APRESENTAÇÃO

 

Com a preocupação na melhoria do desempenho do profissional de Educação Física, no que diz respeito ao reconhecimento da importância da prática dos jogos de regras para o desenvolvimento das crianças entre 7 e 10 anos de idade apresentamos o presente estudo.

Esta monografia busca investigar os caminhos do desenvolvimento moral infantil, a partir de uma análise crítica das teorias tanto modernas quanto clássicas, objetivando refletir sobre as possibilidades que o educador do século XXI pode abraçar, considerando as crescentes exigências das instituições de ensino em geral.

Estes caminhos profissionais incluem questões de ordem pedagógica e educacional de uma maneira geral - sem deixar de levar em conta os aspectos éticos, fundamentais nos dias atuais.

 

CAPÍTULO I - INTRODUÇÃO

1.1. Definição do Problema de Investigação

 

O profissional de Educação Física, quando tem diante de si o desafio de contribuir na formação de crianças na faixa etária entre 7 e 10 anos de idade deve, necessariamente, possuir um conhecimento prático e teórico específico, qualificado, que possa atender as necessidades destas crianças.

A faixa etária delimitada para este trabalho compreende o grupo de crianças ingressantes no Ensino Fundamental, mais especificamente o Primeiro e Segundo Ciclos, segundo os critérios dos Parâmetros Curriculares Nacionais atualmente vigentes. Esta turma, apesar da pouca idade, traz para a escola uma série de conhecimentos anteriormente adquiridos - como movimento e cultura corporal - que serão trabalhados na disciplina de Educação Física.

Estes conhecimentos - independentemente de serem mais ou menos corretos, úteis ou adequados -,que são adquiridos no convívio familiar, com os colegas ou simplesmente através dos programas de televisão, permitem ao educador da área de Educação Física pressupor que poderá desenvolver suas atividades para um grupo de crianças que, de alguma forma, já teve contato com os três termos explicitados no título do trabalho: jogo, regra e moral. Esta atuação do professor está, inclusive, prevista pela BRASIL :

No caso da Educação Física existe a possibilidade de se abordarem diferentes jogos e atividades e se discutirem as regras em conjunto com os alunos, tentando encontrar as razões que as originaram, propondo modificações, testando-as, repensando sobre elas e assim por diante. A compreensão das normas que pode advir daí é completamente diferente de quando as regras são consideradas absolutas, inquestionáveis e imutáveis (BRASIL, 2001, p. 86).

O fato dos alunos já trazerem para o ambiente escolar determinados conhecimentos e vivências representa não uma dificuldade a menos mas, ao contrário, um desafio ainda maior, uma vez que é fundamental transmitir a importância das diferentes competências adquiridas dentro e fora da escola.

 

1.2. Objetivo

 

O presente estudo tem por objetivo evidenciar as contribuições do jogo de regras no desenvolvimento moral em crianças na faixa etária de 07 a 10 anos. Este trabalho pretende discutir os pressupostos teóricos utilizados atualmente, e que tratam da vivência dos jogos de regras, visando relacionar a influência destes no desenvolvimento de crianças recém-ingressas no Ensino Fundamental. Esta relação entre moral e prática de jogos já foi abordada algumas vezes no passado, sendo que será aqui realizada uma investigação a respeito de algunsrumos atuais deste tema, identificando eventuais alterações desta relação.

1.3. Questões que Orientam o Estudo

 

Para que se responda essa questão básica de estudo, torna-se necessário responder às seguintes indagações:

1.O que é jogo de regra?

2.O que se entende por desenvolvimento moral?

3.Como é o esquema corporal das crianças na faixa etária de 07 a 10 anos?

4.Como ocorre o desenvolvimento moral infantil dessa faixa etária?

5.Qual a relação existente entre o jogo de regras e o desenvolvimento moral de crianças na faixa etária de 07 a 10 anos?

 

 

 

 

1.4. Justificativa

 

Acredita-se que essa pesquisa bibliográfica possa fornecer subsídios para que profissionais da área de Educação Física compreendam melhor as contribuições do jogo de regras no desenvolvimento moral de crianças na faixa etária de 07 a 10 anos nas aulas de Educação Física Escolar do ensino fundamental.

A finalidade deste trabalho surgiu a partir de uma indagação própria daqueles que trabalham ou pretendem trabalhar na área de Educação, mais especificamente atuando junto de crianças que cursam os primeiros anos do Ensino Fundamental. Como conciliar a prática e a teoria da Educação Física - muitas vezes ainda conectada a conceitos ultrapassados - com as demandas crescentes da sociedade por um ensino mais abrangente, que considere os avanços do mundo atual?

