A ÉTICA AMBIENTAL NO PENSAMENTO DE PETER SINGER:

UM ENSAIO SOBRE O CAPÍTULO X DA OBRA ÉTICA PRÁTICA[1]

 

Teixeira Gregório Jamba[2]

Enquadramento teórico

Peter Singer é Professor de Bioética na Universidade de Princeton, nos Estados Unidos da América, nasceu na Austrália, foi eleito o Humanista do Ano pelo Conselho de Sociedades Humanistas Australiano em 2004, configura-se como um dos grandes nomes da Ética Aplicada. No ano de 1979, o filósofo australiano publicou “Practical Ethics[3] obra que nos propusemos a analisar, com particular atenção ao décimo capítulo. Um livro onde apresenta os mais variados temas sobre aplicação da moral, tratando questões como o tratamento das minorias étnicas, a igualdade das mulheres, a utilização de animais para alimentação e investigação, a conservação do meio ambiente, o aborto, a eutanásia, pobreza e tantos outros dilemas éticos que perpassam nossa época.

A Ética Prática ou Aplicada conceitua-se, nas palavras do filósofo australiano, como a área onde filosofia é praticada na sua melhor tradição argumentativa sobre os vários problemas da humanidade do nosso tempo, com a tentativa de produzir respostas convincentes.

  1. O ambiente

Na sua introdução ao capítulo, Singer, procura entrar para o debate do uso de produtos que contribuem para depleção da camada de ozone ou para efeito de estufa, construção de centrais nucleares, construção de barragens, desmatamento das florestas e tantos outos assuntos ambientais do século XX. Busca explorar os valores subjacentes à preservação do ambiente natural.

Aponta o mesmo que, o homem moderno é confrontado, a todo instante, a encarar o problema da escolha entre valores, entre: abater uma floresta virgem, construir uma fábrica de papel que liberta poluentes nas águas costeiras ou abrir uma nova mina nos limites de um parque nacional. Nesse sentido, seria questionável o benefício que estás acções trariam para homem e para os demais seres não humano. Pois, pode se dizer, em geral, que quem é favorável à construção da barragem valoriza mais o emprego e um maior rendimento per capita que a preservação do meio natural, das plantas e dos animais (tanto dos comuns como dos que pertencem a espécies em vias de extinção), bem como as oportunidades para actividades recreativas ao ar livre. Ou seja, em função dos nossos valores e da relação que estabelecemos com o meio natural somos levados a escolher uma (mais emprego e rendimento económico) e não outra (preservação do meio natural e actividades recreativas ao ar livre).

  1. A tradição ocidental

Nos dizeres de Singer, as atitudes ocidentais relativamente à natureza surgiram de uma mescla das do povo hebreu, tal como estão representadas nos primeiros livros da Bíblia, e da filosofia dos Gregos antigos, em particular Aristóteles. Em contraste com outras tradições antigas, como, por exemplo, as da Índia, tanto as tradições hebraicas como gregas consideravam o ser humano o centro do universo moral; na realidade, não apenas o centro, mas, com muita frequência, a totalidade das características moralmente significativas deste mundo. A história bíblica da criação, relatada no Génesis, põe a nu a perspectiva hebraica do lugar especial que os seres humanos ocupam no plano divino.

Lendo Singer se pode entender, a partida, que há evidências de que a tradição ocidental quer antes como depois da Revolução Industrial contribuiu para degradação do seu meio natural, com narrativas em favor do homem como dono e senhor da Natureza.

O autor faz recurso para sustentar o seu argumento à narrativa bíblica escrita nos seguintes termos: “Façamos o ser humano à nossa imagem, à nossa semelhança, para que domine sobre os peixes do mar, sobre as aves do céu, sobre os animais domésticos e sobre todos os répteis que rastejam pela terra.” Deus criou o ser humano à sua imagem, criou-o à imagem de Deus; Ele os criou homem e mulher. Abençoando-os, Deus disse-lhes: “Crescei e multiplicai-vos, enchei e dominai a Terra. Dominai sobre os peixes do mar, sobre as aves dos céus e sobre todos os animais que se movem na Terra”. Assim, construíram-se bases para compreensão de um homem que recebeu a Natureza para fazer dela o que bem entender, porque lhe foi permitido pelo Criador.

