A INCULTURAÇÃO DO RITO DE INICIAÇÃO FEMININO À PUBERDADE  NAS PROVÍNCIAS DO SUL DE ANGOLA

                                                                         

                                                                             Zacarias Joaquim Nayoma[1]                                         

 

RESUMO

O presente artigo é explanação do ritual de iniciação feminino à puberdade, praticados pelos povos do sul de Angola. Busca demostrar e debater a riqueza cultural única deste povo e a inculturação deste rito como mecanismo eficaz de evangelização, visto que o homem nada na cultura como um peixe nada na água, se for retirado ele morre.

Busca-se também indicar os argumentos dos que acham que este rito não deveria ter espaço na igreja e dos seus defensores, sem menosprezar o excelente percurso histórico da inculturação de forma geral a nível do mundo.

Pretendeu-se abordar de forma neutra os seguintes aspectos: Festa da puberdade no sul de Angola praticada nas aldeias, detalhando sua originalidade e a versão inculturada -pela igreja- sem descurar o seu argumento esgrimido.

Palavras-chave: Inculturação, Iniciação feminina à puberdade, Filosofia africana.

 

  1. FESTA DA PUBERDADE NO SUL DE ANGOLA

Em Angola, os ritos de iniciação feminina à puberdade são praticados maioritariamente pelos grupos: Nyaneka, Humbe, Mucubal, Cuanhama, Nganguela, Tshokwe, Ambó. É um rito de maturidade, uma dramatização da ruptura e incorporação na idade adulta.

Depois do rito que vela pela admissão do recém-nascido ao grupo (pitapondje na língua Nhaneca), pela qual a criança adquiria um nome, os rituais de iniciação a puberdade (Efiko ou ekuendje[2]) era a segunda cerimónia pública da vida de uma pessoa, sendo o casamento a terceira. Mais que uma vinculação religiosa, os rituais de iniciação a puberdade estabelecia vínculos sociais muito fortes do indivíduo com a sociedade a qual pertence, tendo destacado papel nos laços de sociabilidade.[3]

Nalguns grupos estes ritos duravam meses e até anos. Assim sendo instruíam a rapariga para todas as funções femininas. Duram três ou quatro dias, reduziram a cerimónia única e realiza-se nas aldeias e casa paterna.

A rapariga deve apresentar-se virgem a estes ritos, se não sofre vexações e paga indeminização e atrai vergonha para si e para sua mãe, responsável pela sua educação. Noutrora eram mortas com uma lança.

Se aparecer grávida, costumavam ser mortas. Se uma rapariga Cuanhama dava à luz, antes do efundula, prenunciava a morte do soberano. O nascimento dum menino, cuja mãe não passou por este rito, é um indício muito funesto.[4]

  1. Gestos mágicos que proporcionam a neófita a desejada fecundidade

Os gestos mágicos que muitos grupos conservam durante o ritual de iniciação feminino à puberdade são os seguintes:

  1. As raparigas Cuanhamas no 3º dia do Efundula[5] bebem uma cerveja especial, misturada com drogas e um pouco de esperma dum circuncidado doutro grupo, pois eles não praticam a circuncisão.
  2. Entre os cuamatos, no olufuko, numa cerveja que a mestra anciã prepara com drogas, retira-se uma porção põe-se numa taça onde um circunciso lava três vezes seu membro viril e a neófita bebe um gole desta porção. O resto, a mãe derrama-lhe pelo baixo-ventre até correr por uma enxada, que lhe colocaram debaixo dos membros inferiores.
  3. Durante os ritos as raparigas são tatuadas no ventre e região púbica. À esta tatuagem atribuem-se um poder fecundante e sobretudo afrodisíaco. Por conseguinte, onde a iniciação não existe as mulheres também são tatuadas.
  4. Em muitos grupos a jovem é desflorada, a ruptura do hímen é prova da feminilidade adulta e, este rito também pode se chamar de rito de nubilidade, porque dispõe e prepara-as imediatamente para o casamento[6]

Deve-se realçar que entre os Nyaneka usava-se o ovo como um dos instrumentos para diagnosticar virgindade da rapariga. Colocava-se o ovo nos órgãos genitais, se não entrar infere-se que o hímen está intacto, mas se entrar conclui-se que a jovem já foi desflorada.