Há muitos desafios nesta atividade que estimulam o profissional ou futuro profissional a interessar-se mais profundamente por áreas correlatas à Educação Física - como sociologia, psicologia e pedagogia - uma vez que atualmente existe uma percepção da necessidade de se trabalhar com as crianças visando seu desenvolvimento não apenas no aspecto físico/motor, mas reconhecendo também a complexidade psicológica, afetiva e social de todo ser humano.

 


CAPÍTULO II - REVISÃO DE LITERATURA

 

1. UM PILAR FUNDAMENTAL: OS ESTUDOS DE JEAN PIAGET

Para que seja possível alcançar os objetivos propostos neste trabalho e as questões defrontadas nesta Revisão de Literatura possam ser satisfatoriamente respondidas é muito importante que sejam analisadas as teorias mais atualizadas, mas também é fundamental conhecer o pensamento dos autores que desenvolveram, no passado, trabalhos pertinentes ao tema aqui estudado.

Entre estes autores pode-se destacar Jean Piaget que, após tantas décadas, ainda é de grande importância para a formação e desenvolvimento dos profissionais da área de Educação Física, embora existam diversos outros teóricos tão importantes quanto Piaget nos dias atuais.

Segundo Piaget (1994), quando se busca entender o sentido do aspecto moral na vida de uma criança, e a relação desta moralidade com os jogos de regras, fica claro que - apesar do constante avanço das pesquisas e das teorias relativas ao desenvolvimento infantil - um elemento fundamental permanece imutável: o respeito às regras.

De fato, quando se convenciona que toda moral constitui-se num sistema de regras, chega-se à conclusão, automaticamente, que o respeito a elasé o elemento decisivo deste sistema.

Este processo de estruturação será abordado ao longo do trabalho, através da confrontação de diferentes percepções da questão, com foco, naturalmente, no desenvolvimento das crianças na faixa etária delimitada para o presente trabalho.

PIAGET dedicou-se à observação sistemática de crianças enquanto se dedicavam a brincadeiras e jogos tradicionais como amarelinha e bolas de gude. Ao observar estas atividades o psicólogo tentou encontrar comportamentos que se repetiam em crianças da mesma idade. Em outras palavras, ele buscou identificar como se constituía o componente moral na mente de uma criança, considerando a passagem do tempo.

É importante destacar que, para PIAGET, a aquisição de qualquer tipo de conhecimento - inclusive o que diz respeito à moral - ocorre sempre através de uma interação entre o indivíduo e o meio que o circunda, num processo dinâmico ou nas suas próprias palavras:

Em primeiro lugar, é preciso notar que o indivíduo, por si só, não é capaz desta tomada de consciência (moral) e não consegue, por conseqüência, constituir, sem mais, normas propriamente ditas. É neste sentido que a razão, sob seu duplo aspecto lógico e moral, é um produto coletivo. Isto não quer dizer que a sociedade tenha tirado o racional do nada, nem que não exista um espírito humano superior à sociedade, porquanto interior ao indivíduo como à coletividade. Isto significa que a vida social é necessária para permitir ao indivíduo tomar consciência do funcionamento do espírito e para transformar, assim, em normas propriamente ditas, os simples equilíbrios funcionais imanentes a toda atividade mental ou mesmo vital (PIAGET, 1994, p. 297).

É importante, portanto, salientar que qualquer ação praticada por um indivíduo ocorre, invariavelmente, num determinado espaço, num determinado tempo e devido a uma (ou mais de uma) causa. Desta forma, conclui-se que é através da ação que a criança desperta para o jogo e todos os seus elementos.

Assim, a criança, ao perceber o funcionamento do jogo e a relação deste com ela própria, abre possibilidades de escolha e apropria-se do que lhe parece mais prazeroso tanto nos aspectos cognitivos, quanto afetivo-emocionais.

Na opinião de GIMENES (2000), a adaptação de todo indivíduo a seu meio ocorre sempre através de um processo que envolve o equilíbrio entre os elementos de acomodação e assimilação. Estes estão presentes, via de regra, em todas as ações de caráter afetivo ou intelectual, independentemente do nível de desenvolvimento em que se encontra uma criança. Às vezes o elemento acomodação encontra-se mais presente, às vezes é a assimilação que surge com maior preponderância.

