Sobre Teólogos e Antas

Roberto dos Reis, M.Th.

 

 

 

            Já publiquei alguns livros. E se alguns outros aguardam um momento propício para saírem das gavetas de minha escrivaninha, outros, por sua vez, pulsam intermitentemente em meu coração, ansiosos como crianças que, serelepes, anelam ardentemente a luz e os desafios da vida. Em todos eles, publicados ou não, dois teólogos brasileiros estão invariavelmente presentes. Um deles, Rubem Alves (1933-2014), falecido no último dia 19/07, me fascinava pela forma desprendida, poética e onírica de escrever. Dizia o que pensava de forma clara, objetiva e fundamentada de tal forma que o mais simples assunto, como o riso, por exemplo, torna-se atrativo para uma discussão teológico-filosófica[1]. Nascido em Boa Esperança, uma pequena cidade da serra mineira, Alves (2000, p.10) transformou suas memórias de infância – “[...] acordar pela manhã, brincar, ir à escola, ir para a cama à noite [...]” – em partes de uma fascinante liturgia, antigas memórias de sua nostalgia religiosa. A coragem e sutileza com que construiu sua teologia denunciaram sua tristeza com o fato de que nós, protestantes, nos tornamos animais domésticos, amantes dos mesmos caminhos, “[...] como vacas que, às mesmas horas, andam pelas mesmas trilhas rumo aos mesmos destinos” (ALVES, 1982, p.07), como lagartas processionárias[2], caminhando infinitamente para a morte (HORRELL, 1994).  

            É assim que, relendo A Alegria de Ensinar, deparei-me com uma experiência vivida por Alves (1994) que, não sei quando ou onde, retrata essa marcha resoluta e inquestionável, mas nem por isso menos domesticada, que muitos de nós, teólogos acadêmicos ou não, estamos acostumados a fazer. A rigor, como o próprio texto indica, Alves (1994) denuncia a educação das mesmices, da repetição monótona e infrutífera dos conteúdos programáticos. As crianças aprendem. Aprendem bem o conteúdo daquilo que lhes é ensinado. Aprendem tão bem que, ironicamente, tornam-se incapazes de pensar de outra forma. “Aprender”, torna-se sinônimo de “repetir” as mesmas coisas, “[...] ecos das receitas ensinadas e aprendidas” (ALVES, 1994, p.27). E a lógica de tudo isso parece simples e inocente: Se existe uma forma certa (prescrita!) de fazer as coisas, por que devemos nos arriscar com outras formas? Se há um caminho estabelecido previamente, por que nos aventurar por caminhos desconhecidos? Se há uma receita testada e aprovada, por que tentar outras formas de executá-la? É suficiente repetir as fórmulas aprendidas; é suficiente colocar os ingredientes da forma como a receita diz. E o saber, uma vez sedimentado pela escola – e pela tradição, seja ela qual for –, “[...] nos poupa dos riscos da aventura de pensar” (ALVES, 1994, p.27).  

            O saber já testado, assim como as fórmulas e as receitas, possui sua utilidade prático-econômica: se ganha tempo e se poupa recurso. Isso não se discute! O problema, entretanto, é o tolhimento do pensar, “[...] aprende-se para não precisar pensar” (ALVES, 1994, p.28). É mais cômodo e seguro repetir as fórmulas; repetir as mesmas sentenças; fazer as mesmas afirmações. Pensar de outra forma, sem o fulcro da tradição, é desejar as chamas da fogueira inquisitória ou o ostracismo para a terra dos excluídos. É mais seguro agir como anta. Não, não uso o termo no sentido pejorativo que comumente o jargão popular o emprega. O faço, à semelhança de Alves (1994), pensando na habilidade natural desse animal em fugir de seu predador – a onça.  

             Presa fácil, a anta é o alimento predileto da onça. Sem nenhuma capacidade física para se defender de sua predadora natural, a anta se prende à trilha aberta na floresta. Não se distancia dela. Sua vida depende disso. A trilha, familiar à anta, passa por baixo de trancos de árvores, galhos caídos e outros obstáculos. Ao passar por esse caminho, os obstáculos tornam-se imprescindíveis à sobrevivência da anta. A onça, desconhecendo o caminho e, obviamente, os obstáculos, ataca a anta, encravando as garras no lombo desta que, desembestada e frenética, põem-se a correr pela trilha, sua única arma contra a ferocidade do mortal felino. Arrastando a onça pelo caminho, passa por baixo do primeiro obstáculo que encontra, e a onça, logicamente, recebe uma bordoada. A anta, ferida, escapa da morte.

