Thiago Barbosa Soares[1]

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RESUMO-Por ser a formação discursiva uma das noções chave em Análise do discurso e ter em sua gênese uma bifurcação epistemológica, merece problematizações, contornos e desenhos. Assim, aqui levamos em consideração a fundação do conceito tanto por Michel Pêcheux quanto por Michel Foucault, ressalvando as semelhanças e diferenças que no uso por ambos foi formulado. Diante disso, nosso objetivo é, para além de apresentar a formação discursiva como um conceito com dois fundadores, ventilar os meandros pelos quais esse conceito pode ser empregado para se analisar discursos. Para tanto, fazemos uma breve incursão, ora descritiva, ora analítica, em obras basilares na fundação da Análise do discurso enquanto um campo teórico-prático das ciências humanas.

PALAVRAS-CHAVE: Análise do Discurso; Formação Discursiva; Michel Pêcheux; Michel Foucault.

 

ABSTRACT - Being the discursive formation of the key notions in speech analysis and have its genesis in an epistemological fork, deserves problematizations, outlines and drawings. Then, here we consider the concept of the foundation both Michel Pêcheux as Michel Foucault, pointing out the similarities and differences in use for both was formulated. Therefore, our objective is, apart from providing the discursive formation as a concept with two founders, ventilate the intricacies in which this concept can be used to analyze discourses. Therefore, we make a brief incursion, sometimes descriptive, sometimes analytical, in basic works on the foundation of discourse analysis as a theoretical and practical field of human sciences.

KEY WORDS: Discourse Analysis; Discursive Formation; Michel Pêcheux; Michel Foucault.

 

Introdução

 

         (...) as palavras estão tão deliberadamente ausentes quanto as

próprias coisas; não há nem descrição de um vocabulário nem

recursos à plenitude viva da experiência. Não se volta ao aquém

do discurso – lá onde nada ainda foi dito e onde as coisas apenas despontam sob uma luminosidade cinzenta; não se vai além para reencontrar as formas que ele dispôs e deixou atrás de si; fica-se, tenta-se ficar no nível do próprio discurso

 (A arqueologia do Saber, Michel Foucault)

 

            Neste texto temos um objetivo bastante pontual, qual seja, apresentar a noção de formação discursiva em Pêcheux e Foucault. Como se fosse pouco, tentaremos fazer um sintético levantamento de suas contribuições para a construção da Análise do Discurso. Para tanto, percorreremos, à frouxas rédeas, a história da constituição do conceito basilar neste campo do saber, o discurso. Claramente o faremos a partir de uma perspectiva x, para, assim, iniciarmos a aventura da investigação propriamente dita da fabricação da formação discursiva, talvez tenhamos que admitir que olhando mais para um autor do que para outro. Encerramos pretensamente com um (des)fecho incontornável por acreditarmos ter encontrado mais do que um exercício intelectual instigante, pois, entre outras coisas, pudemos vislumbrar uma parcela significativa das ideias de dois grandes pensadores. Noutros termos, em busca das diferenças, encontramos complementaridades possíveis de se tornarem elos teóricos e até mesmo metodológicos.

 

Análise do Discurso: um breve traçado

Se “o analista de discurso não é uma pessoa neutra” (MAZIÈRE, 2007, p. 23), nosso percurso é justificado na medida em que nossa incursão pela história teórico-metodológica de certas noções da Análise do Discurso (AD) é, de certa forma, uma “recriação” narrativa cuja representação são os nossos princípios axiológicos ligados às leituras, pesquisas e preferências. Nesse diapasão, nos sentimos autorizados a alguns gestos de leitura, que perpassam sumularmente os meandros de uma história e suas práticas, sem os quais a AD não seria um campo do saber como o é.  Pois, “o presente de uma disciplina não herda o passado, mas o constrói à sua maneira, num processo em que as dimensões epistemológica e institucional são indissociáveis” (PIOVEZANI; SARGENTINI, 2011, p. 9).