Ainda na percepção de GIMENES (2000), se imaginarmos um bebê, as ações deste limitam-se aos aspectos sensório-motores, estando excluídos, portanto, os elementos da representação ou do pensamento. Mas apesar disso, é a partir dos reflexos que a criança trás desde seu nascimento que surgem os exercícios reflexos e, por conseqüência, os jogos funcionais, conforme afirma a autora:

Assim, desses movimentos simples, seguem-se os exploratórios, considerados como jogos funcionais, pois são repetidos pelo prazer sensorial que proporcionam. Posteriormente, o que agradará à criança não é o ato pelo resultado da ação, mas o como e o porquê desse ato, dando lugar ao prazer de repeti-lo. Isso denota o aparecimento do lúdico (Gimenes, 2000, p. 13).

E, no que diz respeito aos objetivos deste trabalho, é particularmente interessante notar que Piaget já observava nas crianças com menos de dois anos de idade uma noção do que é certo e do que é errado.

Esta noção é percebida através do surgimento das regras motoras que são assimiladas pelas crianças como algo agradável e interessante – distintas, portanto, das regras coercitivas – e irão gerar uma consciência da regularidade, conforme afirma Gimenes (2000):

As repetições ocorridas num jogo são como um esboço de ordem. Os ritmos orgânicos são uma repetição ainda mais precoce: como os vitais, do sono, da febre, que constituirão base orgânica para a existência dessa regularidade em níveis superiores ( p. 14).

Outra característica importante - que surge na fase inicial do desenvolvimento infantil -, percebida por Piaget e corroborada por diversos teóricos, como Châteaux[1](1954), diz respeito à necessidade das crianças em colocar ordem no mundo. Afirma Châteaux (1954) que a ordem, enquanto elemento existente em todo o universo, também se manifesta quando o indivíduo realiza a atividade de jogar, uma vez que esta atividade é estruturada segundo um princípio de ordem – independentemente do nível de sofisticação deste jogo, podendo ser desde os mais simples, do tipo sensório-motor, até os mais complexos.

Ainda segundo PIAGET (1994), o período de desenvolvimento seguinte, entre os 3 e 5 anos de idade da criança, corresponde a um segundo

momento no que diz respeito ao processo de conscientização de regras. Estas passam a ser consideradas, de uma certa forma, sagradas e fixas, pelo simples fato de serem oriundas dos adultos – geralmente, o pai ou a mãe.

PIAGET (1994) afirma ainda que os Jogos de Regras passam a fazer parte, efetivamente, da vida da criança a partir desta segunda fase, marcada por um grande egocentrismo – ou a incapacidade da criança em distinguir o que provém dos outros daquilo que provém de si –, que deve ser creditado à memória ainda em pleno processo de estruturação. Portanto, determinados comportamentos da criança, durante este período, não devem ser confundidos imediatamente com atitudes anti-sociais.

Explicam GALLAHUE; OZMUN (2001) que é normal durante esta fase a criança, ao defrontar-se com atividades em grupo com outras crianças, sentir obstáculos relativos às regras - eventualmente combinadas numa brincadeira, por exemplo. Não é incomum que a criança acabe por não se adaptar à situação, devido, por exemplo, à instabilidade emocional que a impulsiona a trocar constantemente um brinquedo por outro, além das mudanças bruscas de humor, que acabam por inviabilizar uma atividade coletiva qualquer.

Para KAMII; DEVRIES (1991), o sentido da cooperação ainda não existe para as crianças que estão nesta fase de desenvolvimento – elas até brincam umas ao lado das outras e compartilham o resultado de suas realizações mas, de fato, não são ainda capazes de efetivamente brincarem juntas, pois se constituem num grupo formado de unidades autônomas. Quando a criança alcança a faixa etária ao redor dos quatro anos de idade surge, então, a concreta possibilidade de interação entre pares, ficando para a faixa em torno dos cinco anos o início de uma procura mais ampla de companheiros de jogos.

E, finalmente, PIAGET (1994) define o terceiro estágio, em torno dos sete ou oito anos, como o momento em que surgem as primeiras manifestações claras de cooperação, pilares para a vivência dos jogos de regras. Como se sabe, o sentido da cooperação implica na descentralização do indivíduo, e esta 'mudança de eixo' é que vai possibilitar a socialização da criança. Quando brincando em grupos, as crianças começam a perceber que para vencer disputas é preciso, constantemente, realizar acordos. Cresce, então, o interesse por jogos de competição, que exigem, muitas vezes, a dinâmica de parcerias - estímulo importante para o desenvolvimento da percepção do sentido e importância da cooperação.