Com a crescente degradação do meio natural no ocidente, abriu-se a possibilidade de debate sobre esse “domínio”, sendo que os que se preocupam com o ambiente não interpretam como sendo uma licença dada por Deus para se fazer o que quisermos com os restantes seres vivos, mas como uma directiva para cuidar deles em nome de Deus e ser responsável perante Deus pela forma como os tratamos, entende o filósofo.

Nas suas palavras, o autor entende que, quando o cristianismo triunfou no Império Romano, absorveu também elementos da atitude dos Gregos antigos para com o mundo natural. A influência grega foi levada para a filosofia cristã pelo maior dos escolásticos medievais, Tomás de Aquino, cuja obra da sua vida foi a fusão da teologia cristã com o pensamento filosófico de Aristóteles. Aristóteles encarava a natureza com uma hierarquia em que os seres de menor capacidade de raciocínio existiam para benefício daqueles com maior capacidade de raciocínio: assim sendo, temos de admitir manifestamente que, de modo semelhante, as plantas existem para a subsistência dos animais, quando adultos, e que os outros animais existem para o bem do homem; os animais domésticos, para uso e alimentação, e os animais selvagens (se não todos, pelo menos a maior parte) para alimentação e outras carências, de modo a obtermos vestes e outros instrumentos a partir deles. Se a natureza nada faz de imperfeito ou em vão, então, necessariamente criou todos estes seres em função do homem.

Acompanhando o pensamento de Singer se pode entender que, esta compreensão de Aristóteles permitiu olhar para os demais seres não humanos como estando a serviço e total disposição do homem, descurando o valor que cada ser tem na Natureza. Pois, a planta, o animal e outros seres vivos podem existir sem o homem, mas este não consegue sem eles. Então, quem precisa de quem? Embora para a tradição ocidental Deus tenha concedido-lhes o mundo natural para seu domínio e que a destruição de plantas e de animais só é pecado se prejudicar o homem, é preciso compreender que os humanos não são os únicos membros moralmente importantes no mundo. A própria Natureza possui valor intrínseco.

Apesar da sua severidade, nas palavras do autor, alguns consideram que esta tradição não exclui a preocupação pela natureza, desde que essa preocupação se possa relacionar com o bem-estar humano. É claro que muitas vezes isso pode acontecer. Do mesmo modo, muitos argumentos contra a poluição, o uso de gases que danificam a camada de ozone, a queima de combustíveis fósseis e a destruição das florestas podem ser apresentados em termos do prejuízo para a saúde e bem-estar humanos que os poluentes provocam ou das mudanças de clima que resultam da utilização de combustíveis fósseis e da perda de manchas florestais. Deste modo, é óbvio que a conservação do nosso ambiente é um valor de maior importância, mesmo no quadro de uma moral antropocêntrica.

Ainda assim, considera o filósofo australiano que essa tradição exclui a Natureza das suas preocupações por ter uma visão valorativa unitária em seu benefício. Pois, não podemos cuidar de alguma coisa apenas para o nosso bem-estar, e sim, para preservação de toda espécie. Portanto, entende-se com isso que, uma moral antropocêntrica aplicada ao meio ambiente levaria a elevar os níveis de degradação do meio natural como aconteceu no mundo ocidental. A solução passa por uma moral biocêntrica onde a vida de qualquer ser seja o ponto de partida para a valoração, visando atingir um bem para a maioria.

