A Consciência do juiz na tomada de decisões e o problema da autocensura

Carlos Pedro Mondlane
Juiz de Direito


Sumário:
1. Introdução. 2. Ponto de partida: O Estado de Direito Democrático. 3. A função jurisdicional. 4. O juiz: seu perfil e as garantias de exercício da função. 4.1. Perfil humano. 4.2 Perfil judiciário. 4.3. Garantias do exercício da função judicial. 4.4 A completude do juiz 5. A Consciência do juiz na tomada de decisões. 6. O Juiz perante a Injustiça da Lei e da Causa. 7. Pressões externas. 8. Conclusão. 9. Bibliografia


1. Introdução
Sobre o tema em apreço, a questão que se pode colocar é apurar se o juiz tem consciência? Ou por outra, terá ele direito a uma consciência? Num sistema de legalidade estrita como o nosso, a sua obrigação profissional não se limita a mera aplicação da letra da lei sem questionar a sua “legitimidade moral”?

O poder judicial foi concebido para funcionar num ambiente estável e previsível. Na célebre prescrição de Montesquieu, enquanto o Parlamento se encarregaria de elaborar as relações necessárias que se extraem da natureza das coisas, o Executivo se ocuparia de aplicá-las sem controvérsia e o Judicial só seria chamado a fazê-las incidir no conflito.

Ocorre que a lei já não é relação necessária extraída da natureza das coisas. Passou a ser resposta conjuntural a problemas casuísticos muito localizados. O Parlamento passou a ser a casa ocupada por representantes desses interesses específicos. A complexidade social impede consensos sobre muitos temas, sendo que a maior parte das questões em discussão não mostram particular pertinência.

Nos temas de interesse localizado, a lei passa a ser a expressão do compromisso possível entre as várias tendências em oposição e tal solução de compromisso é necessariamente fluida e inevitavelmente ambígua. Quando tem de ser implementada, muitas vezes é o julgador que a concretiza passando ele a ocupar um espaço político nunca antes protagonizado.
 
Formado para ser um espectador passivo da realidade, atento a um comando normativo genérico e aplicável a todos os casos análogos, o juiz não tem prática no protagonismo político. De repente vê-se envolvido na politização da justiça ou na jurisdicionalização da política, práticas detectadas há algumas décadas em certos Estados.

Grupos de interesses políticos, económicos, socio-culturais estendem tentáculos que visam atingir a actuação jurisdicional. Pretendem condicionar a decisão do juiz tornando venal a sua consciência pelas contrapartidas oferecidas decorrentes do prévio conhecimento das suas limitações particulares .

Até o chamado quarto-poder. Muitas vezes escudados na garantia constitucional de liberdade de imprensa, além de informar, os meios de comunicação social realizam julgamentos paralelos, provocando na opinião pública um conjunto de sentimentos, por vezes distantes de uma decisão justa e até afrontando as decisões do juiz.
Mais. Os juízes são subordinados a um órgão de gestão e disciplina das respectivas carreiras . Nesta medida são sujeitos a inspecções periódicas e a outros mecanismos de controlo e avaliação. O relevo consequente é o receio de inovar na tomada de decisões em matérias de alguma controvérsia, de forma que, quando decidem, decidem menos com a própria consciência e mais com a consciência do inspector, ou para agradar o órgão que os vai avaliar. Em causa, claro está, o receio de má avaliação e comprometimento das carreiras. E que dizer da sua capacidade reactora, nomeadamente diante de uma lei aos seus olhos injusta?
Disso resulta o juiz ocupar o centro mediático e do debate tanto corporativo quanto parlamentar.

A cada decisão contrária a um interesse localizado, levantam-se vozes a reclamar um controlo externo para o judiciário, controlo esse que além de fiscalizar administrativamente o poder, fosse capaz de levar o juiz a decidir de acordo com os interesses dos reais detentores do real comando. E o juiz, produto da faculdade de Direito à moda antiga, dogmática e discursiva, não tem condições de enfrentar com paridade de armas o conflito de interesses a cuja solução é chamado. A sua colocação entre as esferas do poder é dramática.

Outrossim, temáticas como a pena de morte, discriminação racial e apartheid, eutanásia, aborto e direito à livre disposição do copo são cada vez mais recorrentes, trespassando qualquer um com a certeza de que a lei é injuntiva no tocante às convicções pessoais de cada um. É lancinante a atitude do juiz em relação às causas que considera injustas, nomeadamente por injustas serem as leis que as acautelam. Tais questões surgem não só pelo monopólio estadual da função de julgar por vinculação à constituição e a lei, mas ainda à consciência e inevitável por força da proibição do non liquet.

Assim é que o medo, o receio, as pressões e outras condicionantes exógenas ao processo só podem ser superadas por um imperativo categórico (de cariz kantiano) que determine o juiz a agir de acordo com a sua ciência e consciência.

