RESUMO

No direito processual a prova tem papel crucial, seja para o acertamento do direito, para a sua execução, ou para a garantia de medidas assecuratórias ou cautelares. Tal importância se dá pela proximidade da verdade dos fatos que a prova proporciona. E é justamente sobre a verdade que este artigo irá tratar. Pretende-se aqui realizar uma análise conceitual da verdade, do princípio processual penal da verdade real, seus efeitos, realizar comparações e tecer uma critica acerca da tecnicidade do termo.

Palavras-chave: Processo penal; verdade real; certeza processual; interpretação; democracia.

THE SEARCH FOR THE TRUTH AND THE FRAGILITY OF THE HUMAN INTERPRETATION IN THE LAW’S APPLICATION

ABSTRACT

In procedural law the evidence is crucial, whether for the setting of the right, whether for their implementation, is to guarantee ensures or precautionary measures. Such importance is given by the proximity of the truth of the facts that the evidence provides. And it is precisely about the truth that this article will deal. The intention here is to perform a conceptual analysis of the truth, the principle of criminal procedure to the real truth, its effects, comparisons and weave a review about the technicality of the term.

Keywords: Criminal proceedings; truth, real truth, certainty of procedure; Gadamer; Popper; Aristotle.

  1. INTRODUÇÃO

No Direito Brasileiro, buscando-se uma decisão justa, pretende-se prolatar uma decisão de acordo com o ordenamento jurídico e que demonstre uma correspondência entre os fatos, o direito e a interpretação jurídica. Em outras palavras, para que a jurisdição exerça devidamente sua função é necessária uma exposição dos fatos, realizada pelas partes, que esteja o mais próximo do que realmente ocorreu e que a interpretação dada pelo juiz ao alegado seja fundamentada de forma racional e amparada nas provas apresentadas.

No entanto, os fatos estão sujeitos a interpretações diversas. Exemplo são as interpretações dadas por cada parte e pelo juiz a uma gravação em vídeo. Um exporá sua intenção, outro se prenderá aos efeitos do ato e o terceiro, hipoteticamente, administraria o dissenso, analisando os argumentos (interpretações) e os colidindo de frente com sua própria interpretação.

Não há, pois, um método plenamente seguro de transcrição do real ao formal, ao processual, pois tudo passa pela interpretação humana. Dessa forma estaria o processo à mercê unicamente do julgador, que aplica a lei e “legisla” de forma individual e concreta. Há sim, no entanto, formas, procedimentalizadas, que respeitam o princípio da democracia a fim de que a atividade jurisdicional seja impedida de realizar atos violentos, como sentenças arbitrárias – veja a seguir.

 2.  A PRINCIPAL TEORIA SOBRE A VERDADE

Há um brocardo latino que diz veritas est indivisa et quod non est plene verum non este semiplene verum sed plene falsum, isto é, a verdade é indivisa e o que não é plenamente verdadeiro não é semi-plenamente verdadeiro, mas plenamente falso. Trata-se aqui de uma explanação sobre o conceito de verdade plena, algo como somente o divino poderia tratar. Tal como queria Aristóteles em De Interpretatione, no qual trabalha com valores verdade e um conceito do verdadeiro como correspondência entre o que é e o que é dito.

Tal idéia é amplamente difundida. Aqui, interessa-nos analisar na seara do direito, especificamente, no direito processual penal. O chamado princípio da “Verdade Real” - já chamado de forma um tanto quanto pleonástica -, da forma como foi construída e freqüentemente é reproduzida nos manuais, cursos e, inclusive, na própria relação processual, coaduna com o conceito cunhado por Aristóteles.

Sobre tal relação problemática, Guilherme de Souza Nucci (2012) nos traz uma crítica sobre o princípio, lecionando que a verdade real

 

“proporciona, no processo penal, inúmeras aplicações frutíferas, embora gere, também, expectativas impossíveis de serem atendidas. A começar pelo conceito de verdade, que é sempre relativa, até findar com a impossibilidade real de se extrair, nos autos, o fiel retrato da realidade da ocorrência criminosa. Ensina Malatesta que a verdade é a 'conformidade da noção ideológica com a realidade' e que a certeza é a crença nessa conformidade, gerando um estado subjetivo do espírito ligado a um fato, sendo possível que essa crença não corresponda à verdade objetiva. Portanto, pode-se afirmar que 'certeza  e verdade nem sempre coincidem; por vezes, duvida-se do que objetivamente é verdadeiro; e a mesma verdade que parece certa a um, a outros parece por vezes duvidosa, quiç[á até mesmo falsa a outros ainda' (A lógica das provas em matéria criminal, vol. 1, p. 22)”