CUNHA(1973) recorda que é em torno dos dez anos que a consciência da regra transforma-se em 'lei' ou consenso geral. Como já foi explicado, é ao período delimitado entre os sete e dez anos de idade que será dedicada a atenção desta monografia, contudo, como já foi possível notar, neste primeiro tópico dedicado às observações de Jean Piaget ampliou-se a delimitação etária, com a intenção de se pontuar alguns elementos importantes para a presente investigação, como a prática das regras – assumida totalmente como prática consciente somente quando o indivíduo já se encontra ao redor de doze anos de idade, conforme afirma GIMENES(2000):

Os jogos de regras não se baseiam nos padrões morais de vida, ou jurídicos, mas em regras fundamentais, construídas em função de cada jogo em particular. É nesta fase, entre onze e doze anos, que se inicia o último estágio, o quarto quanto a prática das regras. A sua obediência não é proveniente do adulto, mas imposta pelo grupo, de igual para igual; sendo que qualquer violação a ela consistirá numa falta. Com consentimento mútuo o grupo codifica suas regras, suas partidas, sua duração e quantidade, bem como as possíveis eventualidades, sendo para Piaget o estágio das regras racionais (p. 17).

Todo e qualquer jogo de regras, conforme já notara e sistematizara Jean Piaget, implica na existência dos elementos sensório-motores conjugados aos elementos simbólicos - além, naturalmente, das próprias regras -, essenciais para a prática das atividades de caráter lúdico, de uma maneira geral.


2. JOGOS E O JOGO DE REGRAS

Afirma ELKONIN (1998) que a palavra jogo - bem como o verbo jogar - possui mais de um significado, que varia no tempo e no espaço. Em outras palavras, ao longo da História, diferentes povos deram distintos sentidos para estas palavras. Entre estes sentidos, o autor destaca: diversão, entretenimento, manejo hábil, manipulação de sentimentos e aposta, entre muitos outros. Hoje em dia, é comum ouvirmos na televisão ou mesmo no cotidiano expressões como "jogar limpo", "jogar com a própria vida", "jogar na Bolsa de Valores", entre muitas outras, ficando difícil mapear o surgimento e a transformação destas.

ELKONIN (1998) informa que a primeira descrição sistemática dos jogos propriamente infantis feita na Rússia, em 1887[2], traz algumas indicações dos sentidos da palavra jogo utilizados num passado remoto. Os gregos, por exemplo, entendiam jogo como as ações próprias das crianças (o que, para nós, corresponderia às conhecidas traquinices dos pequenos). Os judeus, por sua vez, entendiam jogo como riso e gracejo. Já os romanos entendiam como alegria, festa. Posteriormente, todos estes significados acabaram por se somar num sentido mais ou menos único: as ações dos seres humanos distintas do trabalho árduo e relacionadas à alegria e satisfação. Incluíam-se neste sentido as brincadeiras das crianças com bonequinhos de chumbo, jogos com bolas de gude e até a representação no teatro, para ficarmos apenas nestes exemplos.

O psicólogo e biólogo holandês BUYTENDIJK realizou em 1933[3] um estudo profundo da palavra, concluindo que ela se prestava, também, aos sentido de vaivém, espontaneidade e liberdade - significados atribuídos especificamente pelas crianças à palavra jogo, segundo o psicólogo.

Ainda segundo ELKONIN (1998), é importante notar que não existe um conceito propriamente específico para a palavra. Ele cita KOLLARITS (1940), o qual argumenta não ser possível delimitar e definir com precisão o sentido desta palavra, considerando a amplitude de ações dos seres humanos que podem ser relacionadas ao termo jogo.

Esta suposta impossibilidade de se criar uma 'teoria dos jogos', objetivando analisar os jogos infantis seria, conforme argumenta Elkonin (1998), a razão de muitos manuais norte-americanos de psicologia não incluírem o tema da psicologia do jogo. Tal dificuldade em tratar teoricamente o assunto explica porque uma grande parte dos trabalhos produzidos é do tipo empírico, ou seja, quando se trata de pensar em jogos infantis, a opção quase sempre é pela observação e descrição, ficando para um segundo plano as tentativas de elaboração teóricas.