2. Ponto de partida: O Estado de Direito Democrático
Nos princípios fundamentais consagrados na nossa Lei Fundamental, o princípio do Estado de direito democrático ocupa um lugar de enorme relevo. Tanto assim é que o legislador constitucional considera “o reforço da democracia, da liberdade, da estabilidade social e da harmonia social e individual” como uma das tarefas fundamentais do Estado (art. 11.º, alínea f) da CRM).
O princípio do Estado de direito democrático é acolhido e definido no art. 3.º da Constituição, que proclama que a “República de Moçambique é um Estado de Direito, baseado no pluralismo de expressão, na organização política democrática, no respeito e garantia dos direitos e liberdades fundamentais do Homem”.
Da conjugação dos artigos 1º, 11º e 134.º da CRM sobressai o entendimento de que a República de Moçambique é “um Estado independente, soberano, democrático e de justiça social”, assente na separação e interdependência de poderes, visando a realização da democracia económica, social e cultural e o aprofundamento da democracia participativa.
Como referem Jorge Miranda e Rui Medeiros, “hoje uma democracia representativa e pluralista não pode deixar de ser um Estado de Direito – por imperativo de racionalidade ou funcionalidade jurídica e de respeito dos direitos das pessoas. (…) Há uma interacção dos princípios substantivos da soberania do povo e dos direitos fundamentais e a mediatização dos princípios adjectivos da constitucionalidade e legalidade” .
Mas, sendo inegável a ligação constitucional entre o princípio democrático e o princípio do Estado de direito:
- só há Estado de direito quando democraticamente legitimado;
- só existe Estado democrático se a sua organização e funcionamento assentarem no primado do direito e não na prepotência e na arbitrariedade.
O princípio fundamental do Estado de direito democrático ganha expressão através de um conjunto de subprincípios concretizadores, todos eles com dignidade constitucional: princípio do Estado constitucional; independência dos tribunais e o acesso à justiça; princípio da legalidade e da administração; princípio da protecção da confiança; princípio da segurança jurídica; garantias processuais e procedimentais .
Os tribunais estão na primeira linha da defesa destes princípios concretizadores. Basta ver o que na Constituição se estabelece em matéria de princípios gerais que regem a actividade dos tribunais (arts. 212º e seguintes): “Os tribunais têm como objectivo garantir e reforçar a legalidade como factor da estabilidade jurídica, garantir o respeito pelas leis, assegurar os direitos e liberdades dos cidadãos, assim como os interesses jurídicos dos diferentes órgãos e entidades com existência legal” (artigo 212º, n.º 1); “Os tribunais penalizam as violações da legalidade e decidem pleitos de acordo com o estabelecido na lei” (artigo 212º, n.º 2); “Os tribunais educam os cidadãos e a administração pública no cumprimento voluntário e consciente das leis, estabelecendo uma justa e harmoniosa convivência social” (artigo 213.º); “Nos feitos submetidos a julgamento os tribunais não podem aplicar leis ou princípios que ofendam a Constituição” (artigo 214.º); “No exercício das suas funções, os juízes são independentes e apenas devem obediência à lei” (artigo 217.º, n.º 1); “Os juízes têm igualmente as garantias de imparcialidade e irresponsabilidade” (artigo 217.º, n.º 2); “Os juízes são inamovíveis, não podendo ser transferidos, suspensos, aposentados ou demitidos, senão nos casos previstos na lei” (artigo 217.º, n.º 3); “As decisões dos tribunais são de cumprimento obrigatório para todos os cidadãos e demais pessoas jurídicas e prevalecem sobre as de outras autoridades” (artigo 215.º).
Deste modo, face ao nosso edifício constitucional, o juiz é erigido a guardião do princípio fundamental do Estado de direito democrático.

3. A função jurisdicional
De todas as funções, há uma que é essencial ao Poder Judicial: a função jurisdicional. José Norberto Carrilho define esta como ”a função de dirimir conflitos, resolver diferendos, solucionar disputas, punir as violações a legalidade.”    
 Esta função é acometida aos tribunais, desde logo os tribunais comuns, bem assim a todos os previstos no texto da Constituição.
 Competindo aos tribunais administrar a justiça em nome do povo, bem se vê que recai sobre os juízes esta dura tarefa, cada vez mais escrutinada e comentada.
 Mas, quem é o juiz? Que atributos se lhe devem assistir?

4. O juiz: seu perfil e as garantias de exercício da função
Concentrando a nossa atenção no juiz, podem ser evidenciados dois perfis da sua pessoa: o perfil humano e o perfil judiciário.
A necessidade de distinguir, que se coloca na origem da ciência, não deve induzir em erro. A pessoa é una e única e é esta unidade que vai definir o seu perfil psicológico, a forma de interacção com os utentes dos seus serviços e o seu estar na comunidade. Desta forma podemos considerar que a humanidade do juiz e o seu papel profissional actuam juntos, contemporânea e sinergicamente. É sem dúvida errado pensar que se pode formar primeiro um homem e depois introduzi-lo num papel e numa função como unidades separadas, descuidando, a partir deste último, de qualquer crescimento humano e pessoal, como se se tratasse de algo alheio.
O erro reside em não reconhecer as interacções e as integrações que se verificam na unidade da pessoa que dinamicamente evolui e progride. A formação humana e profissional devem actuar conjuntamente na constituição e desenvolvimento da pessoa e personalidade do juiz.