No ocidente, houve um tempo em que aldeias rodeadas de quintas pareciam oásis de terras de cultivo no meio de manchas de floresta ou de agrestes encostas montanhosas. Hoje, porém, é mais apropriada uma metáfora diferente: o que resta da verdadeira vida selvagem é como ilhas no meio de um mar de actividade humana que ameaça destruí-las. Dito de outro modo, as actividades humanas têm exercido grande influência na vida selvagem e marítima, soando os alarmes da destruição do meio natural, obrigando a mudança de abordagem de uma posição de domínio para a posição de partilha entre o homem e os demais seres do meio natural.

  1. As gerações do futuro

Uma floresta virgem é o produto dos muitos milhões de anos que passaram desde a origem do nosso planeta. Se for abatida, pode crescer uma nova floresta, mas a continuidade é interrompida. A ruptura nos ciclos de vida natural de plantas e animais significa que a floresta nunca voltará a ser aquilo que teria sido se não fosse cortada. Os ganhos obtidos com o abate da floresta - emprego, lucros das empresas, ganhos em exportações e papel e cartão de embalagem mais baratos - são benefícios de curto prazo. No entanto, a vida não se restringe apenas aos seres viventes hoje, pois, a cada dia novos seres vêm ao mundo, e esses precisam de um meio natural sadio para se manterem vivos. E pensar nos benefícios a curto prazo é hipotecar as futuras gerações de humanos e não humanos. Pensa ele que, trata-se de um custo que será suportado por todas as gerações que nos sucederem sobre o planeta. É por essa razão que os ambientalistas têm razão quando falam do meio natural como um “legado mundial” ou “lógica da sucessão do legado do património natural”. Sendo algo que herdámos dos nossos antepassados e que temos de preservar para os nossos descendentes, se não os quisermos privar desse bem.

Ao contrário de muitas sociedades humanas mais estáveis, orientadas pela tradição, o nosso sistema político e cultural moderno, no caso ocidental, tem grande dificuldade em reconhecer valores de longo prazo, constata o filósofo. Mostrando como o ocidente não parou para pensar a maneira como o crescimento económico, o emprego, o urbanismo não poderiam servir de pretexto para destruir o seu meio natural. Pois, reitera o mesmo, há coisas que, uma vez perdidas, nenhum dinheiro do mundo pode reconquistar, e hoje temos visto no ocidente o clamor para recuperar ou pelo menos diminuir o nível de impacte no seu meio natural por conta de vários desastres naturais que vão sofrendo. Assim, justificar a destruição de uma floresta antiga com base na ideia de que nos trará um substancial rendimento nas exportações é um disparate, mesmo que pudéssemos investir esse rendimento e aumentar o seu valor de ano para ano; é que, por muito que esse valor aumente, nunca poderá voltar a comprar a ligação com o passado que a floresta representa.

Há valor estritamente intrínseco ao meio natural. Este valor estará obviamente relacionado com o significado paisagístico ou biológico particular da floresta; mas, à medida que a proporção do meio verdadeiramente selvagem diminui, cada pedaço que resta torna-se mais importante, pois as oportunidades para se desfrutar a vida selvagem tornam-se escassas, reduzindo-se a probabilidade de uma selecção razoável das principais formas de vida selvagem a serem preservadas. Com isso, o filósofo defensor da ética utilitarista, se pode formular a ideia da tradição ocidental não ter levado em conta o “legado mundial” a ser deixado para as próximas gerações e dar a possibilidade destes estarem ligados ao valor estético e biológico do meio natural. O apreço pela natureza nunca foi tão grande como actualmente, em especial nos países que resolveram os problemas da pobreza e da fome e onde restam relativamente poucas terras virgens, com particularidade na tradição ocidental. Se, como todos temos esperança, as futuras gerações forem capazes de satisfazer as necessidades básicas da maioria das pessoas, é de esperar que, durante séculos, também elas valorizarão a natureza pelas mesmas razões que nós. Para o efeito, é preciso começar a criar na criança de hoje e adulto de amanhã o sentimento de sensibilidade, partilha e cuidado do meio natural, sob pena de corta-se o cordão umbilical da possibilidade de existência humana.