3. CRÍTICAS

Essa noção de verdade se torna válida apenas num plano de análise perfeito e individual, no qual há admissão da total receptividade humana (do indivíduo) do mundo ao seu redor – frente aos estados das coisas ou aos fatos independentes da mente humana -, pois tal como foi para Popper, o conhecimento humano não é uma correspondência com o real, com o material, isto é, uma transcrição exata dos fatos puros, mas sim uma interpretação dos fatos ou objetos os quais tornam-se alvos da cognição humana (interpretação essa que culminará no que o autor chama de Teoria).

Ademais, outro renomado autor também trata da verdade, mas diretamente no direito. Trata-se de Chaïm Perelman.

 

"Como princípio processual Básico, tem-se como ponto de partida para a discussão acerca da controvérsia jurisdicional o fato de que a verdade não existe, mas se constrói por um decisum que advém da apreciação de fatos expostos e retoricamente sustentados juridicamente dentro da sistemática normativa da comunidade jurídica. O dissenso, ao alinhar-se em forma de um procedimento institucionalizado, legaliza-se nos devidos termos das prescrições estabelecidas para a ritualização dos atos de vontade das partes litigantes. Não pode ser outra a definição de verdade processual que a administração do dissenso. No âmbito do processo penal, a ficção da verdade real é teleologia sistemática, uma vez que esta reside na hermética individualidade psicológica dos sujeitos envolvidos na relação, sendo de difícil apuração critérios que embasem a alegação de uma verdade purificada e integral no contexto da litigância processual". (ALMEIDA, G. A. ; BITTAR, Eduardo. 2011)

 

 Apesar de todas os posicionamentos apresentados sobre a questão da interpretação, foi Gadamer que melhor tratou da questão. Segundo ele  ( e influenciado por seu mestre, Heidegger) a interpretação é sempre comprometida, já de início, pela chamada pré-compreensão, isto é, um conjunto de saberes e de entendimentos já obtidos pelo indivíduo em sua tradição histórica, ou seja, o ser que é somente existe enquanto ser que compreende e interpreta sua existência e, dessa forma, direciona seu olhar para o novo já com pré-compreensões adquiridas durante sua existência, que a todo momento é compreendida e interpretada:

 

"Heidegger ao defender a especificidade da linguagem enquanto linguagem do ser, aquém e além de toda explicação filosófica que se deu até então, apresenta a compreensão não em termos de um caráter epistemológico, mas, sim, existencial. Em Heidegger a compreensão não é um modo de conhecer, mas a própria existência" (Fernando Armando Ribeiro, 2008) .

 

Observe-se que Gadamer propõe uma análise individual da interpretação humana e não geral, generalizante e axiomática.

 

"A linguagem no âmbito da Hermenêutica Filosófica de Gadamer constitui a mediação total da experiência do ser. E, nesses termos, é apresentado o limite imposto a toda experiência hermenêutica do sentido. Para Gadamer, o que é não pode jamais ser compreendido em sua totalidade, pois para tudo que uma linguagem desencadeia, ela remete sempre para além do enunciado como tal. O ser não pode ser compreendido em sua totalidade, não podendo assim, haver uma pretensão de totalidade da interpretação" (Fernando Armando Ribeiro, 2008).

 4. CONCLUSÃO

Tendo em vista este breve relato e as respectivas críticas aqui depositadas, depreende-se ser, pois, de melhor entendimento e menor obscuridade sobre o tema, a Certeza Processual como a nomenclatura daquilo que se demonstrou histórica e filosoficamente no Direito a correspondência (ou sua tentativa) entre os fatos e a interpretação humana.

Essa certeza deve ser sempre oriunda da fusão dos horizontes[1], em termos gadamerianos, consequência imediata da possibilidade do exercício do contraditório, isto é, o direito de argumentar, contra-argumentar ou não argumentar, no espaço discursivo legal chamado processo.