É nesse sentido que, em primeira instância, para uma compreensão das bases do surgimento da noção de discurso e, por conseguinte, lançar luz à fundação da Análise do Discurso, remontamos de Pêcheux a Saussure a partir daquilo que se chama a consolidação da “quarta recepção” do Curso de Linguística Geral na França (PUECH, 2014).

 

 Enfim, podemos pensar igualmente que a quarta recepção de Saussure aparece (...) como mais “defensiva” que “profética”. A nota sobre o discurso, a carta para a criação de uma cátedra de estilística na Universidade de Genebra não impedem, com efeito, que se tenha podido articular de outra forma – diferentemente do modo como o teria feito o estruturalismo que se reclamava de Saussure – a sistematicidade da língua, o estatuto do sujeito e a variação da história. Além do fato de que o projeto de M. Pêcheux exprimia essa possibilidade sem referência às Fontes e uma vez admitindo que a ideia de um “Saussure fundador do estruturalismo” é somente um atalho cômodo, queremos acreditar que o destino do saussurismo não está selado de uma vez por todas (p. 49).

(...)

Ora, podemos pensar que o que tornou original o projeto de Michel Pêcheux (não sem múltiplas contradições, sem hesitações...) residia, sem dúvida, em sua vontade de articular – sem denegação nem recobrimento; mas isso era possível? – a ordem da língua e a ordem do discurso (p. 45; grifos do autor).

 

É justamente nesse sentido que se articula a visão de Puech à de Denise Maldidier para quem “O conceito de discurso é forjado a partir de uma reflexão crítica sobre o corte fundador operado por Saussure e não sobre sua superação (...); o discurso reformula a fala, esse “resíduo filosófico”, cujas implicações subjetivas devem ser eliminadas” (MALDIDIER, 2011, p. 44; grifos da autora).  Se Pêcheux é “resolutamente saussuriano desde o princípio” (ibid.), há que se ver que “Pêcheux não invoca de forma alguma a ‘superação’ da dicotomia língua/fala” (MALDIDIER, 2003, p. 22; aspas da autora). Portanto, tal como afirma Puech, “o Saussure do Curso constituiu tanto um recurso como um obstáculo” (2014, p. 48), noutros termos, “Na abertura produzida pela análise de discurso, e em especial pela reflexão de M. Pêcheux, o discurso é uma noção fundadora” (ORLANDI, 2012, p. 44) fundamentalmente com e contra Saussure.

 

Nessa medida, a emergência de uma “ordem do discurso” apenas poderia se dar,segundo Michel Pêcheux, com Saussure e contra ele: com Saussure na medida em que o discurso como objeto apenas pode emergir tendo em conta que as línguas “funcionam em relação a elas mesmas”, e contra ele na medida em que o CLG recobriria sua própria novidade, cicatrizaria ela mesma, em suma, o corte que instaura. Pêcheux situa, com efeito, esse “recobrimento” na distinção entre significação (na fala) e valor (na língua). Seria, pois, enunciandoo princípio de uma necessária subordinação da significação (individual) ao valor (sistemático) que o CLG daria a possibilidade de uma “semântica discursiva” – que ele não realiza de maneira nenhuma – ao mesmo tempo ancoradasobre o sistema linguístico e sobre a história, e libertada do pressupostode um sujeito individual e psicológico (PUECH, 2014, p. 47; grifo do autor).

