente. Frente a esse vazio legislativo, busca-se suprir esta lacuna através da leitura extensiva de artigos já positivados.

PALAVRAS-CHAVE

Família socioafetiva. Afetividade. Lacunas. Código Civil 2002.

 

1 INTRODUÇÃO

A Carta Política de 1988 trouxe notáveis mudanças ao Direito de Família. Mudanças estas condizentes com as transformações sociais, de modo a aproximar a lei da realidade. Desfaz-se a prevalência da família matrimonializada e patriarcal, para a possibilidade de entidades familiares monoparentais, pluriparentais e aquelas fincadas pelo afeto.

O conceito de filiação se alargou, e além do vínculo sanguíneo, passou a prevalecer também à posse do estado de filho, elemento essencial que diz respeito ao relacionamento entre pessoas que se comportam como pais e filhos, que assumes deveres e gozam de direitos inerentes a tal condição. A partir disso, constitui-se uma nova entidade familiar: a família socioafetiva.

Não obstante essa previsão constitucional, a legislação infraconstitucional não se atentou para tais modificações e não regulamentou a filiação socioafetiva. Entretanto, a ciência hermenêutica possibilita a supressão dessa inobservância através da utilização de artigos já elencados no Código Civil de 2002.

2 AS FORMAS DE FAMÍLIA E SEU RESPALDO CONSTITUCIONAL

A realidade da família brasileira fora paulatinamente evolucionando juntamente com a história mundial e assim nascera gradativamente um novo ideal de família, baseada na  igualdade, fraternidade, afetuosidade e respeito mútuo.

Essa evolução ocorre com a Constituição Federal de 1988 que passa a perfilhar a família como o alicerce da sociedade e, com isso, assegura-lhe especial proteção quando faz expressa alusão ao casamento, à união estável e às famílias constituídas por um só dos pais e seus filhos, que, até então, o Código Civil de 1916 abordava, tão somente, das relações dos núcleos familiares formados pelo casamento, onde o homem desempenhava sua superioridade sobre a mulher, mera ajudante limitada às atividades domésticas (LÔBO, 2004).

Para inaugurar a pluralidade de formas de família, verifica-se na Carta Magna em seu artigo 226, § 3°, o reconhecimento da união estável e no § 4º do mesmo artigo, a família monoparental, a chamada família nuclear, pós-nuclear, unilinear, monoparental, eudemonista e socioafetiva. A afetividade, assim, desponta como elemento nuclear e definidor da união familiar, aproximando a instituição jurídica da instituição social (WELTER, 2002, p. 128-133).

A concepção de uma filiação socioafetiva parte da ideia da construção da paternidade de fato, construída no convívio cotidiano com base no afeto, na garantia de uma criação digna, preocupada com a saúde e a educação típica das relações domésticas familiares inerentes ao vínculo entre pais e filhos.

A doutrina compreende várias espécies de filiação socioafetiva. Uma delas é a filiação sociológica do filho de criação, que ocorre nos casos onde não há vinculo biológico e nem mesmo jurídico (adoção), os pais criam o(s) seu(s) filho(s) somente pelo vínculo probatório, que é o afeto (WELTER, 2002, p. 128-137). Outra possibilidade se observa na filiação eudemonista, que acontece com o reconhecimento voluntário ou judicial da paternidade/maternidade comparecendo ao Cartório do Registro Civil de forma espontânea requerendo o registro de um indivíduo como seu filho. É o que se denomina adoção de fato, que é aquele que toma lugar do pai jurídico tornando-se pai de fato. E não menos importante, há a filiação socioafetiva na “adoção à brasileira” o qual alguém reconhece a paternidade/maternidade biológica, mesmo não o sendo. Contudo, essa conduta é tipificada no artigo 299 do Código Penal (WELTER, 2002, p. 128-137).

Segundo Maria Berenice Dias (2006, p. 350), é a filiação socioafetiva que brota na posse de estado de filho, constituindo modalidade de parentesco civil de “outra origem”, como dispõe o art. 1.593 do Código Civil, sendo esta origem, o afeto. Esta se estabelece com reconhecimento da filiação nos laços de afeto. Que seria forma de filiação acima da verdade biológica, pois, a paternidade e maternidade, diante do Direito, é aquela que se forma entre a criança e quem cuida dela, que lhe dá amor e compartilha da sua vida.

