A dignidade humana como princípio norteador da permissão de aborto de feto anencefálico [1]

 

Breno Ravelli e Thales de Castro Torres[2]

Gabriel Ahid Costa[3]

SUMÁRIO: Resumo; Introdução; 1. Aborto; 1.1 Definição; 1.2 Início e término da proteção legal 2. Anencefalia; 2.1 Conceito; 2.2 Inviabilidade do feto; 3. Dignidade de pessoa humana; 3.1Do direito à vida; 3.2 Do direito à integridade física, psíquica e moral; 3.3 Do direito à liberdade; 4. Decisão do Supremo Tribunal Federal; Considerações Finais; Referências.

RESUMO

            Por se tratar de um tema que carece de um conhecimento prévio para que se esgote toda e qualquer dúvida a respeito da questão em tela, será feito, a partir de informações elucidativas, primeiramente, um breve estudo acerca do aborto. Da mesma forma, um rápido apanhando a respeito da anencefalia será feito. Além disso, tratar-se-á do princípio da dignidade humana. E, enfim, depois de todo este embasamento, será realizada a análise do mérito da questão polêmica que tange a possibilidade (ou não) do aborto de fetos anencefálicos. Para tais apontamentos serão trazidas opiniões dos mais variados autores, além da decisão do Supremo Tribunal Federal.

Palavras-chave: Aborto; anencefalia; dignidade da pessoa humana; arguição de descumprimento.

INTRODUÇÃO

O presente trabalho trata de um tema muito relevante e atual não só para discussões jurídicas, mas para toda a sociedade, uma vez que qualquer casal que pretenda ter filhos está sujeito a ter um feto anencéfalo. Desta forma, a gestante fica numa situação desconfortável, por óbvio, psicologicamente e ainda juridicamente, uma vez que, até antes do entendimento da Suprema Corte brasileira, o aborto de anencéfalos não era permitido.

Vale ressaltar que mesmo com o entendimento do Supremo Tribunal Federal favorável à permissão ao aborto de anencéfalos, existem muitos que se põe contrários à decisão, afirmando que ali, mesmo que o ser não possua total ou parcialmente o cérebro, há um coração pulsando, destarte havendo vida. “O direito à vida não é um direito fundamental?” é uma questão que alicerça muitas pessoas, principalmente àqueles que se baseiam por cultura e religião para tomada de opiniões. Desta forma, é de fundamental importância que seja feita uma elucidação do tema e mostrar o porquê de o Brasil ter dado um passo para atualizar-se quanto ao tema aborto.

Portanto, é de suma relevância fazer uma análise do aborto quando há comprovação de anencefalia no feto, verificar se tal ato fere a dignidade humana defendida na Carta Magna que rege em território tupiniquim, o posicionamento do Supremo Tribunal sobre tal assunto, verificar pontos contras e a favor do aborto, se essa ação caracteriza um crime previsto no código penal, se a decisão do Supremo foi acertada etc..

  1. 1.      ABORTO

1.1 Definição

O Código Penal brasileiro não foi claro para dar uma definição de aborto, ficando a cargo, portanto, dos doutrinadores suprir a falha do legislador. Segundo o artigo 124, dispositivo o qual tipifica o aborto, tem-se: “Provocar aborto em si mesma ou consentir que outrem lho provoque”. Ou seja, encontra-se a expressão “provocar aborto”, sem que seja dado, de fato, uma definição plausível para tal crime.

Na contribuição da resolução do problema, Fernando Capez afirma que aborto é "a interrupção da gravidez, com a conseqüente destruição do produto. Consiste na eliminação da vida intra-uterina. Não faz parte do conceito de aborto a posterior expulsão do feto, pois pode ocorrer que o embrião seja dissolvido e depois reabsorvido pelo organismo materno em virtude de um processo de autólise; ou então pode suceder que ele sofra processo de mumificação ou maceração, de modo que continue no útero materno" (2008, p.119).