4.1. Perfil humano
O Estatuto dos Magistrados Judiciais (EMJ), aprovado pela Lei n.º 7/2009, de 11 de Março, mostra-se estranhamente destituído de exigências expressas do perfil humano para o ingresso na carreira de juiz. Para além dos requisitos de nacionalidade, idade, formação académica, sujeição a curso de formação específica e outros gerais descritos no seu artigo 8.º, a leitura do articulado apenas permite intuir que os mesmos pressupõem que para juiz o perfil exigido é o da maturidade pessoal .
Assim é que os requisitos para a nomeação do juiz parecem justamente destinados a defender e a garantir a existência desta maturidade e devem ser aplicados de modo rigoroso, penetrando o espírito da norma. Basta pensar na idade mínima fixada em 25 anos. Não é por acaso que se fala precisamente na linguagem comum em “idade madura”.
Mas, em que consiste a maturidade?
Não é de todo o modo fácil dizer em que consiste esta maturidade humana e pessoal, necessária e suficiente, num juiz.
Talvez não nos afastemos demasiado da verdade se se identifica a maturidade com a capacidade do juiz de se julgar a si mesmo. Neste propósito, num estudo psicológico o juiz deve ter habilidade de se julgar a si mesmo e concluir que para julgar os outros, deverá renunciar a má vida. Isto significa obter a serenidade de juízo, que é como o efeito principal da maturidade. Ela consiste na capacidade de agir e julgar destacando-se dos próprios e pessoais pontos de vista e opiniões, de julgar abstraindo-se de quaisquer preconceitos, quer gerais quer particulares, referentes ao caso; de saber abstrair-se de considerações humanas, políticas ou sociais; de saber aceitar também a opinião de outrem, mesmo se contrária a sua (mostrando, por exemplo, indiferença a uma sentença de apelação que reformule a própria); de saber enfrentar e confrontar as razões dos outros colegas sem prevenção ou qualquer tipo de reserva; saber aceitar, ao nível de voto de recurso, a posição da maioria; e, essencialmente, saber aceitar que não é o único protagonista do processo, no qual se impõe o respeito pelos diferentes papeis.
Para a jornada que lhe é confiada, é impreterível que o juiz seja dotado de um elevado nível ético e moral nas suas práticas quotidianas, característica de personalidade que não é o diploma universitário que a atribui, mas a magistratura exige. Daí a importância da deontologia profissional – o quid que diferencia um juiz de um licenciado em direito, enquanto sujeição daquele não só a elevados padrões de competência técnica, mas igualmente a valores éticos e morais que garantam a confiança social da profissão.
Mas faz parte da maturidade pessoal também a capacidade de julgar o próprio tempo. Com efeito, isto não é simplesmente reconduzível ao conhecimento de factos e acontecimentos. Trata-se de conhecer a cultura do próprio tempo. De facto o juiz maduro não deve se colocar numa redoma fechado em si mesmo. Não pode deixar de conhecer o estilo de vida dos homens de hoje, as suas escalas de valores, o seu modo de raciocinar, as suas reacções imediatas, irreflectidas, os acontecimentos da vida, etc.
O juiz deve compenetrar-se, em certa medida, nas formas de vida. É preciso partilhar, sem criar distância de privilégios, ou diafragma de linguagem incompreensível, os hábitos comuns, que sejam humanos e honestos.

4.2 Perfil judiciário
O juiz é um técnico do direito. Como tal, o que se lhe exige é que domine os princípios e institutos jurídicos fundamentais, que interprete e aplique adequadamente as normas legais pertinentes, que conheça e acompanhe a evolução das correntes doutrinais e jurisprudenciais. Trata-se de um dever do juiz por respeito a si próprio, cuja honestidade intelectual deve ser irrepreensível, mas também por respeito para com os cidadãos, que devem poder confiar na correcta aplicação da lei por parte dos depositários da autoridade de julgar
Actualmente, o sistema legislativo regula quase todas as matérias da sociedade, sendo impossível ao juiz conhecê-lo na sua totalidade. A lei não é apenas a lei nacional, mas ainda a lei comunitária e internacional. Assim, o conhecimento da lei pelo juiz só é possível se entendido em termos de especialização. O juiz não tem de conhecer toda a lei, mas tem de conhecer apenas a lei aplicável aos casos que julga. Consequentemente, a formação do juiz deve ser uma formação cada vez mais especializada. A formação do juiz deve ser o necessário reverso da sua responsabilidade de julgar. Se ao juiz incumbir julgar assuntos de complexidade, em matéria especializada, deve previamente ter formação especializada na correspondente área.
A formação adequada dos juízes deve visar, sempre, atingir a qualidade na administração da justiça e beneficiar os seus utentes. A formação não deve ser aferida pelo prisma do benefício pessoal do juiz. A formação adequada é aquela que diz respeito à área em que o juiz trabalha. Mas toda a formação em áreas conexas e que vise melhorar os conhecimentos do juiz no exercício da sua função, é formação adequada.
Os juízes devem ter livre acesso aos jornais oficiais, às bases de dados de jurisprudência nacional e comunitária e a bibliotecas públicas e deve haver um mínimo de acervo de livros nos respectivos tribunais, designadamente nas bibliotecas.
A formação deve ser dada não apenas no momento da selecção do juiz, como formação inicial, mas também através da formação permanente.
O juiz deve auto-formar-se, lendo e estudando a legislação que é publicada, relativa à área em que trabalha, a jurisprudência e a doutrina. Não podem os juízes estar tão assoberbados de trabalho, que não lhes seja possível despender qualquer tempo em formação.
A formação dos juízes deve ser uma formação de qualidade. Para tanto, devem os juízes cooperar e colaborar com as universidades e outros centros de formação visando a organização de actividades formativas, assim garantindo a qualidade da formação. As universidades, os institutos e centros de ensino dedicam-se à formação, procurando a excelência e a modernidade do conhecimento. Cooperando e colaborando com tais instituições, os juízes e o poder judicial – que tem por escopo julgar e não formar – podem ter acesso àquela excelência e modernidade.
A formação dos juízes é uma obrigação dos próprios juízes, enquanto poder judicial, que faz parte do Estado.
Mas os restantes poderes públicos tem a obrigação de proporcionar ao poder judicial os meios necessários para que os juízes possam organizar a sua formação. A isenção e a imparcialidade que se exige aos juízes não se coaduna com a possibilidade de estes angariarem patrocínios ou outras formas de financiamento através da sociedade civil, para levarem a cabo acções de formação. Assim, cabe aos poderes públicos do Estado financiar a formação dos juízes.