     No mesmo sentido, a necessidade de manter o equilíbrio da família, que desempenha a sua função social, faz com que se confira um papel auxiliar a verdade biológica. Revela-se como constância social da relação entre pais e filhos, individualizando uma paternidade que existe não simplesmente pelo fato biológico ou por força de presunção legal, mas sim em resultado de um convívio afetivo (DIAS, 2006, p. 366).

3 A AFETIVIDADE COMO ARGUMENTO JURÍDICO

Seguindo os preceitos da Constituição Federal de 1988, observou-se que a introdução de direitos fundamentais também fazia alusão às relações familiares, visto que o legislador buscou “juridicizar” a afetividade e a igualdade como princípios basilares da família contemporânea.

Paulo Luiz Netto Lobo (2002, p. 41) relata que as tecnologias constantemente voltadas à superação do mundo consumerista e globalizado atingiram o modelo familiar. A formação do modelo de família, agora contemporâneo, parece querer acompanhar esse ritmo acelerado da sociedade de consumo. Não se fala mais em famílias, mas em entidades familiares, visto que estas não seguem mais o esquema utilizado em séculos passados. Fala-se hoje em famílias mosaico, pluriparentais, simultâneas, monoparentais, isossexuais, socioafetivas.

A certeza do reconhecimento e da tranquilidade nessa atribulada travessia de paradigmas parte da presença dos princípios constitucionais, no qual a afetividade e a igualdade servem de fundamentos determinantes em decisões difíceis. Nas palavras de Luis Alberto Rizzato Nunes (2002, p. 23):

(...) em última instância, haverá um princípio a ser invocado – e em primeiro lugar, como estamos a demonstrar. É como se o sistema jurídico – que no caso brasileiro é quase completamente escrito – fosse um tecido costurado sobre os princípios. Ou, dizendo de outro modo, a colcha de retalhos de norma está assentada neles. Se essa colcha fosse, por um motivo qualquer, retirada, eles estariam lá, sob ela.

Inserir a afetividade como princípio fundamental à instauração dos vínculos formais entre pessoas é abolir a repressão de sentimentos que eram ocultados pelo Código Civil de 1916. Os sentimentos humanos de filiação sempre existiram, mas conforme a cultura da época nem sempre se pode formalizar vínculos de filiação.  O instituto da adoção não tinha como pressuposto a existência de afinidade para se estabelecer a confiança e o respeito entre pais e filhos, apenas a questão patrimonial importava (ANDRADE, 2010, p. 73).

Renata Lacerda de Andrade (2010, p. 74) expõe que a vinculação estabelecida entre pais e filhos pelo afeto não está subordinada à duração do mesmo. As relações filiais necessitam de continuidade e estabilidade, em respeito ao melhor interesse do menor, que não pode ficar à mercê dos humores humanos. O que demonstra que a entidade familiar socioafetiva apresenta segurança para os seus membros. O vínculo formal surgido da socioafetividade é indissolúvel.

Seguindo este viés, a afetividade no direito de filiação pode ser invocada tanto como fundamento para o estabelecimento de vínculos paterno-filial ou como forma de impedir o rompimento destes mesmos vínculos, impossibilitando a sua desconstituição. Nas duas situações, o que se obterá é a regulamentação formal de uma realidade fática, através do reconhecimento jurídico de uma situação já existente (ANDRADE, 2010, p. 83).

Apesar de a Constituição Federal reger o ordenamento jurídico brasileiro ressalta-se que ainda muitos magistrados vêm encontrando obstáculos na aplicação da afetividade como fundamento jurídico para a manutenção da convivência entre pais e filhos. Não obstante, o Superior Tribunal de Justiça, vem admitindo a sua importância para a concretização do melhor interesse da criança.