Definição semelhante é dada por Frederico Marques, pois segundo este “para o Direito Penal e do ponto de vista médico-legal, o aborto é a interrupção voluntária da gravidez, com a morte do produto da concepção” (1999, p.183). Há, destarte, um consenso de que o aborto é a interrupção da gestação, havendo a morte do feto.

Outro ponto que merece lembrança é o da manutenção ou não do aborto como crime. Hodiernamente, no Brasil, por ser considerado delito, não há dúvidas que qualquer mulher que deseja abortar irá procurar clínicas clandestinas para a realização do procedimento. Entretanto, é de conhecimento geral que, em concomitante com o feto (por óbvio), a gestante também corre risco de morte. Esse fato é um argumento forte para os que defendem a descriminalização do aborto.

Entretanto, há quem defenda a continuidade da tipificação do aborto. Advoga deste lado todos aqueles que zelam pela vida, pois, segundo eles, como bem assevera Rogério Greco “a vida, independente do seu tempo, deve ser protegida. Qual a diferença entre causar a morte de um ser que possui apenas 10 dias de vida, mesmo que no útero materno, e matar outro que já conta com 10 anos de idade? Nenhuma, pois vida é vida, não importando a quantidade de tempo.” (2013, p. 229).

1.2  Início e término da proteção legal

Rogério Greco afirma que “a vida tem início a partir da concepção ou fecundação, isto é, desde o momento em que o óvulo feminino é fecundado pelo espermatozóide masculino. Contudo, para fins de proteção por intermédio da lei penal, a vida só terá relevância após a nidação, que diz respeito à implantação do óvulo já fecundado no útero materno, o que ocorre 14 (quatorze) dias após a fecundação.” (2013, p.230). Portanto, segundo o autor, apenas a partir da nidação é que pode começar a se falar em aborto.

Já o término do amparo legal se dá com o início do parto. Porém, há uma questão relevante a ser levantada: e se o crime começa a ser praticado, porém o feto venha a nascer e logo em seguida morrer. Há aborto? Capez responde positivamente ao asseverar que "embora o resultado morte tenha se produzido após o nascimento, a agressão foi dirigida contra a vida humana intra-uterina, com violação desse bem jurídico.” (2008, p. 124).

  1. 2.      ANENCEFALIA

2.1 Conceito

A anencefalia, pela etimologia da palavra, é uma doença caracterizada pela ausência dos tecidos encefálicos. Gisleno Feitosa profere um conceito médico para a anencefalia. Segundo ele, “consiste na ausência parcial ou completa da abobada craniana, bem como da ausência dos tecidos superiores com diversos graus de má formação e destruição dos rudimentos cerebrais. Em suma, anencefalia significa ‘sem encéfalo’, sendo encéfalo o conjunto de órgãos do sistema nervoso central, contidos na caixa craniana” (2006, p. 18).

2.2  Inviabilidade do feto

Pela simples definição que traz a ideia que é um feto sem o cérebro, por óbvio, é completamente impossível a sobrevivência desse anencefálico por um tempo ao menos razoável. Como esclarece o Conselho Regional de Medicina da Bahia:

Partimos da única certeza moral comum a todos nós: a do momento da morte. Um feto com anencefalia é um feto morto, ou potencialmente morto momentos após o parto. O feto não resiste mais do que minutos ou horas, assim como não há qualquer possibilidade de tratamento ou reversão do quadro. (2004, p. 32).

Vale ressaltar ainda que é inviável, com a medicina atual, uma alteração nessa certeza dada acima. Ou seja, nada pode ser feito para melhorar o quadro de um feto anencéfalo. Se o mesmo não for vítima de aborto, certamente morrerá horas após sair de dentro da sua mãe.