4.3. Garantias do exercício da função judicial
- Independência, imparcialidade e legalidade
Reza o artigo 10.º da Lei da Organização Judiciária (LOJ), aprovada pela Lei n.º 24/2007, de 20 de Agosto, que ”No exercício de funções judiciais, os juízes são independentes e imparciais e apenas devem obediência à Constituição e a lei” (n.º 1); “A independência dos juízes é assegurada pela existência de um órgão privativo de gestão e disciplina, pela inamovibilidade e pela não sujeição a quaisquer ordens ou instruções, salvo o dever de acatamento das decisões proferidas em via de recurso pelos tribunais superiores” (n.º 2).
A Judicatura tem assim uma legitimidade própria, decorrente de uma opção histórica e cultural assente, sobretudo, em critérios de independência e imparcialidade.
O juiz exerce a jurisdição com independência jurídica e política. Livre da submissão a qualquer dos poderes ou a qualquer entidade pública ou privada, profere suas decisões, formula e emite seus juízes obedecendo apenas às prescrições da lei e aos ditames de sua consciência.  
Na perspectiva de Orlando V. M. Afonso  "A independência dos juízes de qualquer outro poder é uma aquisição do moderno Estado de direito, conexa com a afirmação do princípio da estrita legalidade, com a natureza cognoscitiva da jurisdição e com a defesa dos direitos fundamentais da pessoa humana. E é necessária como garantia de imparcialidade e, em consequência, como garantia da igualdade dos cidadãos. A independência do poder judicial é, pois, garantia de uma justiça não subordinada a razões de Estado ou a interesses políticos e económicos contingentes".
Sem a independência interna e externa garantida pela Lei, a mera integridade pessoal do juiz não se revelaria suficiente para assegurar, nomeadamente, a imparcialidade da sua conduta, ficando a sua actuação condicionada - pelo menos potencialmente (o suficiente para se revelar danoso e inaceitável num Estado de Direito) - por factores heterogéneos.
Na vertente da independência interna, importa realçar a exigência de não sujeição dos juízes, na sua actividade jurisdicional, a ordens específicas ou a orientações genéricas de aplicação pontual ou permanente provenientes de magistrados judiciais de grau profissional igual ou superior, no quadro do exercício de funções de presidência administrativa de órgãos jurisdicionais. A única excepção resulta das decisões proferidas, por via de recurso, por tribunais superiores.
Para assegurar a sua independência e imparcialidade, também deverá existir um compromisso ético dos juízes, que afaste a sua participação em actividade subordinada a outros órgãos de soberania e qualquer ligação a organizações de carácter secreto ou que promovam qualquer forma de discriminação das pessoas. Porém, as meras garantias de independência não asseguram a integridade dos juízes, que é condicionada pelos factores endógenos ligados à dimensão ética e moral dos juízes, que importa assegurar. Essa noção implica, também, especiais preocupações ao nível das regras e dos procedimentos de formação (inicial, complementar e permanente) dos juízes.
De facto, cada dever desta natureza é um direito fundamental do juiz.
É, assim, um direito fundamental do juiz o de julgar com independência e imparcialidade. Nenhum juiz pode ser alheio a esta questão. Mais do que um dever, esta é uma questão essencial para o desenvolvimento profissional do juiz e para o desenvolvimento integrado da sociedade. O juiz não pode, no processo de apreciação da prova e decisão, em qualquer das jurisdições, correr o risco de perder a sua independência e imparcialidade. Sem a primeira a sua actividade é ineficaz e sem a segunda é estéril.
A liberdade e a independência podem ser, além do mais, consideradas ad modum unius a ulterior qualidade exigida ao juiz. De facto, a ele é pedido que julgue ex consciência sua e inutilmente nos podemos esforçar por limitar e reduzir a centralidade desta posição. Liberdade interior e independência exterior são assim duas premissas para o exercício e manifestação da sua consciência na hora de julgar. Por conseguinte, o juiz deve procurar a liberdade interior e a independência exterior, antes de tudo o mais. Favorece tal estado o seu hábito de discrição. Trata-se de discrição nas relações sociais e de outra sorte. Não pode objectivamente acontecer que um juiz, imerso nas numerosas relações de carácter económico, profissional, social, político, etc. possa manter-se distante e imparcial no momento em que é chamado a fazer justiça. Aquelas relações facilmente se tornarão, as vezes até inconscientemente, vínculos e influências que, indevidamente se acrescentarão ao único critério da consciência do juiz, ou constituirão para o juiz, um vínculo que, para dele se libertar, seria necessária uma força muito superior à que comummente é disponível.
Um sistema judiciário que abra mão dessas duas fundamentais garantias é um sistema morto, injusto e volátil.
Um sistema judicial que imponha limites a estas duas virtudes é totalitário, anti-democrático e perverso, deixando ao sabor do risco e da arbitrariedade aquela que é uma função essencial do Estado.
É também um direito do juiz julgar de acordo com a legalidade.
Num mundo de constante mudança, garantir uma Justiça de primeira instância amplamente garantida do ponto de vista da produção legislativa feita com critério e ponderação, garantir graus de jurisdição superiores e uma divisão clara de competências decisórias, é um direito fundamental da sociedade e do juiz que aprecia e julga os comportamentos do cidadão nessa mesma sociedade.
Não existe boa Judicatura à margem de uma boa panóplia legal que permita a clareza das decisões e garanta a verdade do julgamento.

4.4 A completude do juiz
A essência da função judicial é a combinação entre a integridade do juiz e a lei.
Apenas um juiz íntegro pode aplicar a lei correctamente. Entendendo-se aqui que a aplicação correcta da lei é aquela que comece na escolha da lei adequada ao caso concreto, passe pelo respeito dos cânones legais na ponderação da prova e acabe na subsunção que melhor sirva, neste contexto, as finalidades do processo, ou seja, a decisão justa do caso concreto. E isto não se consegue sem que estas tarefas fundamentais compitam a pessoas íntegras, a juízes íntegros.
O juiz deve pautar a sua actividade profissional por critérios de estrita exigência no que tange à integridade enquanto pessoa e enquanto jurista. Não há Justiça justa aplicada por quem não seja íntegro enquanto pessoa.
No seu desempenho profissional o juiz depende da credibilidade que merecem os seus juízos e censuras, os seus métodos de trabalho, a abordagem que faça das questões e dos confrontos entre os interesses em causa. 
Mas a conduta profissional do juiz não é só aquela que tenha no seu relacionamento com o mundo exterior.
De facto, a relação do juiz com o próprio processo é, mais das vezes, a transparência essencial à sua avaliação como magistrado e, ainda, como pessoa. A forma como despacha, como qualifica, como se eleva acima das disputas, são reveladores, ou não, da sua maior ou menor capacidade para estar nas funções.