Também deve-se dizer que existem alguns mitos relacionados ao Efiko, nas culturas africanas os mitos são para persuadir os jovens aderir certos hábitos culturais. Um dos mitos era que se uma rapariga não passar pelo Efiko seus filhos morrerão todos, ora, se entre os povos que não praticam o rito de iniciação feminino à puberdade todos filhos chegam a viver então, quem dentro cultura não o fizer não terá problemas nenhum, como têm tido mesmo problemas nenhum.

Eis, o enquadramento filosófico do Efiko. Os ritos de puberdade definem oficial e publicamente a capacidade, valor e estima como procriadora-vivificadora. Porque recebe o estatuto social, jurídico e religioso de mulher adulta na e para a comunidade. Isto insere-se no que Placid Templs em sua obra Bantu Philosophy designou de princípio vital, conceito que orienta o princípio da força para a participação vital do muntu, pessoa, na ordem cósmica, no qual está interdito de criar de caos no grupo social e na natureza[7]. A iniciada já tem em si o princípio vital.

Platão chamou de cartase a descriminação que conserva o melhor e rejeita o pior, pensa-se que é isto que a igreja pretendeu ao inculturar a festa da puberdade, tendo em conta o ritual feminino original deste povos.

Catarse é a libertação do que é estranho à essência ou à natureza de uma coisa e que, por isso, a perturba ou corrompe.[8]

Há quem negue a existência da Filosofia em África, dizendo que ela está eivada de ideologias que retiram dela este estatuto e, que a filosofia é uma atitude eminentemente gnosiológica, faz com que o filósofo vá a busca do conhecimento usando a razão e certos métodos. O que dizer das respostas apresentadas pelos primeiros filósofos cosmológicos sobre a origem de todo existir? (Tudo surgiu da água, doo apeiron, do número, do indeterminado etc). Não serão estes elementos relacionados à ideologia.

Negar a existência da Filosofia em África seria tomar uma atitude eurocentrista e esclavagista que reduz o negro africano a nada, com intuito, de justificar a sua exploração. Atitude antiga que parece persistir subtilmente nos dias de hoje.

 

  1. HISTÓRIA DA INCULTURAÇÃO

A inculturação é tão antiga que a podemos encontrar nos primórdios do povo judeu, a práticas e festas que noutrora não faziam parte do costume do povo de Deus, foram adoptadas e enraizaram-se tornando valores religiosos, a título de exemplo temos: a circuncisão, o sacrifício da primavera, o repouso do sabbat, que as adquiriu de outros povos seus vizinhos, todavia transformou-as levando ao crivo de Deus, incorporou-as na sua fé e pratica religiosa.[9] E isto se estendeu desde o universo Romano até ao oriente.

Inculturação é um termo cunhado pela igreja. É um neologismo “teológico”, criado na década de 70 e “canonizado” oficialmente no Sínodo Romano de 1977, para significar a missão da Igreja em relação às culturas da humanidade[10]. Por isso, será difícil aparecer num dicionário comum.

O diálogo entre a cultura e o evangelho dá-se por meio da inculturação, pois há momentos em que o evangelho choca com a cultura, e a inculturação torna-se numa íntima transformação dos autênticos valores culturais pela integração do cristianismo nas diversas culturas humanas.  

            A inculturação é uma forma eficaz de evangelização, pois ela é a incarnação do Evangelho nas culturas autóctones e, simultaneamente, a introdução destas culturas na vida da Igreja.[11]

 

  1. PERCURSO HISTÓRICO DO RITO DE INICIAÇÃO FEMININO À PUBERDADE NA IGREJA

O Território que hoje se chama Angola, antes era um conjunto de reinos, foi neste contexto em que chegaram os primeiros missionários por volta de 1482. Apesar da igreja em Angola ser mais antiga que o Estado, cronologicamente as culturas destes povos podem ultrapassar o surgimento do cristianismo. Diz-se que os povos do sul de Angola encarnaram o evangelho tarde em detrimento do demais. 

