A casa que chora!

     Quando mais novos, eu e minha irmã morávamos em Alcobaça, uma cidade no litoral baiano, próximo ao estado do Espírito Santo. Nós morávamos em uma casa comprada por uma firma de imóveis, então não sabíamos quais os antigos moradores. Era uma casa grande, com um quintal meio rústico e um porãozinho trancado com uma corrente no fundo. O que eu lembro, mesmo sem meu pai ter me contado, é que todos os dias, as paredes da casa amanheciam molhadas, com um líquido espesso e salgado, como lágrimas. Acho que por isso meu pai deu este nome à história. Fizemos de tudo para resolver este problema, abrimos a parede para checar a encanação, mas tudo estava nos trinques, como novo. Checamos goteiras no telhado, mesmo sabendo que não estava chovendo, tudo sem sucesso. A casa estava praticamente nova.
     Enfim, ele conta que certa vez, estávamos todos reunidos no quintal para um churrasco em família, e quando ele entrou em casa para pegar mais carne, ele viu um senhor na mesa da copa tomando café com a mesa farta, mas ele sabia que não havia nada na mesa, e ele nunca havia visto aquele senhor antes. Então ele ouviu um choro no quarto, e ao se esgueirar até lá, viu uma moça de longos cabelos pretos e vestido amarelo chorando na cama, se entupindo de remédios.
     Ele estranhou lógico, e contou para a minha mãe, que aconselhou-o a perguntar aos moradores na vizinhança sobre a casa. Feito isso, uma senhora que morava na rua contou a ele que havia um homem e uma garotinha naquela casa à alguns anos, e que o homem era fuzileiro naval morto em serviço, e que a garota teria se matado poucos anos antes. Ele foi até o cemitério buscar registros das pessoas enterradas que moravam na cidade, mas para sua surpresa, nenhum registro se encaixava nesse perfil de pai fuzileiro e sua filha. Meu pai foi até a casa, falou com minha mãe, e decidiram repetir o que eles haviam feito naquele dia, porém, sem sucesso. E o que mais o deixava intrigado, era que todas as manhãs, no mesmo horário, a parede aparecia encharcada com aquele líquido salgado que parecia com lágrimas.
     Minha irmã, Tainan, devia ter uns 5 anos naquela época, e passava boa parte da tarde em frente à um laguinho no quintal, onde haviam dois patinhos, mas ela sempre dizia que haviam três, e mesmo sendo criança, sabia que os dois patinhos eram machos, e esse terceiro era uma fêmea. Ela a chamava de "chorona", porque era uma patinha que só fazia chorar.
     Certa vez, meu pai ouviu um barulho na copa de madrugada e acordou assustado. Foi até lá já prevendo o que seria, e acertou. Viu novamente aquela mesa repleta, e o senhor na mesa tomando seu café. Desta vez ele reparou nas roupas do senhor, e percebeu as condecorações e o emblema de sargento. Sem dúvida, era o fuzileiro, mas estava velho, e cansado, e a senhora da rua disse que ele morreu ainda em serviço.
     O senhor olhou para o meu pai, com olhos cansados, e tornou a tomar seu café, que parecia não acabar nunca. Meu pai se sentou, fixou os olhos no velho, e após um tempo, soltou uma pergunta, "por que?". O senhor parou de tomar o café e ficou encarando a xícara, que parecia finalmente estar vazia. "Por que está aqui? O que te incomoda?" E o senhor só disse uma frase, que parecia não fazer sentido no momento, "É uma parte de mim". Ele tornou a tomar seu café, que como por mágica, pareceu estar de novo cheio, na xícara.
     Meu pai ficou um momento sem entender, pensando, e então lembrou da garota no quarto, e correu até lá, para encontra-la. Não havia ninguém, apenas a minha mãe, deitada, e ao lado dela o lugar desarrumado onde eu pai se deitara.