5. A Consciência do juiz na tomada de decisões
É o artigo 4.º do EMJ que introduz o conceito de “consciência” do juiz na tomada de decisões. Segundo este dispositivo os juízes julgam apenas de acordo com a Constituição, a lei e a consciência. 
Mas, o que será “consciência”?
Dentre as definições do Dicionário da Língua Portuguesa da Porto Editora, por consciência temos que se trata de “atributo pelo qual o homem pode conhecer e julgar sua própria realidade”; bem como “faculdade de estabelecer julgamentos morais dos actos realizados”; ou ainda “senso de responsabilidade”.
Mia Couto escreve figurativamente que “cada homem é uma raça”, procurando mostrar que cada indivíduo encerra em si mesmo uma humanidade plena. Cada indivíduo é assim regido por princípios éticos e morais que lhe habilitam a distinguir no seu percurso de vida o “certo” do “errado”. Esta asseveração decorre da capacidade individual de fazer juízos de valor, primeiro sobre os próprios actos, depois sobre os dos outros.
 A consciência do homem não contempla apenas valores positivos. É nela também que se encontram seus preconceitos, traumas, crenças, etc. Podemos nos deparar com decisões preconceituosas envolvendo simpatias ou antipatias por certas causas ou sujeitos. Preconceitos em relação aos homossexuais. Inclinação pró ou contra aborto. Factores como a religião do intérprete também poderão servir de base para julgar pessoas.
Esta asserção serve perfeitamente para o juiz, até por força do imperativo legal.
Para o direito, consciência aparece como um conceito determinado e determinável. É determinado porque o seu conteúdo tem um âmbito definido, quer no que tange às regras sociais vigentes e educacionais propriamente ditas, quer no que tange a normas assentes e dispersas pelo ordenamento jurídico nacional e internacional. É determinável porque o seu conteúdo encontra fundamento no contexto humano, histórico, cultural e social em cada momento da sua efectiva avaliação.
A liberdade de consciência consiste assim na faculdade de escolher os próprios padrões de valoração ético-moral da conduta própria ou alheia.
Seja como for, a consciência do juiz não pode deixar, e hoje mais do que nunca, de ser encarada na dupla perspectiva – qualquer delas envolvendo também uma dupla valoração dinâmica -, quer na perspectiva do juiz enquanto tal, quer na perspectiva do juiz enquanto pessoa e cidadão, quer ainda das garantias em que assenta a sua função.
Há uma certa qualidade pessoal que deve ser cultivada por todo o juiz na qual se inculca a consciência do seu papel de guardião e implementador de mensagens normativas constitucionais, de intérprete de todo um corpo de normas legais imbuído de valores e que tem feição dirigente e de garante da Justiça.
Não quer tal desiderato exprimir que o juízo dado ex sua conscientia pelo juiz reduz à subjectividade o pronunciamento judicial. A consciência não é uma fonte autónoma e exclusiva de que o juiz se serve para decidir o que é bom e o que é mau. Está inscrito nela, de modo profundo, um princípio de obediência em relação a normas objectivas, que fundam e condicionam quaisquer decisões em atenção aos mandamentos e as proibições que estão na base do comportamento humano.
Quando se considerar necessário provar ulteriormente a objectividade requerida do juízo ex conscientia formulado pelo juiz, será necessário recordar todas as disposições e prescrições processuais nas quais se deduz a necessidade de manifestação e do confronto dos argumentos sobre os quais se baseia a certeza moral: a necessidade, sub poena nullitatis, da motivação da decisão (artigo 158.º do CPC), a necessidade de publicação da decisão, com vista ao direito de defesa em sede de recurso (artigo 259.º do CPC), etc. 
Ao pronunciar a decisão, o juiz não manifesta a própria vontade. O juiz manifesta simplesmente o seu juízo sobre a vontade do corpo legislativo num caso concreto. Por conseguinte, a sentença contém apenas a vontade ou a intenção da lei transferida concretamente pelo juiz.