 

Tendo em vista os apontamentos de Puech, fica, com efeito, perceptível o retorno e a ultrapassagem a Saussure pretendida por Pêcheux ao enunciar: “Ao conceito de língua opõe-se a noção de fala (...), a maneira única pela qual cada “sujeito falante” manifesta sua liberdade, dizendo “aquilo que jamais será ouvido duas vezes’” (2011 [1971], p. 69; aspas do autor). Sendo “essa dupla ideológica “liberdade/sistema que recobre o termo fala” (ibid., p. 70; aspas do autor), o processo de base das significações, em outras palavras, “a relação que associa as “significações” às condições sócio-históricas não é absolutamente secundária, mas constitutiva das próprias significações (ibid., p. 68; aspas do autor). Desse modo, é instaurado o discurso enquanto a atualização do funcionamento das significações, conforme suas condições de produção, realizadas a partir da “dupla ideológica”; assim, emergindo, então, a necessidade de uma “teoria do discurso”.

Dizendo de outra forma, enquanto que para Saussure a língua, concebida como um sistema, possui o estatuto de objeto dos estudos linguísticos, excetuando a fala desse campo – a língua se opõe à fala, sendo a primeira sistêmica e objetiva e a segunda concreta, variável de acordo com cada falante e, por isso, subjetiva. Para Pêcheux, o deslocamento conceitual introduzido por Saussure consiste em separar a homogeneidade cúmplice entre a prática e a teoria da linguagem pois, sendo a língua pensada como um sistema, ela “deixa de ser compreendida como tendo a função de exprimir sentido; ela torna-se um objeto do qual uma ciência pode descrever o funcionamento” (PÊCHEUX, 2010 [1969], p. 60). Pêcheux constata que a oposição língua/fala não poderia se incumbir da problemática do discurso, mas, para tentar resolver o problema coloca o discurso “entre a linguagem (vista a partir da linguística, do conceito saussuriano de langue) e a ideologia” (HENRY, 2010, p. 36). 

 

Formação discursiva

            Entre as noções e conceitos[2] constituintes da Análise do Discurso, se encontra a formação discursiva. Tal conceito é derivado da obra de Michel Foucault – A Arqueologia do Saber (1969) –. Para Foucault, aquilo que define uma formação discursiva não é a unidade que tão-somente existe entre enunciados, mas, isto sim, um sistema de dispersão que, de certa forma, viabiliza a detecção de regularidades enunciadas:

 

No caso em que se puder descrever, entre um certo número de enunciados, semelhante sistema de dispersão, e no caso em que entre os objetos, os tipos de enunciação, os conceitos, as escolhas temáticas, se puder definir uma regularidade (uma ordem, correlações, posições e funcionamentos, transformações), diremos, por convenção, que se trata de uma formação discursiva – evitando, assim, palavras demasiado carregadas de condições e consequências, inadequadas, aliás, para designar semelhante dispersão , tais como “ciência”, ou “ideologia”, ou “teoria”, ou “domínio de objetividade” (FOUCAULT, 2013, p. 47; grifos do autor).

 

            Portanto descrever enunciados de um discursos, nessa perspectiva, consistirá em dar conta de certas especificidades inerentes à dada formação discursiva, pois esses enunciados serão vistos dentro de uma espécie de “organização”, a qual, entretanto, não se confunde com uma grande unidade, mas que precisará ser demarcada. Como disse o autor, a análise do enunciado e a da formação discursiva são estabelecidas correlativamente, porque a lei dos enunciados e o fato de pertencerem à formação discursiva constituem uma única e mesma coisa (FOUCAULT, 2013, p. 43). E por formação discursiva ou sistema de formação, ele compreende:

 

(...) um feixe complexo de relações que funcionam como regra: ele prescreve o que deve ser correlacionado em uma prática discursiva, para que esta se refira a tal ou qual objeto, para que empregue tal ou qual enunciação, para que utilize tal conceito, para que organize tal ou qual estratégia. Definir em sua individualidade singular um sistema de formação é, assim, caracterizar um discurso ou um grupo de enunciados pela regularidade de uma prática (cf. FOUCAULT, 2013, p. 86).