Até certo ponto, compreende o autor que, depende de nós que as futuras gerações gostem ou não da natureza; trata-se, pelo menos, de uma decisão sobre a qual podemos exercer alguma influência. Mediante a nossa preservação da natureza, damos uma oportunidade às futuras gerações e, por meio de livros e filmes e outras formas de ensino, criamos uma cultura que pode ser transmitida aos nossos filhos e aos nossos netos.

Neste caso, também o esforço para mitigar o efeito de estufa merece a maior prioridade. Porque, nos faz perceber o australiano, se por “meio natural” nos referimos à parte do nosso planeta que não está afectada pela actividade humana, talvez seja demasiado tarde: pode não restar qualquer meio natural no nosso planeta.

Bill Mc Kibben que defendeu que, ao contribuirmos para a diminuição da camada de ozone e para o aumento do teor de dióxido de carbono na atmosfera, já deram origem à mudança condensada no título do seu livro, “O Fim da Natureza”: “Ao alterarmos o clima, tomamos todos os recantos do planeta forjados pelo homem e artificiais. Privámos a natureza da sua independência, o que é fatal para o seu sentido e nosso destino”. Ao dialogar com o ambientalista americano, Singer pretendia passar a ideia de que, o mundo ocidental transformou de tal forma o seu meio natural com o processo avançado de industrialização que clama por um ar não poluído e natural.

O filósofo em análise também concorda com o ambientalista americano quando afirma o seguinte: “vivemos num mundo pós-natural”. Ninguém pode desfazer isso; o clima do nosso planeta está sob a nossa influência. Ainda nos resta muito daquilo que valorizamos na natureza e ainda é possível salvar o que resta. Se assim for, pode se entender que, a logica da exploração da natureza em favor do crescimento económico deve ser invertida, porque as acções, no ocidente, têm demonstrado um comportamento na contramão do pretendido. Portanto, faz-se necessário ensinar a amar a Natureza.

  1. Haverá valor para lá dos seres sencientes?

Embora alguns debates sobre temas ambientais importantes possam ser conduzidos apelando apenas para os interesses a longo prazo da nossa espécie, um tema central em toda a abordagem séria dos valores ambientais será a questão do valor intrínseco de todos os seres não humanos, nos dizeres de Singer.

Nos dizeres do autor, uma coisa tem valor intrínseco se for um bem ou desejável “em si”; contrapõe-se ao “valor instrumental”, ou seja, o valor como meio para um outro fim ou objectivo. A nossa felicidade, por exemplo, tem valor intrínseco, pelo menos para a maioria de nós, pelo facto de a desejarmos por si mesma. O dinheiro, por outro lado, só possui valor instrumental. Queremo-lo devido às coisas que com ele podemos comprar; mas, se estivéssemos perdidos numa ilha deserta, não precisaríamos dele para coisa alguma. (Ao passo que a felicidade seria tão importante para nós numa ilha deserta como em qualquer outro lugar.) Isso nos levaria a interpretação de que, o mundo ocidental criou uma relação de instrumentalização da Natureza por conta do que denominamos de recursos advindos dela para obtenção de lucro.

Será que também devemos ponderar não apenas o sofrimento e a morte dos animais individuais, mas também o facto de uma espécie inteira poder desaparecer? O australiano responde nos seguintes termos: É mais do que evidente que a intervenção do homem na Natureza desestabiliza o meio natural de outros seres vivos, criando deslocação de habitat natural e mortes de algumas espécie de plantas e animais. Portanto, adverte o filósofo, é preciso criar um desacordo sobre o tipo de seres que devemos ter em consideração na nossa deliberação moral porque não somos os únicos seres sencientes.