O ritual de iniciação feminino à puberdade foi introduzido na igreja depois de muitos estudos feitos pelo então 1º bispo da diocese de Sã da bandeira, Dom Altino Ribeiro Santana, Goês, chegou até ao governo de D. Franklin da Costa que presidiu alguns ritos. E continuou a existir neste momento com os Bispos D. Zacarias Kamuenho e D. Gabriel Mbilingue.[12]

Hodiernamente faz-se uma actividade de 3 dias que culmina com uma missa, nesta actividade há palestras e conta-se com a presença de irmãs consagradas que convidam as Mufikos a abraçar a vida consagrada e apelam-nas que isto não significa que tem livre acesso ao casamento ou a vida sexual.

“A iniciação tradicional africana vai fazer não só aderir fortemente à fé cristã, mas também perseverar até ao fim no caminho da salvação oferecida por Deus e garantida pela morte e ressurreição de Jesus Cristo.” E tem as seguintes finalidades:

  1. Instruir e educar: a iniciação é uma escola que visa a instrução e a educação das crianças ou dos adolescentes a fim de facilitar a sua entrada na idade adulta ou apenas numa confraria especializada (profissional, religiosa ou mística);
  2. Facilitar a procriação: ser um homem, uma mulher é antes de mais tornar-se apto para a procriação, isto é, entrar no processo universal da vida;
  3. Sacralizar o homem: a iniciação, enquanto rito de passagem, sacraliza o homem. Este passa da condição de menino-natureza para homem-cultura. Passa da morte à vida porque a iniciação é uma encenação de morte ritual seguida de renascimento simbólico. É uma passagem do nascimento individual e biológico a um nascimento social e colectivo, simbolizado pelos banhos rituais, por vestes novas e pela atribuição de nomes iniciáticos. [13]

Deve-se frisar o facto de quando o Efundula é feito na igreja ter uma adesão massiva, diz-se que há pessoas que vem até do país vizinho da Namíbia, de outras denominação religiosas evangélicas. Entre os ovimbundo de Benguela há alguns que também fazem o rito de inicialização feminina à puberdade. 

 

  1. Posição dos críticos face a prática do ritual na igreja

Pensam-se os que criticam a festa da puberdade na igreja, fazem-no sob o prisma do evangelho e apontam os seguintes erros: julgam-na eivada de ritos "pagãos" entre os quais apontam "a prática do acto sexual e a bebida ritual de macau (cerveja tradicional local) misturada com esperma do mwene-eumbo (Soba)".[14] A crítica é feita tendo como base a concepção original deste ritual nas aldeias.

 

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A inversão de valor chegou a um nível que até parece que a sociedade está a inclinar-se para o abismo: algumas raparigas estão tão apressadas para perder a pureza e outras arrogam-se pelo facto de já não serem virgens.

A Etnofilosofia é uma das correntes da chamada filosofia africana inclinada ao estudo ou conhecimento dos diferentes povos e da sua visão sobre o mundo. E o Efiko é a cosmovisão dos povos do sul de Angola.

A originalidade de uma cultura não é caracterizada por sua inclinação sobre si mesma, mas pela rica contribuição que traz para toda humanidade.[15] O Efiko privilegia a virgindade, concomitantemente o matrimónio e a família, se existirem famílias espiritual e moralmente saudáveis, teremos igreja e sociedade saudáveis.

A negritude sendo uma das correntes da chamada filosofia africana é uma concepção ideológica que defende a exaltação da civilização e valores da tradição africana, distinto de outras culturas. Esta concepção surgiu para ripostar a ideia de que África não tinha cultura própria, difundida pela cultura francesa nos territórios dos povos colonizados.[16] Assim sendo, diferente dos colonizadores, a igreja pela inculturação exalta as culturas dos povos.