Há, entretanto, quem defenda que o aborto de anencéfalos seria um menosprezo não só com o feto vítima, mas para com outras crianças. Segundo estes defensores, os órgãos e tecidos do anencefálico poderiam ser doados para outro que precisasse. Conforme advoga Wilson Luiz Barth:

A morte cerebral é sinal indicativo de morte humana, mas no caso do bebê, não. A criança com anencefalia não está morta, pois o tronco cerebral está presente nos fetos com anencefalia e permite, em alguns casos, uma sobrevivência de alguns dias, fora do útero materno. Além disto, as tentativas de declarar morta uma criança com anencefalia representa mais um passo na progressiva aceitação de algo menos que a morte legal para o objetivo de angariar órgãos transplantáveis. (2011)

  1. 3.      DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA

Segundo Ingo Sarlet, dignidade da pessoa humana é uma “qualidade intrínseca e distintiva de cada ser humano que o faz merecedor do mesmo respeito e consideração por parte do Estado e da comunidade, implicando, neste sentido, um complexo de direitos e deveres fundamentais que assegurem a pessoa tanto contra todo e qualquer ato de cunho degradante e desumano, como venham a lhe garantir as condições existentes mínimas para uma vida saudável, além de propiciar e promover sua participação ativa e co-responsável nos destinos da própria existência e da vida em comunhão com os demais seres humanos” (2010, p. 60).

Percebe-se com a completa definição de Sarlet que não é a toa que o princípio mencionado está no artigo 1º da Constituição Federal brasileira. De fato, é um dos direitos fundamentais basilares de todo o ordenamento, é partir dele que é assegurado a todos os direitos de praticar suas atividades básicas, além de ser um fator primordial em qualquer relação jurídica. Como arremata José Afonso da Silva:

Dignidade da pessoa humana é um valor supremo que atrai o conteúdo de todos os direitos fundamentais do homem, desde o direito à vida. (...) daí decorre que a ordem econômica há de ter por fim assegurar a todos a existência digna (art. 170), a ordem social visará à realização da justiça social (art. 193), a educação, o desenvolvimento da pessoa e seu preparo para o exercício da cidadania (art. 205) etc, ao como meros enunciados formais, mas como indicadores do conteúdo eficaz da dignidade da pessoa humana. (2001, p. 109)  

            3.1 Do direito à vida

Segundo Carmem Lúcia, ministra do Supremo Tribunal Federal, o direito a vida não significa apenas o direito a viver, mas um direito a vida com qualidade, com o mínimo de dignidade. Nas palavras da ministra, “a vida com justiça é que é o objeto do direito. E a vida é justa quando garantida a dignidade da experiência humana. Vida com fome não é justa nem digna. Vida com dor, também não, seja qualquer a espécie de dor que acometa o homem. A vida tocada pelo medo e pela angústia é experiência malsã, mais ainda se o desequilíbrio vem de fora” (1998, p. 49).

Com esse entendimento lecionado por Carmem Lúcia, começa a se desenhar o paper em baila. Sabe-se que o direito a vida, certamente, é o princípio mais importante dentre os que se encontram no ordenamento brasileiro. E aqui começa o embate a respeito dos fetos anencéfalos. Há quem parta da concepção de morte dada pelo sistema de leis canarinho e diga que fetos anencéfalos nem mesmo possuem vida, configuram natimortos e, portanto, nem há no que se falar em direito a vida.

Entretanto, há quem advogue, com um ideal mais cultural/religioso, que ali há vida e por isso deve ser respeitado o direito, uma vez que a proteção à vida inicia-se a partir do momento da concepção. Contudo, Daniel Sarmento assevera que essa proteção ao direito à vida é relativizada em certos casos. Segundo ele, se for colocada numa balança e for feita uma ponderação entre a vida intra-uterina e a extra-uterina, esta última deve prevalecer, pois os direitos fundamentais da gestante se sobrepõem.