Os primeiros estudiosos que se aventuraram em esboços de teorias de jogos foram Schiller, Spencer e Wundt, todos do século XIX. Estes pensadores - utilizando-se não só de argumentos próprios da psicologia, mas também da filosofia e da estética - identificaram os jogos como um dos fenômenos mais presentes e importantes na vida humana.

ELKONIN (1998) afirma que dentre os três estudiosos acima citados, foi Wundt quem mais se aproximou da origem do jogo, apesar de suas idéias bastante dispersas, como se pode conferir neste trecho: "O jogo nasce do trabalho (...) Não há um só jogo que não tenha o seu protótipo numa forma de trabalho sério que sempre o precedeu no tempo e na própria existência" (Wundt, 1887, pg. 181).

Elkonin (1998) resgata também a importância da contribuição de ChÂteaux (1955) para a teoria dos jogos. Este afirma que os jogos de maneirageral, e os jogos de regras particularmente, são testemunho de auto-afirmação da personalidade dos indivíduos dentro de um grupo social, e por intermédio deste grupo social.

Para Châteaux (1955), a auto-afirmação é expressão da necessidade de aperfeiçoamento e de superação das dificuldades, do inesgotável desejo de conquista de novos progressos – característica que seria comum a todos os seres humanos, e distinguiria as crianças dos filhotes dos animais.

Châteaux (1955) dedicou muita atenção aos jogos de regras, que representariam com grande destaque os elementos de comportamentos voluntários, superação de dificuldades e a afirmação social, através da aceitação das regras.

Na percepção de Olivier (2000) grande parte das atividades propostas para as crianças está referenciada em práticas codificadas anteriormente por adultos, inclusive aquelas atividades consideradas mais espontâneas, como corridas e saltos. Podem ser citados também os jogos dançados - que tem suas bases nos códigos de expressão corporal e na dança codificada -, jogos coletivos e jogos de oposição - referenciados nos jogos de combate, praticados há muito tempo pela humanidade.

Olivier (2000) destaca também que desde o início da vida escolar, nos primeiros anos do ensino fundamental, são comuns as discussões e as brigas entre as crianças, tanto dentro da sala de aula quanto nos ambientes de recreação. Os conhecidos problemas relacionados à posse de objetos ou de territórios estão relacionados, freqüentemente, à dificuldade das crianças em regular seus conflitos. O autor nota ainda que o componente da violência está sempre presente nas relações sociais, sendo uma alternativa inútil, e mesmo perigosa, negar essa realidade.

Abreu (1993) afirma que somente com o posterior desenvolvimento da socialização das crianças será possível ao educador trabalhar o jogo de regras. Este supõe, sempre, uma compreensão razoável das relações interindividuais ou sociais, que são ainda pouco desenvolvidas na faixa-etária que antecede o ingresso no ensino fundamental.

Nesta fase certamente pode-se estimular as crianças, através do desenvolvimento de algumas regularidades espontâneas, demonstradas em ritualizações ou mesmo em alguns jogos de exercícios, contudo não seria possível falar ainda em práticas de regras, uma vez que não existiriam regras espontâneas.

Abreu (1993) salienta ainda que quando pensamos em regra, devemos sempre nos recordar de dois elementos: regularidade e obrigatoriedade, ambos impostos na convivência com o outro, sendo sempre interpretada como falta a violação de quaisquer destes elementos. Conclui-se, então, que só é possível trabalhar os jogos de regras com grupos de crianças que já são maduras o suficiente para considerarem e respeitarem o outro.

Para as crianças, como enfatiza Abreu (1993), é uma dura tarefa compreender e assimilar a natureza das regras com as quais precisa conviver, não só no ambiente escolar, mas no conjunto de sua vida. No entanto, existe uma distinção que a criança faz, desde muito cedo, entre as regras inquestionáveis e aquelas onde é possível exercer alguma negociação. Um exemplo de regra inquestionável é a que diz respeito à regularidade do tempo, por exemplo - é preciso conformar-se com a existência do dia e da noite.

O outro tipo de regra, que pode eventualmente ser criticado ou questionado está relacionado, por exemplo, com as regras de convivência de um grupo. Neste, é possível que os participantes expressem suas opiniões e desejos a respeito de quais podem ser as maneiras mais adequadas para o bom convívio de todos.