 

Não se trata apenas de descrever a verdade ou o sentido dos discursos, mas, sobretudo, de fazer sua história. E isso tem um vínculo estreito com o entrecruzamento do discursivo e do não discursivo, isto é, de uma economia dos discursos, de uma produtividade visível das coisas ditas, na medida em que se trata da inseparabilidade entre vida e pensamento, de práticas institucionais e “enunciados-verdades” e de toda e qualquer força agenciadora de discurso. Trata-se, portanto, da relação entre continuidade e descontinuidade histórica, como orientação fundamental para a análise dos discursos, o que implica acompanhar as coisas ditas naquilo que se refere às linearidades, reforços, reafirmações de um certo campo do saber, sem exclusão das rupturas deste quando da erupção de outros no seu interior. Com isso, “não estamos longe das formulações da análise do discurso de Pêcheux. A não ser, como veremos pela maneira de enxergar a relação entre a produção de sentidos e a ideologia” (GREGOLIN, 2006, p. 91).

Pêcheux não deixa de considerar a ideologia como constitutiva da linguagem ao contemplar a noção de formação discursiva (ou FD), porém sua incorporação enquanto conceito operacional da AD ocorre a partir de um segundo momento, ou seja, da ADD69 é deixado de lado “a noção de máquina estrutural fechada na medida em que o dispositivo da FD está em relação paradoxal com seu exterior” (PÊCHEUX, 2010 [1983c]).

            Nesse sentido, a FD, ao adentrar os salões da AD, é uma instância na qual dada formação ideológica caracteriza, por sua vez, certa formação social que é entendida

 

(...) por meio do modo de produção que a domina, da hierarquia das práticas das quais necessita esse modo de produção, dos aparelhos mediante os quais se realizam essas práticas, as posições que lhes correspondem, as representações ideológico-teóricas e ideológico-políticas que dependem dessa formação social (PÊCHEUX, 2011 [1971], p. 72).

 

            Justamente por ter em vista a formação social que Pêcheux compreende em seu interior uma força movente, isto é, a formação ideológica. A ideologia não existe per se, mas, isto sim, materializada no nível global das relações sociais, em específico, pelo constrangimento colmatado pelas condições de produção aos sujeitos, na formação social. E, como a sociedade funciona em determinados setores de maneira diferente em relação a outros, tem-se, como no meio midiático e na literatura de autoajuda, produções discursivas relativamente distintas com suas nuanças. Sendo essas produções fruto do funcionamento dos discursos. Dessa forma, é relevante refletir:

Que os discursos não são redutíveis às ideologias, tanto quanto as ideologias não são passíveis de serem superpostas aos discursos. Indica-se que as formações discursivas constituem um componente das formações ideológicas, ou melhor, que as formações ideológicas governam as formações discursivas (cf. ROBIN, 1977, p. 116).

 

De maneira que

Cada formação ideológica constitui assim um conjunto complexo que comporta atitudes e representações que não são nem “individuais” nem “universais”, mas que se referem mais ou menos diretamente a “posições de classe” em conflito umas com as outras (PÊCHEUX, 2011 [1971], p.73; aspas do autor). 

 

            Constituindo o discurso um dos fundamentais materializadores de ideologia, pode-se entender que o discurso é uma espécie de prática, por natureza, ideológica. Dizendo com outras palavras, a formação ideológica tem necessariamente como um de seus componentes uma ou várias formações discursivas interligadas. Constatação essa que significa que os discursos são governados por formações ideológicas. Portanto, as formações discursivas, em uma formação ideológica específica, recobrem a relação de classes, “determinam o que pode e deve ser dito (articulado sob a forma de um pronunciamento, de um sermão, de um panfleto, de uma exposição, de um programa e etc.) a partir de uma dada posição numa dada conjuntura” (ibidem; grifo do autor).

            Se,

A formação discursiva é caracterizada pelas marcas estilísticas e tipológicas que se constituem na relação da linguagem com as condições de produção. De outro lado, podemos dizer que o que define a formação discursiva é sua relação com a formação ideológica. Assim podemos perceber como se faz a relação das marcas formais com o ideológico (ORLANDI, 2011, p. 132).

