Escravidão na indústria da moda

Dandara Andrade Salviano

De acordo com a história, a escravidão não existe mais. Ela foi formalmente abolida no Brasil através da Lei Áurea, assinada pela Princesa Isabel no dia 13 de maio de 1888. Quando pensamos em trabalho escravo, somos automaticamente remetidos a uma lembrança do passado, restrita apenas aos livros de História. Infelizmente, engana-se quem acredita não haver mais escravidão nos tempos modernos. Ela ainda permanece na atualidade, seja em países mais pobres, seja em países desenvolvidos, assumindo diferentes formas.

A escravidão não existe mais em sua forma tradicional, em um período pré-capitalista, quando era permitida pelo Estado. Antigamente, havia a exploração de negros e de índios, que viviam em senzalas onde ficavam presos e, às vezes, até algemados quando não estavam trabalhando. O trabalho exigia muito esforço físico e era realizado de sol a sol. Além disso, os escravos eram comercializados como se fossem mercadorias e sofriam violência física constantemente.

Com o passar do tempo, o conceito de escravidão mudou. Houve uma transição da sua forma histórica para sua forma contemporânea, presente nos dias atuais. Ambos os conceitos sempre foram ligados à restrição da liberdade, porém a escravidão contemporânea apresenta novas características, como define Schernovski, (2013):

Trabalho escravo contemporâneo é aquele em que o empregador sujeita o empregado a condições de trabalho degradantes, inclusive quanto ao meio ambiente em que irá realizar a sua atividade laboral, submetendo-o, em geral, a constrangimento físico e moral, que vai desde a deformação do seu consentimento ao celebrar o vínculo empregatício, passando pela proibição imposta ao obreiro de resilir o vínculo quando bem entender, tudo motivado pelo interesse de ampliar os lucros às custas da exploração do trabalhador. 

Há também o conceito de escravidão contemporânea formulado por Jorge Antônio Ramos Vieira (2010):

Processo de exploração violento de seres humanos cativos por dívidas contraídas pela necessidade de sobrevivência, e forçados a trabalhar porque não têm opção. Recrutados em bolsões de miséria, são levados para locais de difícil acesso, sem possibilidade de fuga, às vezes vigiados por homens armados, atraídos através de falsas promessas.

Sendo assim, é possível dizer que a escravidão contemporânea no Brasil assemelha-se à servidão. Ela pode ocorrer tanto na zona rural quanto urbana. Leonardo Sakamoto, coordenador da ONG Repórter Brasil, descreve como alguém se torna escravo atualmente:

Ao chegarem ao local do trabalho, eles são surpreendidos com situações completamente diferente das prometidas. Para começar, o gato [aliciador] lhes informa que já estão devendo. O adiantamento, o transporte e as despesas com alimentação na viagem já foram anotados no caderno de dívida do trabalhador que ficará de posse do gato. [...] despesas com os emporcalhados e improvisados alojamentos e com a precária alimentação serão anotados, tudo a preço muito acima dos praticados no comércio. Se o trabalhador pensar em ir embora, será impedido sob a alegação de que está endividado e de que não poderá sair enquanto não pagar o que deve. Muitas vezes, aqueles que reclamam das condições ou tentam fugir são vítimas de surras. (SAKAMOTO, 2012).

 

            A escravidão contemporânea está presente em diversos setores da economia como agricultura, pecuária, construção civil, indústria de tecnologia, carvoarias e no setor têxtil. A indústria da moda é uma das áreas com mais denúncias de trabalho escravo, incluindo grandes marcas. Esse setor, que é ligado ao luxo e à beleza, esconde uma realidade nada fascinante em seus bastidores. Para manter o mercado de moda lucrativo, a indústria submete seres humanos a condições precárias de trabalho. 

Nessa indústria, além da incidência de trabalhos análogos à escravidão, há muitos casos de tráfico humano. Pessoas são trazidas de outros países da América do Sul como Bolívia, Peru e Paraguai para serem exploradas em oficinas clandestinas de costura. Esses estrangeiros vêm para o Brasil acreditando em falsas promessas de trabalho, de alimentação e de moradia, mas encontram uma realidade bem diferente. As condições do espaço físico são insalubres, os trabalhadores sofrem constante pressão psicológica, cumprem jornadas exaustivas e são privados da liberdade.

            A lista de marcas da indústria da moda denunciadas por exercer trabalhos análogos à escravidão é extensa. Nela estão as famosas Ellus, Marisa, Pernambucanas, C&A, Zara, Collins, Gregory, M. Officer, Schutz, Le Lis Blanc, Bô.Bô e Luigi Bertolli. Segundo Cavalcanti, essas marcas mascaram uma cruel realidade.