Em sede de habeas corpus, o Ministro Relator Luiz Fux já advogou que:

(...) inegável que a família hoje está assentada na paternidade sócio-afetiva por isso que, absolutamente indiferente para a manutenção do filho junto ao pai alienígena, a eventual dependência econômica; posto se sobrepor a dependência oral-afetiva. (...) Deveras, na ponderação dos interesses em tensão, há sempre que prevalecer a hodierna doutrina do best interest of the child (HC 32756/ DF, Rel. Ministro Luiz Fux, Primeira Seção, julgado em 23/04/2004).

Percebe-se, pois, que mesmo não constando a expressão afeto no texto constitucional como sendo um direito fundamental e, consequentemente, um princípio, este decorre da valorização da dignidade humana. E através de precedentes judiciais há a demonstração real de sua aplicabilidade, seja para o reconhecimento ou manutenção destes vínculos já constituídos, que não devem ser rompidos, como já supracitado, em atenção aos interesses dos filhos.

Talvez o direito vigente não seja tão justo em sua concretização, mesmo assim o juiz deve oferecer uma resposta. Atento à sua responsabilidade como agente transformador e agindo com a ética do cuidado, sempre buscando a realização da solução mais adequada para cada caso (ANDRADE, 2010, p. 85).

4 A SUPRESSÃO DE LACUNAS POR UMA LEITURA EXTENSIVA DO CÓDIGO CIVIL

Para que a sociedade chegasse ao que se presencia atualmente experimentou-se grandes mudanças, de forma que o Código Civil de 1916 já não suportava a desmedida gama de novos valores da sociedade em que a família brasileira sentiu reflexos diretos desta transformação de pensamento, de orientação.

A Carta Magna trouxe em seu bojo a previsão de diversos institutos privados, mas que não ultrapassava a falta que um novo código civil fazia à sociedade. O projeto do atual Código Civil tramitou por longos 25 anos no Congresso Nacional, que depois de diversas modificações foi promulgado em 11 de janeiro de 2002.

O novo diploma legalístico tinha por objetivo principal a sistematização em matéria civil com embasamento nos novos paradigmas trazidos pela Carta Magna. Contudo, constata-se que mesmo por tantos anos em tramitação para que ficasse pronto, este ainda se mostra bastante introvertido quanto ao êxito de sua finalidade acerca das famílias socioafetivas.

O Código Civil, embora recente, promulgado em 2002, não acolheu expressamente o quesito da socioafetividade para designar filiação. Em seu artigo 1.593 dispõe que “o parentesco é natural ou civil, conforme resulte de consanguinidade ou de outra origem”.  A expressão de “outra origem” caracteriza-se como um conteúdo jurídico indeterminado, oferecendo assim ao intérprete o desafio de determinar a sua abrangência. Logo, tendo em vista o alinhamento da lei infraconstitucional a Lei Maior entende-se tal expressão como uma abrangência maior que a adoção em si, o qual se vislumbra o alcance aos filhos que são reconhecidos pela afetividade.

Nesse sentido, é verificado somente através de indução, que a ideia de afetividade está presente na expressão “outra origem” do artigo 1.593 do Código Civil. Cabendo assim, apenas ao magistrado, concretizar essa norma, com fundamento nos princípios constitucionais e nos valores sociais da sociedade, defendendo os interesses sociais e anseios de uma sociedade carente de justiça (LUCAS, 2010).

É possível também expandir a atuação do magistrado utilizando o artigo 1.596 no Código Civil, que transcreve a regra de igualdade entre os filhos, presentes na Constituição Federal em seu artigo 227. O artigo 1.605, também do mesmo diploma – que se destina a legitimar a posse do estado de filiação, através de presunções veementes resultantes de fatos reais – é uma via de acesso a efetivação jurídica da filiação socioafetiva. Simultaneamente ao que indica o artigo 1.614, que possibilita ao filho rejeitar esse reconhecimento, desde que não tenha havido ainda o registro público (ANDRADE, 2010, p. 75).

Entretanto, é com a ausência de expressa disposição sobre matéria de suma relevância como esta, que se abre precedente para que intérpretes e doutrinadores tratem tal matéria, com tamanha discricionariedade, a ponto de não garantir direitos inerentes às famílias brasileiras tratadas com tanto valor pela Carta Magna de 1988.