5.1. Dicotomia: Direito e Justiça
Immanuel Kant concebe o Direito como o “conjunto das condições pelas quais o livre arbítrio de um pode harmonizar-se com o de outro segundo uma lei geral da liberdade”  .
Não obstante a ligação do Direito com o justo – definindo Justiça como a igual liberdade para todos -, “a questão de se saber aquilo que o direito pede e aquilo que a justiça exige permanece distinta”, observa John Rawls em Uma Teoria da Justiça . A problemática da lei injusta embrionariamente funda-se, pois, numa situação em que a Justiça e a Segurança, dois valores intrínsecos ao Direito, têm exigências diametralmente antagónicas.
A filosofia cristã pré-renascentista assentava no pressuposto que a lei humana derivava da lei natural. Com alguma acuidade surgiria, portanto, a questão da lei injusta, e qual a postura a adoptar perante ela. Na perspectiva de S. Tomás de Aquino, a lei injusta seria, de per si, uma corrupção da lei, e embora não obrigasse em consciência, a atitude a tomar seria de desobediência à lei se esta violasse um bem divino (bonum divinum), ou de acatamento da lei se a mesma violasse um bem meramente humano (bonum humanum).
Já hodiernamente, John Rawls explica o surgimento da injustiça como erros de uma maioria política, “se não por falta de conhecimentos e capacidade de julgamento, pelo menos como resultado de visões parciais e orientadas para o interesse próprio”  . O professor de Harvard aponta que a injustiça pode surgir por duas formas: as estruturas existentes afastarem-se dos padrões publicamente admitidos, que são mais ou menos justos; ou, tais estruturas estarem de acordo com a concepção de justiça da sociedade, mas esta concepção ser injusta.
Castanheira Neves define lei injusta como “toda a norma legal positiva que não realize ou não permita realizar concretamente a ideia de Direito” . Note-se que o conceito de justiça concerne não só à perspectiva económica, mas também à perspectiva humana constitucionalmente consagrada no nosso Estado de Direito. Ou seja, refere-se o ilustre professor às leis que porventura recusem a dignidade de personalidade moral a qualquer pessoa, grupo, classe ou raça, para os reduzirem a meros objectos de coacção política ou administrativa; portanto, autênticas perversões do poder legislativo, no sentido da crítica marxista ao Direito.
Em primeiro lugar, e no seguimento das posições doutrinais supra-expostas, urge, neste ponto, alertar para a plurivocidade do conceito de lei injusta que emergirá ao longo desta dissertação. Porquanto, configurará lei injusta não somente o sentido mais gravoso do conceito segundo o qual Castanheira Neves constrói a sua doutrina, e que, no fundo, se subsume a uma violação do Direito Natural. O conceito de lei injusta será necessariamente mais amplo, e abarcará ainda, não só as leis obsoletas ou caducas, mas igualmente situações de mera inconveniência duma solução positiva à luz da justiça.
Em segundo lugar, a injustiça a que nos referiremos é a injustiça substancial ou material, por contraposição à injustiça formal. No âmbito dos processos judiciais, muitas das vezes os tribunais atingem a justiça formal, não logrando, no entanto, alcançar a justiça substancial da questão.
Eis que nos surge a dúvida: poderão, em concreto, os juízes deter-se perante uma lei injusta?
Porquanto parecem sobrelevar duas possíveis abordagens jusfilosóficas, as disposições legais, quer de índole ordinária quer constitucional, mencionadas supra poderão deixar o intérprete confundido acerca de qual a teleologia inerente ao sistema: se o valor da justiça, se o positivismo legalista.

5.1.1 - Orientações Jusfilosóficas
a) - O Positivismo Legalista
A primeira das orientações parece seguir no sentido da consagração do adágio latino “dura lex sed lex”, como afirmação de uma máxima juspositivista. Enquanto corrente de pensamento, o Positivismo Jurídico funda-se numa concepção avalorativa do Direito, segundo a qual a validade das normas jurídicas afere-se por critérios de vigência (validade formal) e eficácia (validade social) . Consequentemente, a injustiça de uma lei não beliscará a sua validade e vinculatividade.
O expoente máximo do positivismo jurídico é Hans Kelsen, que na obra Teoria Pura do Direito, apresenta uma concepção de ciência jurídica segundo a qual o Direito celebraria um corte epistemológico relativamente à moral e a qualquer outra disciplina, visando torná-lo num saber objectivo e exacto. No que à justiça concerne, o mesmo filósofo é paradigmático ao afirmar que “A justiça não pode, portanto, ser identificada com o direito”, e que, “Como todas as virtudes, também a virtude da justiça é uma qualidade moral; e, nessa medida, a justiça pertence ao domínio da moral .”

b) - A Justiça como compromisso com o Direito Natural
Por outro lado, a segunda das possíveis orientações parece preconizar que o Direito não se resume à lei, i.e., que não se esgota numa aplicação tout court das normas legais, estando a ordem jurídica sob a postulação vinculante de três vertentes: Justiça, Bem Comum e Segurança . Na senda duma concepção valorativa do Direito, de realçar será o contributo doutrinal de Oliveira Ascensão  que de encontro aos vectores atrás apontados, sustenta que uma teoria do direito justo estaria impreterivelmente ligada à ideia de Direito Natural. Defendendo que o Direito Natural é variável consoante a sociedade histórica em questão, argumenta este autor que ele deve ser entendido como Direito Positivo, na medida em que, assente na pessoa e sua pendência social, é o melhor caminho para se prosseguir o valor da Justiça. Consequentemente, as leis injustas não serão nem verdadeiras leis nem genuíno Direito, porquanto as normas positivas só serão legítimas – válidas intrínseca ou eticamente – se consonantes com a justiça.

c) – Posição Adoptada
Se, por um lado, é condenável sustentar uma exacerbada permeabilização do sistema jurídico por todo o tipo de valores, que impreterivelmente conduz às indesejáveis insegurança e incerteza jurídicas, será reprovável também, por outro lado, o ideal positivista, mormente de Kelsen, traduzido num sistema normativo auto-referenciado, em que o casuísmo do Direito se limita a uma operação lógico-dedutiva, ou que qualifica “a justiça e a recta finalidade” como preocupações secundárias do Direito, sendo a sua preocupação primordial a certeza e a segurança.