A Certeza Processual Penal tem valor extremamente significativo, uma vez que o resultado final do processo pode acarretar na perda de um direito basilar da existência humana: a Liberdade. Essa aqui compreendida não somente quanto à liberdade de ir e vir, mas também a liberdade compreendida como, no mínimo, ausência de medo constante. A estrutura social das prisões, na ótica dos presos, é clara e constantemente violenta entre os próprios executados, não se correspondendo, de forma alguma, aos preceitos educadores e ressocializadores da pena.

É por isso que, em qualquer âmbito processual, a decisão não deve estar concentrada, exclusivamente, nas mãos do juiz, tão somente, visto que, como já exposto, a interpretação humana sobre fatos alegados no processo (isto é, já interpretados) é variável conforme cada ser que é e, por isso mesmo, compreende constantemente. A decisão deve reunir todas as argumentações e contra-argumentações, provas, interpretações, preclusões etc, de uma forma que se caminhe para o consenso no espaço democrático e não arbitrário e violento, tal como se lê desta decisão:

 

"MINISTRO HUMBERTO GOMES DE BARROS: Sr. Presidente, li, com extremo agrado, o belíssimo texto em que o Sr. Ministro Francisco Peçanha  Martins expõe as suas razões, mas tenho velha convicção de que o art. 557 veio em boa hora, data vênia de S. Ex.ª

Não me importa o que pensam os doutrinadores. Enquanto for Ministro do Superior Tribunal de Justiça, assumo a autoridade de minha jurisdição. O pensamento daqueles que não são Ministros deste tribunal importa como orientação. A eles, porém, não me submeto. Interessa conhecer a doutrina de Barbosa Moreira ou Athos Carneiro. Decido, porém, conforme minha consciência. Precisamos estabelecer nossa autonomia intelectual, para que este Tribunal seja respeitado. É preciso consolidar o entendimento de que os Srs. Ministros Francisco Peçanha Martins e Humberto Gomes de Barros decidem assim, porque pensam assim. E o STJ decide assim, porque a maioria de seus integrantes pensa como esses ministros. Esse é o pensamento do Superior Tribunal de Justiça, e a doutrina que se amolde a ele. É fundamental expressarmos o que somos. Ninguém nos dá lições. Não somos aprendizes de ninguém. Quando viemos para este Tribunal, corajosamente assumimos a declaração de que temos notável saber jurídico – uma imposição da Constituição Federal. Pode não ser verdade. Em relação a mim, certamente, não é, mas para efeitos constitucionais, minha investidura obriga-me a pensar que assim seja.

Peço vênia ao Sr. Ministro Francisco Peçanha Martins, porque ainda não me convenci dos argumentos de S. Exª.

Muito Obrigado." (LEAL, André Cordeiro. 2008.)

 

As teorias do processo como relação jurídica, que implica o vínculo de subordinação das partes ao juiz, de Bülow, e da jurisdição como atos do juiz, de Liebman, deságuam na concentração dos juízos de certeza e verossimilhança na pessoa do juiz, do decididor, externando-os em suas decisões. Assim, pode o juiz, como se revestido do imperium pretoriano, prolatar decisões que ignorem as argumentações das partes, esvaziando o processo de discursividade e decretando, por seus meios, o caráter não democrático do processo em atos precipuamente violentos.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

 

 

ALMEIDA, G. A. ; BITTAR, Eduardo. Curso de filosofia do direito. 9ª ed. São Paulo: Atlas, 2011.

 

LEAL, André Cordeiro . Instrumentalidade do processo em crise. 1ª. ed. Belo Horizonte: Mandamentos, 2008.

 

NUCCI, Guilherme de Souza. Código de processo penal comentado. 11ª ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Ed. Revista dos Tribunais, 2012.

 

POPPER, Karl Raimund Sir,. Conhecimento objetivo: uma abordagem evolucionária. Belo Horizonte: Itatiaia; 1999. 394 p. (Coleção Espírito do nosso tempo ; 13)

 

RIBEIRO, Fernando Armando ; BRAGA, Barbara . A aplicação do direito na perspectiva hermenêutica de Hans-Georg Gadamer. Revista da Faculdade de Direito Milton Campos. v. 16 (1o Sem. 2008), p. 37-69. Belo Horizonte: Del Rey, 2008.



[1] Para mais, conferir RIBEIRO, Fernando Armando, 2008.