            O conhecimento dos caminhos abertos na floresta; a repetição dos ensinamentos do professor, das fórmulas da tradição, dos enunciados teológicos, das informações testadas previamente, se constitui em pseudodefesa contra a “onça”. O que importa é preservar a existência. É por isso que as antas, dominadas pelo medo de perder a vida, não saem da trilha, não se arriscam embrenhando-se pelo desconhecido da floresta. Afinal de contas, pensam aqueles que agem dessa forma, caminhos diferentes só podem estar errados (ALVES, 1994). É justamente aqui que reside o equívoco. Quem foi que disse que precisamos trilhar os mesmos caminhos e repetir as mesmas fórmulas? Quem foi que disse que precisamos dizer as mesmas coisas e repetir os mesmos gestos? Fazer teologia é uma arte de alto risco. Aliás, arte e risco parecem que não combinam, mas é justamente o contrário. Arte e risco são as faces de uma mesma moeda. É por isso que, se desejamos falar de Deus sem os cabrestos impostos pela cultura europeia (e/ou norte-americana), devemos estar dispostos aos riscos dos clichés, do ostracismo e da inquisição.

Confesso que gosto do jeito brasileiro de fazer teologia. E, a despeito daqueles que não acreditam que teologias possuam nacionalidades[3] e carreguem o peso cultural e, portanto, vivencial de quem as produzem, nosso jeito de falar de Deus (BOFF, 1987) carrega a exuberância, a vitalidade, a alegria e a festividade de um povo forjado no caldeirão das contradições e oposições sociais extremas (HOORNAERT, 1991); da confluência, do entrechoque e do caldeamento do português invasor com índios e africanos, estes aliciados como escravos, aqueles silvícolas e campineiros (RIBEIRO, 1995). A confluência dessas múltiplas matrizes formadoras de nossa gente poderia, segundo Ribeiro (1995), gestar um povo multiétnico, dilacerado pela nefasta oposição de elementos diferenciados e imiscíveis. Entretanto, o improvável ocorreu. O brasileiro, não obstante trazer em sua fisionomia somática e em seu espírito os signos de sua ancestralidade múltipla, é sócio-culturalmente distinto de suas matizes formadoras. Isso significa dizer que temos uma identidade própria e, como qualquer outro povo debaixo do sol, temos nossa própria percepção de Deus, e consequentemente nossa teologia. E essa teologia, por sua vez, nada mais é que um conjunto cultural moldado pela história (a nossa história!) e informado por uma fé (esta sim, sem nacionalidade!), uma experiência pessoal, encarnada numa história individual e coletiva (MESLIN, 1992).

O brasileiro é diferente. Aliás, todos os povos são diferentes. Cada cultura possui suas próprias características, elementos que as tornam interessantes e atrativas ou, na mesma medida, excêntricas e, portanto, repulsivas a partir da perspectiva de quem as olha. A perspectiva, a rigor, é um ângulo a partir de um ponto qualquer. E o ângulo, enquanto região de um plano de observação, não interfere no objeto observado. Isso significa dizer que, independentemente do meu ponto de vista (ou ângulo) e de todas as informações e sentimentos que tenha em relação a ele, nada mudará, o objeto será ele mesmo.

Não é sem razão que, a partir de 1808, quando os portos brasileiros foram abertos às nações amigas de Portugal por ordem expressa de D. João, os europeus que aqui desembarcaram (ingleses, franceses, prussianos, alemães) ficaram chocados com a forma nada convencional, ou seja, não-europeia, como os brasileiros expressavam a fé. O historiador belga, Eduardo Hoornaert (1930-), descrevendo a impressão que o francês Augustin Saint-Hilaire (1779-1853) teve no primeiro contato com o povo brasileiro, diz que, palavra de Saint-Hilaire: “[...] na igreja brasileira não há o que possa deixar de causar espanto: está fora de todas as regras” (RODRIGUES apud HOORNAERT, 1991, p.18). O que significa que as práticas religiosas desenvolvidas pelo brasileiro, ainda que cristãs, eram consideradas esdrúxulas pelo simples fato de não seguirem o formato europeu. É nesse sentido que Hoornaert (1991), ao descrever essa impressão, chama nossa atenção para essa forma estrangeirada, dominante e depreciativa de ver a religiosidade do outro. Ainda mais se esse “outro” pertencer ao contexto sócio-cultural da confluência português-índio-africana.