Há um vazio na lei infraconstitucional acerca da socioafetividade, razão pela qual, como já explicitado, há a necessidade de suprimento pelos aplicadores do Direito, na resolução de casos concretos, de acordo com os ditames constitucionais para assim, atingir o ideal máximo da dignidade humana, norteador de todo o ordenamento jurídico (LUCAS, 2010). O que, às vezes não são efetivados, afetando a segurança jurídica e tutela de direitos.

WELDER (2002, p. 157-163) aponta para a mesma celeuma afirmando que “não havendo o apontamento para a questão da filiação sociológica, deixa-se profunda lacuna no roto do discurso da igualdade, na medida em que não protegem a filiação por afeto”.

Frente ao vazio legislativo, o ilustre jurista Belmiro Pedro Welter (2002, p. 159) traz a seguinte afirmação e possível solução:

Mesmo com o aparente vazio legislativo, não poderá ser um óbice jurídico, porque essa suposta lacuna não afasta a integração do sistema do Direito. Tarefa difícil, mas necessária e imprescindível (...). É importante, na ausência da lei, que o julgador tenha coragem, inove e siga a Lei Maior, que é a Constituição de 88.

 

 

 

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Desta vista, conclusões evidentes se perfazem ao se vislumbrar que a família não é mais só aquela constituída pelo casamento, tendo direito todas as demais entidades familiares socialmente constituídas. A dinâmica das relações familiares vem acompanhando as mudanças impostas pelo modelo socioeconômico do mundo ocidental, o que deu azo às alterações previstas pela Carta Magna.

Às entidades familiares contemporâneas, a afetividade se torna o argumento jurídico mais importante ao intentar solucionar o reconhecimento de vínculos paterno-filiais.  Nesse sentido, conclui-se que mesmo a legislação infraconstitucional não positivando de forma expressa sobre a família socioafetiva, é possível a utilização dos artigos 1.593, 1.596, 1.605 e 1.614 do Código Civil para preencher vazios legislativos, a fim de resguardar a dignidade da pessoa humana e a possibilidade de um lar saudável e afetivo ao menor.

REFERÊNCIAS

 

 

ANDRADE, Renata Cristina Othon Lacerda de. Aplicabilidade do princípio da afetividade às relações paterno-filiais: a difícil escolha entre os laços de sangue e o afeto sem vínculos. In: ALBUQUERQUE, Fabíola Santos (coord.) Famílias no direito contemporâneo: estudos em homenagem a Paulo Luiz Netto Lôbo.Salvador – Bahia: JusPODIVM, 2010. Cap. III, p. 69-89.

DIAS, Maria Berenice. Manual de Direito das Famílias. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006.

JATOBÁ, Clever. Filiação Socioafetiva: os novos paradigmas de filiação. Disponível em: <http://www.arpenbrasil.org.br/index.php?option=com_content&task=view&id=2746&Itemid=83>. Acesso em: 10 mar. 2012.

LÔBO, Paulo Luiz Netto. Entidades familiares constitucionalizadas: para além do numerus clausulus. Revista Brasileira de Direito de Família, Porto Alegre, n. 12, Síntese, p. 40-55, jan-mar. 2002.

____________. Paternidade socioafetiva e o retrocesso da súmula 301-STJ. Jus Navigandi, Teresina, ano 10, n. 1036, mai. 2006. Disponível em: <htpp://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=8333>. Acessado em: 08. abr. 2012.

LUCAS, Bibiana de Borba. Filiação Socioafetiva.  Orientador: Jamil Handraus Hanna Bannura. Monografia (Graduação em Direito)- Curso de Direito. Faculdade de Direito da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Porto Alegre, 2010.

NUNES, Luiz Alberto Rizzato. O princípio constitucional da dignidade da pessoa humana. São Payulo: Saraiva, 2003.

PINHEIRO, Raphael Fernando. A questão da filiação socioafetiva frente a filiação biológica nos tribunais brasileiros.

 

WELTER, Belmiro Pedro. Igualdade entre as filiações biológica e socioafetiva. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002.



[1] Paper apresentado à disciplina de Direito de Família e Sucessões do curso de Direito da UNDB, ministrada pela professora orientadora Anna Valeria Cabral Marques.

** Graduandos do 6º período de Direito na Unidade de Ensino Superior Dom Bosco.