Somos capazes de programar robôs para cirurgias complexas nos seres humanos, mas também programamos algoritmos que disseminam fake News nas redes sociais, causando situações de dimensões estratosféricas, sobretudo quando há o compartilhamento em massa e ausência de critérios de filtragem da informação por parte dos próprios usuários, resultando no despreparo humano para lidar com essas situações. Conseguimos operacionalizar recursos tecnológicos digitais para rastrear queimadas em toda a extensão da Amazônia e, quase que de maneira simultânea, golpes cibernéticos de todos os tipos são implementados a todo o momento, causando estrondosos prejuízos. Percebemos que as redes sociais contribuem para reverberar gritos, desabafos, denúncias e vozes, sobretudo de minorias historicamente oprimidas, ao passo que nesses mesmos ambientes, discursos de ódio, diferentes linguagens violentas e agressivas e até mesmo o endeusamento de práticas anti-direitos humanos ocorrem com uma absurda e preocupante frequência. Algumas dessas situações aqui exemplificadas ilustram que há um paradoxo em relação à atuação das tecnologias digitais em nossa sociedade. Sem a ação humana é pouco provável, pelo menos nesta era, que efeitos visíveis da atuação digital das tecnologias alterem e imperem nas esferas diversas, sejam econômicas, culturais, políticas. Quando muito se fala na ação humana, pode-se afirmar que novos hábitos, posturas, valores, dinâmicas sociais e até mesmo ideológicas se modificam, ganham novas roupagens e passam a atuar sob novas perspectivas na medida em que a cultura digital passa a ganhar mais espaço e impera em nossa sociedade, modificando nossos comportamentos. Corroborando com Lévy (1999), esse autor diz que: [...] nos casos em que processos de inteligência coletiva desenvolvem-se de forma eficaz graças ao ciberespaço, um de seus principais efeitos é o de acelerar cada vez mais o ritmo da alteração tecnosocial, o que torna ainda mais necessária a participação ativa na cibercultura, se não quisermos ficar para trás, e tende a excluir de maneira mais radical ainda aqueles que não entraram no ciclo positivo da alteração, de sua compreensão e apropriação. (P.27) Se apropriar do desenvolvimento coletivo de mecanismos e posturas ativas decorrentes do ciberespaço para atuar na participação social, sem que a exclusão, inabilidade ou possibilidades de estar e ser na cultura do ciberespaço sejam negadas é inegável e urgente. Acredita-se que uma maneira efetiva para colaborar com os processos de inteligência coletivas citados por Lévy (1999)  deva partir de políticas públicas do Estado, mais especificamente nos espaços escolares da educação básica, sendo esses os locais mais apropriados para que a disseminação da cultura da informação digital, suas particularidades e mecanismos eficientes sejam possíveis para que haja a plena participação da comunidade na revolução digital. Ou seja, adentrar à cultura digital não se limita apenas a ser capaz de portar um apetrecho digital, mas sim, como bem nos lembra Ribeiro (2013), necessário se faz “agir e pensar de um modo que tem suas peculiaridades ou, como vêm dizendo alguns, depende-se da construção de um ethos” (p.14). É exatamente a ausência desse ethos que hoje é possível identificar intensas carências e precariedades nas posturas com que muitas pessoas, atores sociais, exercem na cibercultura. Ressalta-se o expressivo impacto da cultura digital hoje, sobretudo nas relações com o saber, sendo, portanto, essencial que saibamos lidar com esse momento de constante intensificação da digitalização em nossas vidas e que atua em vários cenários, reajustando convenções sociais e espaços econômicos, políticos, ideológicos, culturais, etc. Mas como? Defende-se aqui por um ethos, a ser concebido (ou que já deveria estar sendo concebido) nos espaços de escolarização. Isso porque, no campo educacional, a relação da cibercultura com o saber é uma pauta de extrema importância, pois, ainda de acordo com Lévy (1999), há uma mutação contemporânea estritamente ligada às práticas do saber, ratificando-se que a construção de um ethos atuará de maneiras contributivas para possibilitar aprendizagens práticas, reais e consistentes em relação à cultura digital que hoje impera em nossas vidas. E a escola, local de aprendizagens substanciais para o exercício da cidadania, pode (ou deveria) se responsabilizar em repensar seus currículos, propostas curriculares que dialoguem com os anseios de formação de caráter e de alcance de habilidades vitais para que os estudantes sejam atores sociais críticos no uso das tecnologias digitais, nas tratativas e consumos de informações digitais. Claro que as políticas de estado têm (ou deveriam ter) grande responsabilidade para que ações sejam implementadas, possibilitando que as desigualdades sociais não promovam maiores abismos entre as instituições escolares da educação básica, concentrando investimentos e financiamentos que favoreçam urgentes mudanças no ensino. A formação e continuidade no aperfeiçoamento intelectual do professorado