Sarmento conclui e afirma que “(...) o uso da cláusula “em geral” evidencia que a proteção à vida intra-uterina deve ser concebida como um princípio e não como uma regra. Em outras palavras, e empregando a conhecida fórmula de Robert Alexy, a proteção ao nascituro constitui um “mandado de otimização” em favor de um interesse constitucionalmente relevante - a vida embrionária - sujeito, contudo, a ponderações com outros princípios constitucionais, e que pode ceder diante deles em determinadas circunstâncias” (2007,  p.79).  

Ainda neste prisma é interessante aprofundar um pouco mais da ideia supramencionada que diz respeito aos direitos da gestante de feto anencefálico. Numa ótica médica, acrescentam Débora Diniz e Fabiana Paranhos:

Uma gestação de feto com anencefalia acarreta riscos de morte à mulher grávida. Sem dúvida, e sobre isso há alguns dados levantados que são muito interessantes. Em primeiro lugar, há pelo menos 50% de possibilidade de polidrâmnio, ou seja, excesso de líquido amniótico que causa maior distensão do útero, possibilidade de atonia no pós-parto, hemorragia e, no esvaziamento do excesso de líquido, a possibilidade de descolamento prematuro da placenta, que é um acidente obstétrico de relativa gravidade. Além disso, os fetos anencéfalos, por não terem o pólo cefálico, podem indicar a expulsão antes da dilatação completa do colo do útero e ter o que nós chamamos de distócia do ombro, porque nesses fetos, com freqüência, o ombro é grande ou maior que a média e pode haver um acidente obstetrício na expulsão no parto do ombro, o que pode acarretar dificuldades muito grande no ponto de vista obstétrico. Assim sendo, há inúmeras complicações em uma gestação cujo resultado é um feto sem nenhuma perspectiva de sobrevida. A distorcia do ombro acontece em 5% dos casos, o excesso de líquido em 50% dos casos e a átona do útero em 10% a 15% dos casos. (2004, p.27)

                3.2 Do direito à integridade física, moral e psíquica

Percebe-se, portanto, com o elucidado acima, um grande risco da não interrupção da gravidez afetar também a mãe. O ministro Joaquim Barbosa é mais um a se preocupar com o sofrimento da gestante. Segundo ele, além do risco físico citado por Débora Diniz e Fabiana Paranhos, seria uma tortura psicologicamente caso obrigasse a mãe ter aquele filho inviável a viver um tempo ao menos razoável.

O ministro elucida em outras palavras que “não se pode impor à gestante o insuportável fardo de, ao longo de meses, prosseguir na gravidez já fadada ao insucesso. A morte do feto, logo após o parto, é inquestionável. Logo, infelizmente nada se pode fazer para salvar o ser em formação. Assim, nossa preocupação deve ser para com o casal, em especial com a mãe, que padece de sérios problemas de ordem emocional ante o difícil momento porque passa.” (2004). Evidentemente, obrigar a mãe a carregar consigo um filho por nove meses que irá morrer com poucas horas após o parto seria uma tortura com proporções inimagináveis.

Todavia, como fora falado, há religiosos que defendem a ideia que se o anencéfalo não vai sobreviver, a “missão atribuída por Deus” a ele foi de salvar outras crianças a partir da doação de órgãos. Essa concepção pode ser ainda mais desumana para a gestante. A mãe que irá gerar um feto apenas para que seja utilizado seus órgãos certamente seria torturada psicologicamente, não só no durante a gestação, mas por toda a vida. Isso em uma hipótese, pode ser também, apesar de estranho, que a mãe deseje passar nove meses como uma espécie de incubadora e gere o anencéfalo apenas com funções humanitárias, ou seja, para doar seus tecidos e órgãos.

3.3   Do direito à liberdade

No Direito Constitucional, ao estudar os direitos fundamentais, percebe-se que os direitos de liberdade, em regra, possuem facetas preponderantemente negativa, ou seja, enquanto o indivíduo age, o Estado tem obrigação de não impedir, de se abster. Desta forma, a liberdade, em sentido amplo, caracteriza-se por ser a discricionariedade que o indivíduo tem de tomar decisões relacionadas ao cotidiano.