6. O Juiz perante a Injustiça da Lei e da Causa
De repudiar será, portanto, uma orientação formalista-normativista do sistema jurídico, alvo das críticas mais acesas elaboradas na esteira do chamado Movimento de Renascimento da Filosofia Jurídica, ocorrido após a trágica experiência histórica do Estado-assassino de Hitler. Citando Perelman , “com o advento do Estado-criminoso que foi o Estado nacional-socialista, pareceu impossível, mesmo a positivistas declarados, tais como Gustav Radbruch, continuar a defender a tese de que ‘lei é lei’(...). Uma lei injusta, dirá Radbruch, não pertence ao direito”.
Consequentemente, chegamos à mesma conclusão que Baptista Machado : “o que nos separa dos positivistas é, afinal, o irrealismo destes”porquanto o Direito não pode ser alheio – sob pena de autismo – à nossa condição humana e social. O que impreterivelmente nos leva a concluir que a actividade jurídica carece não só de positivismo mas também de transpositivismo.
Por isso, também nós vamos recuperar o sentido de Justiça como ideal ético fundamental, e, consequentemente, como escopo do Direito. Sem justiça, o Direito não logrará alcançar os demais vectores a si inerentes: o Bem Comum e a Segurança. No plano dos princípios, o Direito não poderá (ou melhor, não deverá) ter como escopo outro princípio que o valor (transpositivo) da Justiça. Pois, como expende o mesmo autor, a justiça “é a pauta axiológica do direito, é a exigência última do direito positivo”.
Neste ponto, embora com as diferenças metodológicas supra-apontadas, mesmo Hans Kelsen reconhece que “Para a questão da validade do direito, isto é, para a questão de saber se as suas normas devem ser aplicadas e acatadas, é decisiva a relação que se pressuponha entre justiça e direito”.
No entanto, é a Lei Fundamental que parte a iniciativa de amputar a função do aplicador do Direito, textualmente preconizando o positivismo legalista (artigo 212.º, n.º 2). É ainda a própria lei ordinária, destarte através do Código Civil, no n.º 2 do seu artigo 8º, que impõe o dever de obediência à lei mesmo perante uma situação em que tal conduza a um resultado injusto ou imoral por força do conteúdo do preceito legislativo.

E que resolução dará o Juiz à demanda quando o direito positivo aplicável ao caso sub iudice for, apesar de inequívoco, injusto?
Assola-nos a dúvida se o Juiz, enquanto “jurista ao desempenhar-se da função judicial”, concreta e legalmente terá o poder soberano de recusar a aplicação de uma lei injusta, como sustenta Castanheira Neves.
Não nos suscita qualquer dúvida a postura de recusa de aplicação de uma lei injusta, por parte dos nossos tribunais, nas situações que lhes surgem com maior frequência, que serão os casos em que os factos carreados para o processo se possam subsumir a mais do que uma norma ou instituto jurídicos, ou em que a desenfreada produção legislativa propicia que duas normas divergentes tutelem uma mesma situação jurídica. Em tais situações, a tarefa do aplicador do Direito consiste num trabalho de interpretação e de opção entre as possibilidades fornecidas pelo direito existente, por forma a que a decisão corresponda, tanto quanto possível, à ideia superior de justiça.
Tal dúvida - note-se - surge-nos tão-somente in extremis, ou seja, quando o direito positivo não fornecer ao juiz mais do que uma solução normativa para o mesmo caso concreto.
 
 7. Pressões externas
 Trataremos agora da postura a ser adoptada pelo juiz quando, no plano das suas actividades, interferências externas se colocam como valores capazes de abalar as suas convicções pessoais. Estamos no campo da injustiça da causa.
 A partir de Theo Callignon  define-se causa injusta como aquele litígio que, podendo apresentar-se de boa fé, pode ser defendido, com a ajuda de meios inescrupulosos. Tal deve-se à falta de fundamento da pretensão seja por carência de direito do assistido, seja por manifesta inviabilidade da pretensão, às situações de abuso de direito, uso de meios injustos, dentre os quais os meios de defesa falsos, por um lado, e, por outro lado, os expedientes dilatórios. Há interesses sobre a decisão de forma que o juiz vê o seu poder condicionado por entidades estranhas ao processo, sejam grupos políticos, económicos, ou de outro jaez.
Neste caso, o juiz tem consciência da injustiça vertida no petitório, mas há influências externas que recaem sobre ele. Pretendem que ele aja no sentido de acautelar esses interesses. Mostra-se quebrada a independência do juiz face a qualquer outro poder não necessariamente político.
 Em regra o juiz receia quem exerce essa influência. Acaba, por isso, em conformidade, por decidir contra a própria consciência, acomodando os interesses injustos.
 Há deste modo uma limitação da decisão livre e independente do princípio do julgamento ex conscientia sua por factores externos ao processo judicial.
  Aduz-se que, se por desonestidade intelectual, fazer-se colidir a consciência do juiz com o interesse público, o juiz em apreço não estará em condições de servir a comunidade onde inserido porque tem a consciência alienada a favor de um interesse particular.
 Afinal, sendo o juiz jurista, novamente citamos Castanheira Neves que afirma que “o jurista é o mediador na comunidade e para a comunidade da ideia do direito”. Continua este professor alertando que “esta função implica inevitavelmente uma grande responsabilidade, posto que o jurista não pode então iludir o dever de dizer não às situações e relações de não direito que os homens entre si ou o poder perante eles se proponham criar ou impor.”
 Pelo que histórico-comunitariamente situado, a conduta do jurista, de que o juiz não é alheio, não pode deixar de ser a de dizer “não” às situações que a sua consciência repute como “não direito”. É que dando cobertura a estas práticas, propugnando por uma decisão na qual não acredita, só por resposta as pressões vindas de fora, frustrar-se-á o intuito do juiz pugnar pela boa aplicação das leis e pelo aperfeiçoamento da cultura e instituições jurídicas.  
Perante estes casos, o órgão de disciplina não pode deixar de intervir, de não censurar, porque não é exigível nos juízes outro comportamento que não a observância da lei e da consciência.