  1. Reverência pela vida

A inundação de florestas antigas, a possível perda de uma espécie na sua totalidade, a destruição de vários ecossistemas complexos, o próprio bloqueamento do rio e a perda dessas gargantas rochosas são factores a ter em consideração apenas na medida em que afectarem adversamente criaturas sencientes. Será possível uma ruptura mais radical com a posição tradicional? A esta pergunta, Singer entende que sim, desde que se alarga a abordagem ética de modo a abarcar os seres sencientes e não sencientes.

Provavelmente, a defesa mais conhecida de uma ética que se alarga a todos os seres vivos é a de Albert Schweitzer, compreende ele. A expressão que usava, “reverência pela vida” ou “vontade de viver”, é muitas vezes citada; os argumentos que propôs em apoio dessa posição são menos conhecidos. Eis uma das poucas passagens em que defendeu a sua ética:

“Sou vida que quer viver e existo no meio de vida que quer viver.” [...] Tal como na minha própria vontade de viver, há um anseio por mais vida e por essa misteriosa exaltação da vontade que se chama “prazer”; e terror face ao aniquilamento e a esse insulto à vontade de viver que se chama “dor”; tudo isso predomina igualmente em toda a vontade de viver que me rodeia, quer se exprima de modo acessível à minha compreensão quer se conserve muda. Ou seja, a vida possui um valor sagrado, o homem só é verdadeiramente ético se evitar danos e buscar socorrer qualquer ser vivo. Singer considera enganador a tentativa Schweitzer levar-nos para uma ética do respeito por todas as formas de vida, referindo-se a “anseio”, “exaltação”, “prazer” e “terror”. As plantas não sentem nada disso.

Uma abordagem semelhante foi defendida pelo filósofo americano contemporâneo Paul Taylor. No seu livro “Respect for Nature”, Taylor defende que todo o ser vivo “procura o seu próprio bem à sua maneira única”. Desde que compreendamos isto, de acordo com o autor, podemos encarar todos os seres vivos como “nos encaramos a nós”, e portanto “estamos prontos a atribuir à sua existência o mesmo valor que atribuímos à nossa”. Aqui, entramos na ideia do altruísmo eficaz defendido pelo filósofo australiano.

  1. Ecologia profunda

Fazendo um enquadramento histórico sobre uma das correntes da Ética Ambiental do século XX, Singer aponta que, há mais de 40 anos, o ecologista americano Aldo Leopold escreveu que havia a necessidade de uma “nova ética”, uma “ética que trate das relações do homem com a terra e com os animais e plantas que nela crescem”. A “ética da terra” que propôs alargar as “fronteiras da comunidade, abrangendo solos, águas, plantas e animais e, colectivamente, a terra”. A ascensão das preocupações ecológicas no início dos anos 70 do mesmo século levou a um interesse renovado por esta atitude. Portanto, uma atitude que buscava mudar o paradigma ora vigente da tradição ocidental, onde a relação do homem com o meio natural era estabelecida em benefício do homem.

Na mesma linhagem, o filósofo norueguês Arne Naess, referenciado pelo filósofo australiano, escreveu um artigo breve, mas influente, onde distingue as tendências “superficiais” das “profundas” no seio do movimento ecológico. O pensamento ecológico superficial estava limitado ao quadro moral tradicional; os seus partidários desejavam ardentemente impedir a poluição das nossas reservas de água, de modo a podermos ter água potável para beber, e procuravam preservar o meio natural de modo que as pessoas pudessem continuar a desfrutar os prazeres da natureza. Diferente da moral tradicional, os ecologistas profundos queriam preservar a integridade da biosfera unicamente por si mesma, independentemente dos possíveis benefícios para os seres humanos que poderiam daí advir. Construindo uma nova abordagem ética sobre o meio ambiente, uma abordagem ecossistémica, sem exclusão de qualquer vida e vontade de viver no planeta terra. Pois, as propostas da ecologia profunda têm tendência para considerar algo mais vasto como objecto de valor: as espécies, os sistemas ecológicos ou mesmo a biosfera no seu todo.