A rigor, o teólogo, assim como o poeta, deve ser livre, e o produto de suas elucubrações, assim como os frutos da mente apaixonada do poeta, não podem ser [in]validados a partir de critérios (receitas) pré-estabelecidos por aqueles que elegeram a perspectiva europeia como a mais salutar. Por que negar a capacidade criativa e reflexiva daqueles que, a partir de sua vivência sócio-cultural, falam de Deus sem seguir os caminhos abertos pela teologia primeiro mundista? Precisamos pensar, somos teólogos, independentemente do lugar onde nascemos e dos caminhos que percorremos.

 

 

Referências Bibliográficas

 

ALVES, Rubem. A Alegria de Ensinar. 3ª ed., São Paulo/Campinas: ARS Poetica Editora/PETAH Técnica & Arte, 1994.

ALVES, Rubem. Conversas com Quem Gosta de Ensinar. 1ª ed., Campinas: Papirus, 2000.

ALVES, Rubem. Dogmatismo e Tolerância. 1ª ed., São Paulo: Edições Paulinas, 1982.

ALVES, Rubem. O Enigma da Religião. 3ª ed., Campinas: Papirus, 2000.

BOFF, Leonardo. Vida Segundo o Espírito. 4ª ed., Petrópolis: Vozes, 1987.

FERREIRA, Franklin; MYATT, Alan. Teologia Sistemática: uma análise histórica, bíblica e apologética para o contexto atual. 1ª ed., São Paulo: Vida Nova, 2007.

HOORNAERT A., Eduardo. O Cristianismo Moreno do Brasil. 1ª ed., Petrópolis: Vozes, 1991.

HORRELL, J. Scott (editor). Ultrapassando Barreiras.1ª ed., São Paulo: Vida Nova, 1994.

MESLIN, Michel. A Experiência Humana do Divino: fundamentos de uma antropologia religiosa. 1ª ed., Petrópolis: Vozes, 1992.

RIBEIRO, Darcy. O Povo Brasileiro: a formação e o sentido do Brasil. 2ª ed., São Paulo: CIA das Letras, 1995.

RODRIGUES, José Honório. Independência: revolução e contra-revolução. 1ª ed., Rio de Janeiro: Livraria Francisco Alves, volume II, 1975.

 

 

 

 

 

 

 

Pr. Roberto dos Reis, M. Th.

Mestre em Ciências da Religião pela Universidade Metodista de São Paulo (UMESP)

Coordenador Pedagógico do Instituto Bíblico das Assembleias de Deus (IBAD).

Coordenador do Curso de Teologia da Faculdade Bíblica das Assembleias de Deus (FABAD).

Bacharel em Direito pela Universidade de Taubaté (UNITAU)

Presidente das Assembleias de Deus Ministério em Taubaté (CEMADES)

Membro da Academia Paulista Evangélica de Letras – APEL.

Escritor e Articulista da Casa Publicadora das Assembleias de Deus (CPAD)

 

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[1] Em Conversas com Quem Gosta de Ensinar, Alves (2000, p.10) escreve: “Invoco o riso daqueles que perceberam o ridículo da seriedade. O riso é o lado de trás e de baixo, escondido, vergonha das máscaras sérias: nádegas desnudas de faces solenes. É só por isso que ele tem uma função filosófica e moral. O riso obriga o corpo à honestidade. Rimos sem querer, contra a vontade. Ele nos possui e faz o corpo inteiro sacudir de honestidade [...]”.

[2] A lagarta processionária alimenta-se de vegetações (folhas e flores). Elas se arrastam pela mata em fila indiana, uma colada na outra. O naturalista francês, Jean-Henri, ao estudar esses invertebrados, induziu um grupo dessas lagartas a circular em torno de um vaso. Unindo a primeira lagarta à última, formando um círculo, fez com que elas andassem em círculo, supondo que, após um longo período em torno do vaso, e já cansadas do percurso, tomariam outra direção. Mas isso não aconteceu. A marcha das lagartas processionárias, por força do hábito, continuou por dias, até a morte.

[3] Augusto Nicodemos, na apresentação da Teologia Sistemática de FERREIRA, Franklin; MYATT, Alan (2007, XV), confessa: “[...] não acredito em ‘teologia brasileira’. [...] não acredito que teologias sejam irreversivelmente determinadas pela nacionalidade de seus autores e nem pelo local onde foram escritas”.