 

 

 



 8. Conclusão
 Na realidade coeva, é uma verdade insofismável que a lei injusta ou a causa injusta estão longe de constituir hipóteses meramente académicas, podendo o juiz no seu ofício quotidiano com elas se deparar. Serão situações em que mais do que agir de acordo com a sua ciência, a posição do juiz encontra-se fragilizada pois em causa há que sopesar os interesses privados ou de grupo com os interesses da comunidade em geral, aos quais o próprio não é alheio atendendo a função social da profissão e a busca pela Justiça como seu elemento teleológico.
 Uma vez provocado, o juiz não pode eximir-se de decidir a questão submetida a sua apreciação, tendo de manifestar-se sobre os pedidos que lhe são dirigidos, sob pena de violação do princípio do non liquet.
O momento da decisão é o culminar de uma caminhada, por vezes, longa, árdua, cheia de dificuldades, angústias, avanços e recuos. É, não raro, um momento de extrema solidão, desamparo, em busca da palavra certa, justa, definitiva, esclarecedora, que ponha termo ao conflito, que indique o caminho certo a seguir.
Calamandrei  diz sabiamente que o “drama do juiz é a solidão, porque ele, que para julgar deve estar livre de afectos humanos e situado um degrau acima dos semelhantes, raramente encontra a doce amizade que requer espíritos do mesmo nível”.
O que quer que seja que o juiz decide, há sempre alguém que não vai concordar com a sua decisão. Há pessoas que aparecerão a criticar, a criticar, mas não lêem a lei sobre que criticam.
Desde que o julgador adopte a sua decisão com imparcialidade, de acordo com a sua compreensão da lei e dos factos submetidos ao seu conhecimento, a sua consciência terá a certeza da justiça e do cumprimento do seu munus publico.
 No dia que o juiz tiver medo de julgar conforme a sua consciência, não haverá quem viva tranquilo.
 Se o juiz tiver medo de julgar por represália do Executivo ou do Legislativo não haverá quem reconheça a responsabilidade do Estado por violar o direito alheio.
 Se o juiz tiver medo de julgar por medo de ofender uma determinada formação política, desprotegidos ficarão os cidadãos que pertencendo a minorias não poderão participar activamente no processo democrático. 
Se o juiz tiver medo de julgar por receio de ser punido ou mesmo corrigido pelas instâncias superiores não haverá quem reconheça novos direitos por força da sua capacidade interpretativa da lei. Ousamos ir mais longe sustentando que em caso flagrante de atentado contra a sua consciência, será preferível que se aja disciplinarmente contra o juiz a este adoptar uma posição que lhe pareça clamorosamente atentatória da verdade e da justiça.
 Se o juiz tiver medo de julgar por ameaças de criminosos e por não haver protecção à sua integridade, então o crime terá vencido o Estado e o cidadão. A impunidade que cobre os delitos cometidos contra a colectividade e contra o bem público mostrar-se-ão bem patentes na sociedade, sem que os responsáveis, apesar dos processos contra eles instaurados, sejam efectivamente punidos. 
 Se o juiz tiver medo de julgar por causa do impacto da sua decisão na comunicação social desgraçados ficarão aqueles que esperavam nele o último baluarte de justiça.
 O juiz não deve desanimar ante as investidas de quem detém o poder económico e político. Não deve igualmente ceder perante quaisquer outras interferências externas.
Ao juiz só se aceita que seja parcial se essa parcialidade for a favor da verdade e da justiça. Ao juiz se exige apenas que cumpra a lei. Mas também se quer que ele mantenha com a profissão um compromisso ético e moral.
A lição importante a reter é que liberdade de consciência do juiz não é para ele. É para a população. Sem ela não há imparcialidade e nem direito que seja garantido. Não há justiça. Afinal quando julga o juiz não atende o seu interesse. Atende a uma das partes que precisa daquela ordem para garantir o seu direito.

 
9. Bibliografia

AFONSO, Orlando V. M., Poder Judicial Independência in Dependência, Almedina, Coimbra, 2004.

ASCENSÃO, Oliveira, Introdução e Teoria Geral, 10ª edição, Almedina, Coimbra, 1999.

CALAMANDREI, Piero, Eles, os juizes, vistos por um advogado, Editora Martins Fontes, São Paulo, 2000.

CARRILHO, Colectânea de Legislação Constitucional, CFJJ, Maputo, 2009.
 
CARRILHO, José Norberto et al., Controlo Social do Poder Político em Moçambique: O Poder Judicial na Experiência Moçambicana, CEPKA, Centro de Pesquisa Konrad Adenauer, Nampula, 2004.

CHORÃO, Mário Bigotte, Positivismo Jurídico, Polis Enciclopédia Verbo, 1984, pp. 1410-1426.

COLLIGNON, Theo, Iniciacion al exercicio de la abocacia, Madrid, 1958

KELSEN, Hans, A Justiça e o Direito Natural, trad. Baptista Machado, Almedina, Coimbra, 2009.

MACHADO, Baptista, Introdução ao Direito e ao Discurso Legitimador, 12ª edição, Almedina, Coimbra, 2000.

MIRANDA, Jorge e MEDEIROS, Rui, Constituição Portuguesa Anotada, Tomo I, 2ª edição, WolterKluwer-Coimbra Editora, Coimbra, 2010.

NEVES, Castanheira, O Papel do Jurista no Nosso Tempo, Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, Vol. XLIV, 1968.

OPEN SOCIETY, Moçambique: o Sector da Justiça e o Estado de Direito, 2006.

PERELMAN, Chaim, Lógica Jurídica, Martins Fontes, São Paulo, 2000.

RAWLS, John, Uma Teoria da Justiça, 2ª edição, Editorial Presença, Lisboa, 2001.

SANTOS, Boaventura e TRINDADE, João Carlos, Conflito e Transformação Social: Uma Paisagem das Justiças em Moçambique, Vol. I, Edições Afrontamento, Porto, 2003.

TOUCHARD, Jean., História das Ideia Políticas, Vol. V, Publicações Europa-América, Lisboa, 1970.