Singer traz a ideia de Leopold para sustentar a ideia de que, uma nova ética da terra para este significaria: “uma coisa é um bem quando tem tendência para preservar a integridade, a estabilidade e a beleza da comunidade biótica. É um mal quando tem a tendência contrária”. Por outro lado, num artigo publicado em 1984 por dois filósofos da mesma corrente, Arne Naess e George Sessions, estabeleceram diversos princípios para uma ética ecológica profunda, começando com os seguintes:

  1. O bem-estar e o desenvolvimento da vida na Terra, humana e não humana, têm valor em si (sinónimos: valor intrínseco, valor inerente). Estes valores são independentes da utilidade do mundo não humano para finalidades humanas.
  2. A riqueza e a diversidade de formas de vida contribuem para a realização desses valores e também são valores em si.
  3. Os seres humanos não têm o direito de reduzir esta riqueza e diversidade excepto para satisfazer necessidades “vitais”.

Embora estes princípios se refiram apenas à vida, Naess e Sessions afirmam no mesmo artigo que a ecologia profunda usa o termo “biosfera” de uma forma mais abrangente para se referir também a coisas não vivas, como os rios (bacias hidrográficas), paisagens e ecossistemas. Por outro lado, dois australianos que trabalham na área da ética ambiental profunda, Richard Sylvan e Val Plumwood, também foram mencionados por Singer porque alargam a sua ética além dos seres vivos, incluindo nela uma obrigação de não “pôr em risco o bem-estar de objectos ou sistemas naturais sem uma boa razão para o fazer”. Ou seja, a ecologia profunda transpassa a moral tradicional antropocêntrica olhando para todos os organismos que possuem vida e não só.

Trata-se de um tema comum entre os ecologistas profundos, que muitas vezes se alarga além dos seres vivos. No livro “Deep Ecology”, Bill Devall e George Sessions defendem uma forma de “igualitarismo biocêntrico”, explicita nos seguintes termos nos dizeres de Singer:

A igualdade biocêntrica é a de que todas as coisas da biosfera têm o mesmo direito de viver, de se desenvolverem e de atingirem as suas próprias formas individuais de desenvolvimento e de auto-realização no seio da auto-realização mais vasta. A intuição fundamental é a de que todos os organismos e entidades da ecosfera, como partes do mundo interligado, são iguais em termos de valor intrínseco.

Mais uma vez, o entendimento que o autor nos transmite é da tentativa de criar-se a ruptura com a moral tradicional ocidental que compreende que o direito de viver e de se desenvolver como organismo vivo é exclusividade dos humanos, enquanto a ecologia profunda aparece para privilegiar o meio natural como um todo, num processo de relação igualitária ou equitativa como se pretende. 

Será porque todo o ser vivo desempenha um papel no ecossistema de que depende para a sua sobrevivência? Alerta Singer, em primeiro lugar, mesmo que isso mostrasse que existe um valor intrínseco nos microrganismos e nas plantas no “seu todo”, nada diz sobre o valor de microrganismos ou de plantas individuais, visto que nenhum indivíduo é necessário para a sobrevivência do ecossistema no seu conjunto. Em segundo lugar, o facto de todos os organismos fazerem parte do todo interligado não implica que possuam todos valor “intrínseco” e muito menos valor intrínseco igual. Podem ter valor apenas porque são necessários para a existência do todo e o todo pode ter valor apenas porque sustenta a existência de vários seres conscientes.