Vale ressaltar que no paper em tela, não se discute a legalização do aborto. Está se tratando do caso específico que é o relacionado aos fetos anencéfalos. E, por tudo que já fora mencionado a respeito destes seres não possuidores da completude cerebral, a mulher deve ter liberdade e escolher se quer ou não ter aquele filho, pois esse poder de escolha não é caracterizado como aborto.

  1. 4.      DECISÃO DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL

Em 2004 foi ajuizada pela Confederação Nacional dos Trabalhadores na Saúde, uma arguição de descumprimento de preceito fundamental (ADPF 54). Na petição inicial, Luis Roberto Barroso, representando a Confederação dos Trabalhadores na Saúde, pediu a descriminalização do aborto em caso de gravidez de anencéfalo, exatamente respaldado na dignidade humana da mãe. Passados alguns anos, a ADPF foi julgada e, por 8 votos a 2, o Supremo Tribunal Federal decidiu favorável ao pedido de Barroso. Vale ressaltar que a decisão tem “eficácia contra todos e efeito vinculante relativamente aos demais órgãos do Poder Público”, conforme a lei que regula as ADPF.

O ministro relator foi Marco Aurélio. Ele defendeu que na ADPF 54 não se discute a descriminalização do aborto, pois “aborto é crime contra a vida. Tutela-se a vida potencial. No caso do anencéfalo, repito, não existe vida possível. (...) O anencéfalo jamais se tornará uma pessoa. Em síntese, não se cuida de vida em potencial, mas de morte segura”. Portanto, de acordo com o relator, ao contrário do que defendem religiosos (principalmente), não nem que se falar em aborto, pois não há vida, o feto é um natimorto.

Acrescentado a isso, o relator também pôs a ideia que do outro lado ainda tem os direitos da mulher gestante. Pois, segundo ele: “A incolumidade física do feto anencéfalo, que, se sobreviver ao parto, o será por poucas horas ou dias, não pode ser preservada a qualquer custo, em detrimento dos direitos básicos da mulher”. Destarte, Marco Aurélio afirma que se for feita uma ponderação dos direitos fundamentais do feto e da mãe, os desta devem prevalecer, uma vez que         a privacidade, a autonomia e a dignidade humana não podem ser feridos, pois colocariam a mulher em um tratamento desumano, assemelhado à tortura. E arremata o ministro relator em seu voto:

A permanência de feto anômalo no útero da mãe mostrar-se-ia potencialmente perigosa, podendo gerar danos à saúde e à vida da gestante. Consoante o sustentado, impor à mulher o dever de carregar por nove meses um feto que sabe, com plenitude de certeza, não sobreviverá, causa à gestante dor, angústia e frustração, resultando em violência às vertentes da dignidade humana – a física, a moral e a psicológica - e em cerceio à liberdade e autonomia da vontade, além de colocar em risco a saúde, tal como proclamada pela Organização Mundial da Saúde – o completo bem-estar físico, mental e social e não apenas a ausência de doença. (ADPF 54, p.05)

O ministro Ayres Britto teve a mesma posição do relator. Assim como Marco Aurélio, Ayres afirmou que “o feto anencéfalo nem é um doente mental, por que não tem a mente completa, não tem mente, não tem cérebro. A antecipação de parto terapêutico desse feto não configura aborto para fins de punição. Dar à luz é dar a vida, e não a morte”. Desta maneira, o ministro coadunou com o pensamento que o anencefálico nem vida possui.

Fugindo um pouco deste raciocínio está Gilmar Mendes. Segundo o ministro, há vida e até a proteção no Direito Civil. Entretanto, advoga que os direitos da mulher gestante não podem ser invadidos pela completa certeza que aquele feto morrerá poucas horas após o parto. Assevera Gilmar que “não é razoável que se imponha á mulher tamanho ônus à falta de um modelo adequado explicitamente previsto em lei”. Acrescentado a isso, o referente ministro afirma que o aborto de anencéfalos deve caracterizar uma espécie de aborto permitido pelo Código Penal, juntamente com o aborto necessário e o resultante de estupro.