Grandes grifes hasteiam a bandeira da responsabilidade social, do respeito, do comportamento ético e do compromisso com a verdade. Criam códigos de conduta que contemplam missões, valores e princípios dignos de um Estado Democrático de Direito e, com isso, vinculam sua imagem à probidade, ao decoro e aos direitos humanos. Contam com público fiel à marca e ao estilo de vida que lhe corresponde. Mascara-se, no entanto, uma realidade cruel e pungente: uma produção barata e degradante. Pulveriza-se intensamente a cadeia produtiva: contrata-se e subcontrata-se, dissipando-se os riscos da atividade. Negocia-se a prestação dos serviços sob o rótulo de relações estritamente comerciais. Paga-se pouco, muito pouco: o limite necessário para garantir o lucro máximo. (CAVALCANTI, 2013).

            Os trabalhadores explorados em oficinas de costura clandestinas acumulam dívidas que se tornam cada vez mais difíceis de serem quitadas. Isso ocorre porque eles têm que arcar com todas as despesas da casa como luz, água, produtos de limpeza e de higiene. Essa quantia é descontada do que eles recebem por mês, um valor muito baixo. Além disso, esses trabalhadores recebem um valor X por unidade produzida, sendo que essa mesma peça é vendida por um valor até 100 vezes maior nas lojas.

            Para combater a prática da escravidão contemporânea é preciso denunciar. Através das denúncias, o Ministério Público, o Ministério do Trabalho e a Polícia Federal iniciam um processo de investigações e de fiscalizações. Quando comprovada a existência de trabalho análogo à escravidão, as empresas e os seus responsáveis são multados e punidos. Segundo Cavalcanti, a luta contra a escravidão na indústria da moda e em todas as outras demanda colaboração da sociedade como um todo.

A situação exige reflexão. Demanda colaboração da sociedade civil organizada, dos órgãos públicos responsáveis pela luta contra a escravidão e, especialmente, do Judiciário. Impõe-se que os magistrados assumam um papel político proativo, tomando para si o dever de contribuir para a transformação da realidade social. É mister, em arremate, desvelar a omissão culposa da elite da moda e arrebentar os grilhões camuflados que acorrentam milhares de trabalhadores brasileiros. (CAVALCANTI, 2013).

            Portanto, é difícil acreditar que exista uma realidade de tamanha crueldade e covardia tão perto de nós. Trata-se da exploração de pessoas realizada por grifes de renome e de solidez econômica, das quais provavelmente já adquirimos produtos. É uma escravidão impune, pois não está visível aos olhos da sociedade. A melhor solução para combater esse crime talvez esteja em nossas mãos: o poder do consumidor. Quando compramos, estamos depositando nosso voto de confiança na empresa e na forma como aquela mercadoria foi produzida. É preciso fortalecer essa consciência e repugnar grifes que exercem trabalhos análogos à escravidão.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Referências

 

ARAÚJO, Richard de. Brasil: Escravidão contemporânea e propostas de combate. 04 abril 2012. Disponível em: <http://pt.globalvoicesonline.org/2012/04/04/brasil-escravidao-contemporanea-e-propostas-de-combate/>. Acesso em: 07 nov. 2014.

Closet Online. O trabalho escravo dentro da indústria da moda. 28 janeiro 2014. Disponível em: <http://closetonline.com.br/o-trabalho-escravo-dentro-da-industria-da-moda>. Acesso em: 07 nov. 2014.

ONG Repórter Brasil. Especial: flagrantes de trabalho escravo na indústria têxtil no Brasil. 12 julho 2012. Disponível em: <http://reporterbrasil.org.br/2012/07/especial-flagrantes-de-trabalho-escravo-na-industria-textil-no-brasil/>. Acesso em: 07 nov. 2014.

ONG Repórter Brasil. Trabalho escravo da moda: os grilhões ocultos da elite brasileira. 26 novembro 2013. Disponível em: <http://reporterbrasil.org.br/2013/11/os-grilhoes-ocultos-da-elite-brasileira/>. Acesso em: 07 nov. 2014.

Quando a moda escraviza. 27 maio 2014. Disponível em: <http://mudamais.com/ruas-e-redes/quando-moda-escraviza>. Acesso em: 07 nov. 2014.

SCHERNOVSKI, Valdeci. Trabalho escravo contemporâneo. 2013. Disponível em: http://advaldeci.jusbrasil.com.br/artigos/111749665/trabalho-escravo-contemporaneo. Acesso em: 07 nov. 2014.