Percebi a pouco que a minha casa não é mais minha, e nem é meu este lugar. Pertenço a muitos lugares. E, minha casa pertence a muitas pessoas. Pessoas que não existem mais, porém que ficarão para sempre na lembrança, pessoas que permanecem como rochas, a marcar um caminho. Pessoas que parecem querer ficar, mas acabam por se deixar partir. Pessoas que edificam mesmo ausente.
A minha casa é antropofágica. Ela come gente, como devora espaço, vive de emoções humanas, como finca o chão onde se edifica. Os sentimentos espalhados por todos os objetos da casa, por todos os objetos que acompanham uma vida. Uma foto de bebê. Uma mescla de cabelo cortada pela primeira vez. Cartas para o Papai Noel dos 6 aos 12 anos de idade, quando se descobre que é teu velho que te trás presente. O guardanapo do local onde tomou o primeiro café expresso. O presente da primeira melhor amiga. A foto antiga do namorado da faculdade. O livro comprado com o primeiro salário. Uma pedra do lugar mais lindo que já viu.
As lembranças são antropofágicas. Elas se alimentam de nossos sentimentos, como invadem os objetos, estes seres inanimados, desnecessários e desprezíveis. Que quando invadidos pela lembrança podem se transformar no objeto mais apreciado, de forma mais encantadora, objeto de distinção e apreço. Por vezes, eles se transformam em faróis que sinalizam um caminho, um abrigo. São as possibilidades de novas trajetórias e novas rotas ainda a serem trilhadas. Assim são os objetos. Assim são as memórias.
Que poder é esse que num minuto apaga as lembranças de toda uma vida? Olho ao redor e não vejo a minha casa, lembranças juntadas ao longo de uma vida. O meu xale português na parede da sala me faz lembrar de você deitado no sofá. Por vezes cochilando, por vezes acordado, mas sempre com olhar descansado de quem se abre para ver o que a vida te reserva. A preguiça gostosa de um corpo que relaxa e se expande ocupando o espaço ao se projetar ao redor. Na luz tênue, você dorme por entre as almofadas e imagino minhas mãos deslizando em seus cabelos, convidativos, grossos e fartos, suavemente. Sim, o xale português agora tem uma outra lembrança, uma nova lembrança.
O comprei em São Paulo, num dia de inverno, chovia torrencialmente, numa loja de artigos portugueses, alguns anos depois de meu papai falecer. O meu avô era português e a cultura portuguesa sempre esteve muito presente em nossas vidas, seja no Fado português, no Caldo Verde, no Vira. Inconscientemente, procurava tecer liames, pontes que me mantivesse, de certa forma, conectada ao meu desejo de ter meu progenitor por perto. Naquela época, assim acreditava. Nunca gostei de pirão, um prato típico brasileiro feito à base de peixe e farinha de mandioca, mas depois que ele morreu esse passou a ser um dos meus pratos prediletos. Era o dele. Não me pergunte o por que, racionalmente, não saberia te dizer. Simples assim, meu gosto mudou. Mudou porque alguma coisa emocional me afetou, minha intenção mudou o foco.
Usava o xale português sobre o corpo, mas quando vim para Londrina, na tentativa de romper paradigmas, o coloquei na parede como um troféu. Um troféu de sobrevivências, um símbolo de luta desesperada por sentido na vida. E, hoje olhando para o xale português novamente, não é que ele ainda me solicita um sentido? Agora, depois de ti, meu novo amor, os objetos de minha casa me escapam, continuamente. Por fazerem parte de meu acervo simbólico, minhas lembranças, se permitem a interpretações variadas com base em emoções diferenciadas vividas naquele momento mais instantâneo e presente de minha vida ? o agora.
O fato é que lidamos com sentido, as palavras e as coisas não possuem um sentido em si mesma. E, cabe a linguagem dizer a que veio as manifestações humanas. Para isso, bastaria a ausência do "Te quiero" em nosso convívio para entender tudo o que acontecia ou que deixou de acontecer. Agora, o xale português na parede de minha sala é a cartografia do meu Ser, o fundamento daquilo que Sou. Mas nem tudo que é pode ser dito em palavras, pois nem tudo é conhecido. Existem tramas, liames no tecido que não se deixam ver. A trama, aparentemente, bem desenhada do tecido esconde outros fios. O xale na parede passou a ser uma espécie de observatório do mundo, de sua pluralidade e vivências, encantos e tristezas. Essas tramas de fios enredadas de cores intensas se alimentam da luz e de todo tipo de sentimento e de experiência. O xale é humano.
Descobri, por meio de acidentes felizes e tristes de nosso convívio, inesperadas descoberta sobre mim mesma. O sentimento que sinto por você me fornece munição para escrever. Consolo-me com esta força que deixastes em mim ao me ajudar a pavimentar meu caminho interior. Nessa incursão interna de trajetórias múltiplas e variadas encontro muitas diferentes culturas e identidades fazendo parte de mim mesma. A ocorrência das tramas do tecido me faz perceber a inconstância da vida e, consequentemente, de seus sentidos. E, nos esquecemos, por hora, da busca incessante por segurança, do estável, do compreensível.
Fico esperando no silêncio da casa ouvir a tua voz a sussurrar aquilo que me prometeste em palavras escritas falar: "Te quiero". De que material afinal são feitos os sentimentos humanos? Hoje, pela manhã estava a tomar café na cozinha e me lembrando de você. Ali, entre uma névoa de fumaça de café e um pão quentinho. Ali, onde havia antes um olhar furtivo e um sorriso. Ali, onde escutava reticentemente, você me chamar de "fresquinha". Acreditando mais no elogio do que na crítica. As palavras ditas e escritas podem se perder no tempo e na distância, mas se encontram solo fértil germinam a terra ou a tornam estéril. Cuidado com o que você põe no coração e deixa sair pela boca. Os sentidos humanos não são cinco, eles são como uma legião. Conversamos sobre tudo, menos sobre o que importava. Eu e você. Porque não foi possível falar de um nós? Fico tentada a fornecer uma resposta racional para essa pergunta, mas a verdade é que não existe resposta racional para isso. A fé na vida ou nas pessoas é algo que se tem ou não. Não pertence ao campo das probabilidades, mas dos riscos é um pulo no escuro. Como a chuva que caí, e que se transforma em tempestade sem anunciar ao dia pra que veio e porque veio assim.
Quanto ao xale português, continua com as mesmas cores, mesmo desenho, mas começo a reparar nele tramas antes escondidas, fios de nuances variadas, formas ainda não definidas. Uma cartografia feita de encontros e desencontros. A cartografia de uma busca de sentido para a vida.