Seguiram o voto do relator, além dos já citados, Rosa Weber, Joaquim Barbosa, Luiz Fux e Carmem Lúcia. Todos respaldados, principalmente, no princípio da dignidade da pessoa humana. Que seria atingido se a mulher gestante fosse forçada a ficar nove meses com um anencéfalo no seu ventre, tendo a certeza que este não sobreviveria por muitas horas.

Cezar Peluso e Ricardo Lewandowski se puseram contrários ao voto do ministro relator. Segundo Peluso, então presidente do Supremo, “a vida não é conceito artificial criado pela ciência jurídica para efeitos práticos”. Além disso, ele afirmou que o sofrimento estaria ligado à própria existência humana, ou seja, considera que a mãe deva sofrer todas as possíveis consequências da gestação do feto anencefálico, já que a tortura é inerente a vida humana. Data venia, um devaneio do presidente do “guardião da Constituição”.

Já Lewandowski, pauta sua defesa partindo de outra ótica. Parte, basicamente, do princípio da divisão dos poderes. Segundo ele, o Poder Judiciário estaria usurpando a atividade legiferante do Legislativo. Segundo ele, o indeferimento da ADPF54 houve por não poder o STF “criar uma nova norma, usurpando a competência do Congresso”. O que, data máxima venia, parece ser um tanto quanto equivocado. Uma vez que as arguições autônomas são fruto de uma ação típica do controle concentrado-abstrato proposta diretamente perante o Supremo Tribunal Federal.

 

 

 

 

 

 

 

 

CONCLUSÃO

À luz do exposto, percebe-se que a questão, de fato, requer um estudo aprofundado por ser alvo de divergências não só doutrinária, mas também no que tange a sociedade como um todo. Todavia, não poderia ser diferente em se tratando de direitos fundamentais. Sempre será necessária uma ponderação dos princípios, porém, muito dificilmente, haverá um consenso girando em torno de apenas uma posição.

Como foi visto e até alegado pelo ministro Ricardo Lewandowski, o Judiciário precisou agir para suprir a falta de atuação do Legislativo quanto ao tema de aborto de anencéfalos. Pela arguição de descumprimento de preceito fundamental levantada por, hoje ministro do Supremo Tribunal Federal, Luis Roberto Barroso, certamente fora suprido uma falha no ordenamento jurídico vigente, o que deixa claro que o Direito não acompanha a mutação na sociedade.

Vale ressaltar, porém, que com o pedido dado como procedente por maioria dos votantes do Supremo Tribunal, a dignidade da pessoa humana também sai vencedora. É inadmissível que um ponto, alvo de tanta insegurança jurídica, causasse tanto tormento para as mulheres gestantes de feto anencefálicos. Parecia que a mulher era culpada de não ter gerado um feto saudável e, portanto, deveria pagar por isso, sofrendo as consequências físicas, psíquicas e morais provenientes da mencionada gestação.

Com a devida vênia, o que foi proferido por Cezar Peluso, então presidente do Supremo na época, beira o ridículo. Como pode o ministro afirmar que esse sofrimento, que fere a dignidade humana, da mulher grávida é próprio da vida humana? Pela simples aplicação do método da proporcionalidade de Robert Alexy, a geração do feto anencéfalo não seria nem adequado e muito menos necessário. Destarte, é inegável que a dignidade da pessoa humana é um argumento mais que suficiente para permitir o aborto de feto anencefálico.

 

 

 

REFERÊNCIAL BIBLIOGRÁFICO

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SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo. 19. ed. rev. e atual. São Paulo: Malheiros, 2001.



[1]  Paper apresentado à disciplina Direito Penal Especial I–Unidade de Ensino Superior Dom Bosco – UNDB;

[2]  Alunos do 4º período noturno, da UNDB;

[3]  Professor, orientador.