também são medidas urgentes, o que equivale a dizer que uma genuína revolução digital irá ocorrer, de fato, com tais políticas que atuem com significativa consistência. Isso porque na escola, o ethos aqui almejado se dará a partir dos docentes, que irão promover habilidades sociais, mecanismos de criticidade e favorecimento de uma aprendizagem intelectualizada de nossos estudantes refletindo na exacerbação de habilidades competentes para se estar na cultura digital revolucionária. É importante ressaltar também que a atuação das políticas educacionais tecnológicas se expandam para a infraestrutura, software, hardware, redes, acessos e possibilitem a interação de ecossistemas digitais nas escolas. E. obviamente, no campo da investigação científica, pois sem pesquisa não há ensino, conforme exposto por Freire (1996). Negando a pesquisa, não há rompimento de barreiras do senso comum, mas sim a falência da compreensão e do esclarecimento alicerceados no pensamento e em dados científicos. Não há ensino sem pesquisa e pesquisa sem ensino. Esses que-fazeres se encontram um no corpo do outro. Enquanto ensino continuo buscando, reprocurando. Ensino porque busco, porque indaguei, porque indago e me indago. Pesquiso para constatar, constatando, intervenho, intervindo educo e me educo. Pesquiso para conhecer o que ainda não conheço e comunicar ou anunciar a novidade. (FREIRE, 1996, P.32) Tais elucidações dialogam com Pretto (2013), que nos permite refletir sobre os descaminhos de políticas públicas de tecnologia da informação para a educação no Brasil e sobre o descuido e falhas de teor técnico em gestões governamentais, que atrasaram (e ainda atrasam) a grande potencialidade da revolução digital em nossa sociedade. Destarte, pode-se perceber a grande responsabilidade da escola para atuar em uma revolução genuína de nossos estudantes para o universo do ciberespaço (ethos, aqui defendido). Face a isso, uma interessante discussão trazida por Magda Soares, grande referência no assunto da alfabetização e letramento, ganha total relevância nessa pauta. A apropriação de múltiplos letramentos, sobretudo digitais, se fazem necessários, tendo em vista que são habilidades que acompanham as demandas que vão surgindo nos dias de hoje, sobretudo na esfera da comunicação, informação em rede e decorrente das relações sociais cada vez mais digitalizadas. Ao estar em contato, por exemplo, com um apetrecho digital, Soares (2002) reflete que surgem “novos processos cognitivos, novas formas de conhecimento, novas maneiras de ler e escrever, enfim, um novo letramento, isto é, um novo estado ou condição para aqueles que exercem práticas de escrita e de leitura na tela” (p.152). Cabe ressaltar que o contato com as telas, a navegação por conteúdos, o acesso a múltiplas linguagens e informações digitais e até mesmo as relações construídas e constituídas por intermédio digital nem sempre se dão ao mesmo tempo que a fase de escolarização. Isso porque hábitos digitais têm sido cada vez mais comuns a partir e durante a infância. Por este motivo, em muitos casos, os estudantes levam esse aprendizado para as escolas que devem (ou deveriam) aproveitar essa prévia aprendizagem e, a partir daí, possibilitar a construção de um ethos que se relacione com o desenvolvimento progressivo de habilidades essenciais para que esse público digital tenha pleno domínio crítico e responsável de suas posturas, ações e reflexões, principalmente ao longo da carreira escolar. O ethos vem justamente para o desenvolvimento dessas ferramentas intelectuais, de modo a dialogar com uma cultura digital que possa ser revolucionária, competente, democrática e que não seja excludente, monopolista ou privada a alguns. Em outras palavras, um ethos que possa desenvolver consciências importantes para que nossos estudantes sejam capazes de adentrarem o ciberespaço fortalecidos intelectualmente para lidarem com típicos ecossistemas de esfera digital e radicalmente e de maneira genuína protagonizarem uma revolução digital para serem capazes de enfrentar e driblar desafios e aproveitar, de maneira ética, todas as possibilidades do ciberespaço. REFERÊNCIAS FREIRE, Paulo. Pedagogia da Autonomia. São Paulo, Paz e Terra, 1996. LÉVY, P. Cibercultura. Rio de Janeiro: Editora 34, 1999. SOARES, M. Letramento: como definir, como avaliar, como medir. PRETTO, N. L. Reflexões: ativismo, redes sociais e educação. EUFBA. Salvador, 2013. 252p. RIBEIRO, A. E. Cultura Escrita, Cultura Impressa e Cultura Digital: contiguidades e tensões. In: FIORENTINI, L. M; MACHADO, L. C; et al. Estilos de aprendizagem, tecnologias e inovações na educação. Universidade de Brasília– Faculdade de Educação - Departamento de Métodos e Técnicas Coordenação de Ensino de Graduação a Distância (COEGD). Comitê Organizador do II Congresso Ibero-Americano de Estilos de Aprendizagem. Brasília, 2013. SOARES, M. Novas práticas de leitura e escrita: letramento na cibercultura. Educ. Soc., Campinas, vol. 23, n. 81, p. 143-160, dez. 2002. Disponível em http://www.cedes.unicamp.br. Acesso em 27/08/2020.