 

Então, “Em um discurso (...) não só se representam os interlocutores, mas também a relação que eles mantêm com a formação ideológica. E isto está marcado no e pelo funcionamento discursivo” (ibid., p. 125; grifo da autora).  Em outras palavras, é no interior do funcionamento discursivo no qual ocorre a imbricação de formação ideológica e FD, que, por sua vez, concebe-se a produção de efeito de sentidos.

            Posto isso, as formações ideológicas estão ligadas ao produzir sentidos, ou melhor, a definir concepções relativamente evidentes acerca de certo dado, concomitantemente, dissimulam outras possibilidades de sentido para o mesmo dado, já que:

 

É a ideologia que fornece as evidências pelas quais “todo mundo sabe” o que é um soldado, um operário, um patrão, uma fábrica, uma greve, etc., evidências que fazem com que uma palavra ou um enunciado “queiram dizer o que realmente dizem “e que mascaram, assim, sob a “transparência da linguagem”, aquilo que chamaremos o caráter material do sentido das palavras e dos enunciados (PÊCHEUX, 2009 [1975], p. 146; grifo do autor).

 

Nessas condições, é via evidências providas pela ideologia que sabemos do que se trata ao nos depararmos com formulações[3] como:

Izabel Goulart com silhueta enxuta e bem torneada;

Izabel Goulart, a deusa de pele dourada;

O Rei Roberto Carlos;

A Rainha dos baixinhos. 

Tendo em vista que a maioria dos brasileiros, cada “um” a “seu modo” conforme a ideologia que lhe molda a interpretação, ao lerem ou ouvirem as sentenças acima, construídas pela mídia, não teriam problemas para compreender quais as precisas referências, ou seja, não se entenderia denotações para as palavras em realce, mas, isto sim, os sentidos partilhados socialmente. Vemos, então, a ideologia servindo, grosso modo, de ponto de coerência na produção de sentidos mais ou menos estáveis a nível global, transcende a frase ao lançar sentidos partilhados por parcela do tecido social.

            Isso posto, apesar de “todos” fazerem a apreensão dos sentidos circulantes globalmente na sociedade, há aqueles que, por determinada ideologia, deixam outros de lado. Aproveitando os exemplos supracitados, alguns olharão para “silhueta enxuta e bem torneada”e a “deusa de pele dourada”, como os “traços” marcadores de uma sociedade cuja mulher, para ser bela, deve possuir para servir de propaganda; ORei Roberto Carlos, para alguns, o seu título refere-se ao fato dele ser o maior cantor da música popular brasileira, por outro lado, haverá quem diga que não quer dizer mais do que a mídia pode produzir e manter, reconhecendo o seu sucesso apenas como derivado da indústria musical e midiática. Vemos, portanto, nesse ponto uma dissonância com certo sentido compartilhado por “todos” para inovação (renovação) de sentidos outros, segmentando quem os sustente num plano local de variável coesão, isto é, formação discursiva. Assim, a coerência da ideologia permite a “todos” comungarem do(s) mesmos sentido(s) de certas ‘frases’, mas é a formação ideológica que possibilita a filiação a dados sentidos e não outros, proporcionando a coesão da reprodução de sentidos.

            Pêcheux e Fuchs (2010 [1975], p. 177) apontam a relação da formação discursiva com um exterior heterogêneo, ou seja, com o interdiscurso, sustentando “que uma formação discursiva é constituída-margeada pelo que lhe é exterior, logo por aquilo que aí é estritamente não formulável, já que a determina” (grifo dos autores). A noção de formação discursiva vai cada vez mais abrindo terreno para o interdiscurso. É o próprio Pêcheux (2010 [1983c]) quem questiona e problematiza o uso da noção de FD na Análise do Discurso, que, de acordo com ele, inúmeras vezes derivou para ideia de uma máquina discursiva de assujeitamento dirigida à repetição, maneira de pensar condizente com a noção de máquina estrutural impondo uma interpretação antecipadora a um determinado corpus discursivo. Essa premissa, atinente à primeira fase da Análise do Discurso, em certa medida, também presente na segunda, foi posta de lado na terceira fase, sobretudo, pelo consolidação da noção de acontecimento na sua relação com a estrutura no interior de um espaço discursivo, a da centralidade atribuída ao interdiscurso – sendo esse definido como o já-dito em outro lugar, anteriormente, e como elemento que (re)constrói o sentido de uma sequência discursiva.