No dia seguinte era dia de finados, estávamos reunidos na mesa para o almoço, e um comentário de minha irmã Tainan, fez meu pai se sentir inquieto. Ela disse que a "chorona" foi embora de novo, e só voltaria mês que vem. Meu pai se levantou rapidamente e foi até o calendário. Dia dois. Perguntou para minha mãe, sobre o dia do churrasco. Era alguma comemoração? Sim, comemorávamos um mês de mudança na nova casa, e nos mudamos para lá no dia primeiro de setembro. Então ele não tinha mais dúvidas, foi até o quartel local pedir informações sobre os combatentes locais. Ele existia, o sargento, que eu não me lembro o nome agora, mas veio a óbito em serviço no dia 1° de fevereiro de 1990.
     No dia 1° do outro mês, meu pai fez outro churrasco, e manteve minha mãe, eu e minha irmã fora da casa, no quintal, e entrou no mesmo horário que o senhor e a garota costumavam aparecer. Lá estava o senhor tomando o seu café ilimitado, e andando direto até o quarto, viu novamente a garota na cama, tomando seus remédios. Reparou também que estava chorando muito, e esse vestido amarelo que ela usava, fazia todo o sentido agora. "Chorona", sussurrou o meu pai. A garota olhou para ele, com aquele olhar forte, raivoso, mas ao mesmo tempo triste e inofensivo. Ele se sentou ao lado dela, e perguntou o que ela queria, porque estava la? Porque eles estavam? Ela por um momento demonstrou não entender o que meu pai quis dizer com "eles". Só disse que sentia falta do pai, que ele era o seu herói, e que não aguentava mais ficar sem ele, que queria dar um fim nisso tudo. Meu pai entendeu no momento o que aconteceu.
     O senhor estava lá, esperando a filha, para ir com ele. Mas ele era um combatente honrado, merecia o paraíso, e ela, era uma suicida. Como poderiam ficar juntos de novo. Ela estava destinada a sofrer pela eternidade pelo o que fez. Então ele falou com ela, disse que o pai dela estava lá, e que estava sofrendo por causa dela, porque ela não deixava-o ir embora. Disse à ela que estava-o privando de sua recompensa pela vida dura que teve, e teve de dizer a verdade. Ela pecou forte, fez uma decisão errada, e agora teria que arcar com isso.
     Por um momento tudo ficou quieto, então ela soluçou um choro rouco, e acenou levemente com a cabeça. Disse em voz triste e baixa, "obrigada", e se extinguiu em uma leve luz. Meu pai juraria ter visto um leve sorriso naquele momento. Teria ela sido libertada? Mas como, se segundo a bíblia, o suicídio é o único pecado sem perdão?
     Ele levantou, cansado, e foi até a copa, e ali sentou com o senhor na mesa, que tomava seu infinito café. Mas desta vez, algo estava diferente nele. Era outro, um rapaz, de aproximadamente uns 35 anos. Jovem e forte. Ele levantou levemente a cabeça, e olhou para meu pai. Um olhar destemido, calmo, vigoroso, e parecia estar também, agradecido. Um olhar que substituiu qualquer necessidade de explicação. O jovem fuzileiro acenou com a cabeça, e se extinguiu do mesmo jeito que a garota, em uma leve luz, assim como todo o intocado banquete da mesa. Nesse momento meu pai teve certeza que os dois estavam agora de novo juntos.
Nos dias que seguiram, para a nossa surpresa, a parece ainda chorava. E meus pais optaram pela mudança. Mas antes de ir, meu pai foi até o quintal com um machado, e com uma forte pancada, arrebentou a corrente que lacrava aquele porão velho. Para sua surpresa e susto de todos nós, haviam ali, naquele mesmo lugar, haviam dois túmulos de tamanhos diferentes com fotos e escrituras em cima. No maior havia escrito "Um pai amoroso e dedicado, que com honra defendeu em vida aquilo que amava", e no menor, um rabisco mal feito, quase arranhado, "Alguém que o amava". Suas fotos estavam ali, um rapaz forte e com sorriso encorajador, e uma garota, de uns 15 anos, com um sorriso tímido olhos brilhantes. Sem mais perguntas, nós saímos, e cerca de uma semana depois, soubemos que novos moradores ocuparam aquela casa, e depois de pouco tempo, numa noite de primeiro de dezembro, um assalto naquela casa, seguiu de dois assassinatos.
     Ouve-se rumores, que desde que nós saímos daquele lugar, a casa nunca mais teria "chorado". Exceto no dia primeiro de casa mês.

 

Luan Montenegro