A festa da puberdade como valoriza a virgindade, por conseguinte o matrimónio e a família deve ser aproveitada, ao invés de ser extirpada. Por quanto, o homem nada na cultura como um peixe nada na água, e se for afastado ele morre, retirando a cultura mata-se este povo.

 

 

BIBLIOGRAFIA

Abbgnano, N. (2007). Dicionário de Filosofia:. São Paulo: Martins Fontes.

Altuna, R. (2014). Cultura tradicional Bantu (2ª ed.). Luanda: Paulinas.

Comissão Teológica Internacional. (1988). Fé e Inculturação. Obtido em 14 de Fevereiro de 2023, de vaticana: http://www.vaticana.com

Lau, R., & Kaparakate, P. (2006). Filosofia 12ª classe (1ª ed.). Luanda: Textos editores.

Lopes, N., & Macedo, J. (2017). Dicionário de História de África: Séculos VII a XVI (1ª ed.). Belo Horizonte: Autêntica.

Malavoloneke, C. (2011). Divisão da Igreja no sul de Angola: Madres rompem o silêncio. CLUB-K ANGOLA - Notícias Imparciais de Angola.

PauloVI. (8 de Dezembro de 1975). Exortação apostólica «Evangelii nuntiandi» sobre a evangelização no mundo moderno. caminhos.

Prata, A. (2021). O lugar de Angola no contexto da Teologia Africana: A Didáskw e outras publicações como casos de estudo. Lisboa: Faculdade de Teologia da Universidade Católica Portuguesa.

 

 

[1]É mestre em Governação e Gestão Pública, pelo Centro de Pesquisas em Políticas Públicas e Governação Local (CPPPGL) da Faculdade de Direito da Universidade Agostinho Neto. Licenciado em Ciências da Educação na opção de Filosofia, pelo Instituto Superior de Ciências da Educação (ISCED-Huíla) - Angola. No mesmo instituto tem leccionado as cadeiras de Práticas Pedagógica I e de Filosofia da Linguagem, como professor convidado, Lecciona também as cadeiras de Filosofia e Sociologia no Liceu nº 454 da Chibia. 

[2] O Efiko em Lunyaneka, língua do povo Nyaneka é usada para designar o rito de iniciação feminino à puberdade, que marca a transição das raparigas para a vida adulta. E o ekuendje é o rito de iniciação masculino à puberdade no qual os rapazes recebem o estatuto político, social e económico de homens adultos.  

[3] Lopes, Nei; Macedo, José. Dicionário de História de África: Séculos VII a XVI, 2017

[4] Altuna. Cultura tradicional Bantu 2014 p. 294-295

[5] Efundula na língua dos Cuanhamas é o rito de iniciação feminino à puberdade.

[6] Altuna. Cultura tradicional Bantu 2014 p. 296

[7] Lau; Kaparakate. Filosofia 12ª classe, texto editores-Luanda 2006, p. 89

[8] Abbgnano. Dicionário de Filosofia, 2007

[9] Comissão Teológica Internacional, 1988

[10] Arautos.org © 2024

[11] Paulo VI, Exortação apostólica «Evangelii nuntiandi» sobre a evangelização no mundo moderno, 8 de Dezembro de 1975, n. 48 (Caminhos, p. 473). Apud Comissão Teológica Internacional op.cit

[12] Malavoleneke, 2011

[13] Luís Konjimbe, «A Iniciação africana e Iniciação Cristã em Angola», DIDÁSKW nº 20, Vol. 3, (Huambo:

CERETEC, 2014 2014 apud

[14] Malavoloneke. Divisão da Igreja no sul de Angola: Madres rompem o silêncio, CLUB-K ANGOLA - Notícias Imparciais de Angola, 2011

[15] Comissão Teológica Internacional, 1988 op. cit

[16] Lau; Kaparakate, op.cit p. 87