            Na interpretação de Maldidier (2010), a noção de formação discursiva praticamente desaparece nos últimos escritos de Pêcheux, mantendo-se somente o conceito nuclear de interdiscurso. Todavia, nos parece que o conceito de FD é produtivo se olharmos uma formação discursiva a partir de seu interdiscurso, e não o contrário, na esteira de Courtine (2009 [1981]). Nessa perspectiva, o interdiscurso está no centro do processo de constituição dos sentidos, enquanto, pode-se afirmar, os agrupamentos dos sentidos seriam as formações discursivas.

            Muitos analistas do discurso, tais como Maingueneau (1997) e Orlandi (2007; 2011; 2012) dão emprego pertinente à noção de FD, ao estabelecerem uma vinculação entre formação discursiva e o interdiscurso. Dito isso, nos valemos das palavras de Orlandi para explicar essa relação:

 

As formações discursivas são diferentes regiões que recortam o interdiscurso (o dizível, a memória do dizer) e que refletem as diferenças ideológicas, o modo como as posições dos sujeitos, seus lugares sociais aí representados, constituem sentidos diferentes. O dizível (o interdiscurso) se parte em diferentes regiões (as diferentes formações discursivas) desigualmente acessíveis aos diferentes locutores (cf. 2007, p. 20-21).

 

            Quer dizer, as FDs podem ser vistas como “regiões do dizível”, sendo essas as possibilidades de inscrições “das múltiplas formações discursivas” (ibid., p. 20), noutros termos, são onde o confronto de sentidos engendram outros sentidos num movimento de nunca acabar.

Vemos, então, que “A noção de formação discursiva soube, portanto evoluir a partir do legado de Foucault, conservando as materialidades linguísticas das quais Foucault se desinteressara já em 1971” (MAZIÈRE, 2007, p. 61), chegando a determinar as relações de sentidos quando se estabelece o “gesto de leitura” da significação, daí, pois, sua relevante importância. Contudo, há que se atentar também a outro elemento, porquanto “A manifestação mais evidente do dado incontornável representado pela língua está manifestada na marcação do pré-construído no seio de uma interdiscursividade que ultrapassa a formação discursiva” (ibid., p. 62). 

            Em geral, podemos perceber as FDs, para Pêcheux, como posicionadas em complexos de FDs relacionadas, referidas como interdiscurso e os significados específicos de uma FD são determinados pelo exterior em sua relação com o interdiscurso.

 

(Des)fecho incontornável

            Tentamos ao longo deste texto apresentar, de maneira mais ou menos problemática, uma noção cara à Análise do Discurso, aformação discursiva. A ela estão atrelados outros muitos conceitos para os quais não nos arrogamos a obrigação de comentá-los mais detidamente. Provavelmente não poderíamos fazer nenhum balanço das contribuições de Foucault e Pêcheux para a criação e enriquecimento da formação discursiva, mas, mesmo assim, tentaremos um esboço a partir de algumas considerações.

            Um ponto importante é lembrar que a partir da incorporação da noção de formação discursiva, se torna possível a construção do conceito de interdiscurso, delimitado por Pêcheux como “‘o exterior específico’ de uma formação discursiva enquanto este irrompe nesta formação discursiva para constituí-la” (2010 [1983c], p. 310; aspas do autor). Com essa inserção complementar, diz Courtine: “O mérito dessa concepção foi o fato de se ter provado que todo discurso concreto é dominado por um conjunto complexo de discurso, chamado interdiscurso, que serve como material discursivo original” (2006, p. 67-68).