  1. O desenvolvimento de uma ética ambiental

Em última análise, Singer formula a hipótese de que enfrentamos agora uma nova ameaça à nossa sobrevivência. E ainda não se desenvolveu uma ética capaz de fazer face a esta ameaça. E alguns princípios éticos que possuímos correspondem exactamente, na realidade, ao contrário daquilo que precisamos para relação do homem com o meio natural. Portanto, uma tal ética consideraria eticamente duvidoso todo o acto nocivo para o ambiente e os actos desnecessariamente prejudiciais como males claros. Uma ética do meio ambiente acharia que poupar e reciclar recursos seria virtuoso e que o consumo extravagante e desnecessário seria uma depravação. Dito de outro modo, uma tal ética nos levaria a uma convivência pacífica com os demais seres.

Uma ética do meio ambiente rejeita os ideais de uma sociedade materialista, na qual o êxito é medido pelo número de artigos de consumo que uma pessoa consegue acumular. Em seu lugar, entende Singer, ajuíza o êxito em termos do desenvolvimento das potencialidades de cada qual e da conquista da auto-realização e da felicidade. Fica claro que as sociedades materialistas representam uma ameaça para a prevenção do meio ambiente, por ser constituído na lógica do alto consumo e da exploração massiva da Natureza.

Assim, os diversos guias e livros do “consumidor verde” sobre as coisas que podemos fazer para salvar o nosso planeta - reciclando o que usamos e comprando os artigos ambientalmente mais inócuos possível - fazem parte da nova ética que se torna necessária.

Num mundo sujeito a grande pressão, este conceito não se limita a carros de luxo com motorista ou a champanhe “Dom Perignon”. A madeira proveniente de uma floresta tropical húmida é extravagante porque o valor a longo prazo da floresta tropical é de longe maior que as utilizações dadas à madeira. Mais uma vez, Singer, retoma a ideia apresentada anteriormente pelos ecologistas profundos para preservação do meio natural a longo prazo.

O autor faz alusão a um episódio que decorreu no período da segunda guerra mundial, quando a gasolina era escassa, havia cartazes que perguntavam: “A sua viagem é mesmo necessária?” Apelar para a solidariedade nacional para combater um perigo visível e imediato foi altamente eficaz. Ou seja, com a escassez da gasolina era necessário chamar a sensibilidade dos automobilistas para usarem os veículos somente em situações extremas. Os métodos de energia intensiva da agro-pecuária industrial dos países desenvolvidos são responsáveis pelo consumo de quantidades enormes de combustíveis fósseis. Os fertilizantes químicos usados para a produção de rações para o gado e os porcos e galinhas criados em recintos fechados produzem óxido nitroso, outro gás que causa o efeito de estufa. Sendo que o efeito de estufa é responsável pela manutenção da vida na Terra. Por todo o lado, os habitantes das florestas, tanto humanos como não humanos estão a ser escorraçados.

Conclusão

Portanto, o autor compreende que a ética do meio ambiente valoriza o prazer, mas um prazer não assente no consumo exagerado. Provêm de relações pessoais calorosas, da proximidade das crianças e dos amigos, da conversa, de desportos e entretenimentos que estão em harmonia com o nosso ambiente sem o agredirem; da alimentação que não se baseia na exploração de criaturas sencientes nem destrói a Terra; da actividade e do trabalho criativos de todos os tipos; e da apreciação dos lugares ainda intactos do mundo onde vivemos. Permitindo ao homem e aos demais seres uma relação harmónica.

 

[1] Este ensaio é resultado de um trabalho apresentado no modulo de Análise e Produção de Texto com o Professor Dr. Luís Kandjimbo na Faculdade de Humanidades da UAN em 2023.

[2] Licenciado em Filosofia pela Faculdade de Letras da Universidade Agostinho Neto, com interesse de pesquisa em Ética Aplicada. E-mail: [email protected]

[3] Em 1993, a editora Cambridge University Press fez sair a primeira edição na Europa. A edição portuguesa que fazemos recurso foi publicada pela Editora Gradiva na Colecção Filosofia Aberta ocupando a posição 9, em 2012, traduzida para “Ética Prática”, 3ª edição, pp. 287-312.