            Todavia, é ainda Courtine quem sustenta: “deve-se notar que os elementos teóricos da definição de formações discursivas dificilmente mudaram a prática da constituição do corpus na análise do discurso, assegurando as homogeneizações previamente descritas (ibid., p. 68). O autor acredita, então, que a composição do corpus na análise do discurso não segue as próprias orientações teórico-metodológicas. Porque, de acordo com seu entendimento, havia uma “Redução do histórico ao político, do político ao ideológico, do ideológico ao discursivo, do discursivo ao sintático: a crença filológica que, atualmente, se desenvolve na análise do discurso estava já inscrita nela mesma desde sua origem” (ibid., p. 56). Talvez por isso, insiste em pensar com Foucault, ao escrever Decifrar o corpo, adotando uma concepção foucaultiana de formação discursiva, já que:

 

De modo algum a formação discursiva se encontra em estado natural à superfície dos textos; ela não se confunde com um gênero de discurso que uma classificação de época teria preestabelecido; ela não é uma expressão de um século, ou de um período, muito menos de um autor. Sua configuração de conjunto, sua duração e desdobramento no tempo, as unidades que a compõem e que são outros tantos vestígios que ela deposita ao longo dos textos e das imagens, tudo isso precisa ser construído (COURTINE, 2013, p. 24-25). 

 

            A multiplicidade com a qual tal noção de formação discursiva lida é bastante complexa, de modo que se estende para os enunciados que possam vir compô-la, numa tensão do poder no interior do discurso. Aquele tecendo as teias desse num movimento de nunca acabar.

            Há outras considerações possíveis a serem feitas para as semelhanças e diferenças entre o emprego de formação discursiva de Foucault e Pêcheux, contudo optamos por lembrar que para o primeiro o discurso é, grosso modo, “um bem que é, por natureza, objeto de uma luta, e de uma luta política” e para o segundo o discurso é efeito de sentido entre interlocutores. Quer dizer, qual luta não é por (certos efeitos de) sentido?Um vê o poder na formação discursiva, o outro enxerga a ideologia, mas, em absoluto, são tão divergentes quanto muitos pensam. Portanto, mesmo que existam duelos entre esses pensadores, temos incontornavelmente diálogos dos quais a Análise do Discurso não pode se desvincular, nem tampouco seus conceitos.

 

Referências bibliográficas

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SOARES, T. B. Discursos do sucesso: a produção de sujeitos e sentidos do sucesso no Brasil contemporâneo. Dissertação (Mestrado). -- São Carlos: UFSCar, 2015.

 

[1] Doutorando do programa de pós-graduação em Linguística da Universidade Federal de São Carlos (PPGL-UFSCar), bolsista CAPES e integrante do laboratório de estudos do discurso da UFSCar (LABOR). Contato: [email protected].

[2]A bem da verdade e de maior especificidade, é relevante redimensionarmos esse termo à discussão de conceito em que: “Todo conceito, tendo um número finito de componentes, bifurcará sobre outros conceitos, compostos de outra maneira, mas que constituem outras regiões do mesmo plano, que respondem a problemas concectáveis, participam de uma cocriação. Um conceito não exige somente um problema sob o qual remaneja ou substitui conceitos precedentes, mas uma encruzilhada de problemas em que se alia a outros conceitos coexistentes” (cf. DELEUZE; GUATTARI, 2010, p. 26).

[3]Tais formulações foram extensamente analisadas enquanto parte do corpusda dissertação “Discursos do sucesso: a produção de sujeitos e sentidos dosucesso no Brasil contemporâneo” (SOARES, 2015), fomentada pela FAPESP, processo: 2013/15767-5.