Neste sentido, Broto (2001) ajuda a iluminar a questão afirmando que a experiência de jogar sempre é uma oportunidade aberta e não rigidamente determinada – o que permite a relativização de muitos componentes considerados imutáveis. Assim, a diversidade de valores e crenças que um eventual grupo compõe é, de uma certa forma, colocada em xeque. Pode-se abrir, por exemplo, um caminho de cuidado dentro de um grupo reunido para jogar. Este grupo pode jogar, disputar, mas também aprender a ser solidário. Ou não. É possível que se reproduza, por outro lado, o egoísmo mais comum do cotidiano. São diversas as possibilidades.

Broto (2001) confirma que modificar regras significa abrir possibilidades para mudanças no indivíduo. Porém, não há garantias de que isto possa acontecer. Todas as pessoas são educadas para cooperar ou competir – o educador, então, quando atua junto de crianças na faixa etária que é objeto do presente estudo deve terem mente que a maturidade do grupo ainda não é suficiente, o que resulta na necessidade dele discernir quais os caminhos mais adequados para serem percorridos. Contudo, isso não precisa ser feito de forma autoritária, ao contrário.

2.1. Fundamentos do Jogo de Regras

Aquino (2000) traz a questão do Jogo de Regras para o universo do Ensino Fundamental quando questiona os requisitos psicológicos mínimos necessários para o trabalho pedagógico. Seria possível mapear as condições ideais para que uma criança tenha um satisfatório desempenho escolar? Ou nas próprias palavras:

(...) O que tanto os educadores quanto os especialistas muitas vezes parecem esquecer (...) é que a criança/jovem em questão não é um "caso" clínico em abstrato, mas um sujeito (...) que se funda a partir das relações nas quais sua existência está inscrita ( p. 139).

Na opinião de Ferraz (1997) a integração de uma criança ao contexto do jogo de regras está relacionada com os elementos de motivação e a recompensa, num complexo processo de conhecimento. E por que complexo? Devido ao fato de que num jogo de regras nem tudo é permitido, há limites.

As regras, ainda segundo Ferraz (1997), existem para dar referências aos participantes diante de situações complexas, oferecendo uma possibilidade de bom desempenho num jogo – especialmente se estes participantes forem crianças.

Como foi mencionada anteriormente por Abreu (1993), a vida humana é repleta de regularidades - tanto de origem natural (as leis físicas ou as estações do ano, por exemplo) quanto social (hábitos culturais, costumes, etc.). Estas regularidades, no entanto, são assimiladas gradualmente pela criança, que posteriormente irá criticar e, eventualmente, modificar uma diversidade imensa de regularidades que irão fazer parte de sua existência.

Para pensarmos nesta diversidade, podemos imaginar um jogo de futebol. Ferraz (1997) destaca que apesar das regras do futebol serem claramente delimitadas, podemos apresentar a duas crianças de idades distintas um mesmo um jogo pela TV e certamente elas o interpretarão de forma sensivelmente diversa. A importância das informações se altera em função da maturidade do receptor destas informações. Ou nas palavras do próprio Ferraz (1997):

Em que pese a possibilidade de diferentes interpretações da aplicação de uma regra por dois adultos, ou seja, se o defensor cometeu pênalti ou não, o que quero ressaltar é que a diferença pode estar na limitação das estruturas cognitivas para a aprendizagem de uma regra. No caso de duas crianças com níveis de desenvolvimento cognitivo muito diferentes o que pode estar em jogo é a incapacidade de entender certas regularidades ( p.28).

Resgatando Piaget (1994), devemos recordar que a regra é a criação de normas para que seja possível a relação entre dois elementos e uma regra autenticamente moral é constituída dos elementos da prática e da consciência. Contudo as regras de um jogo infantil ou um jogo esportivo são distintas das regras morais, como não roubar, por exemplo. A diferença fundamental entre estes dois tipos de regra é que as regras de um jogo infantil podem ser alteradas, enquanto que as regras morais estão ligadas a um juízo de valor.

Conforme afirmam Linaza; Maldonado (1987), respeitar as regras de um jogo também é um ato moral, que demonstra a prática da honestidade, além do respeito pelo adversário mas, mesmo assim, a regra de um jogo em si não é moral. A regra de um jogo é uma norma (que pode ser espacial, temporal ou relativa a um objeto) e, por este motivo, está subordinada ao regulamento específico deste jogo.

Ferraz (1997) argumenta que, numa situação de jogo, seus participantes se comprometem a respeitar as regras – elemento básico para a existência do jogo – e mais: será exigida dos participantes a eficácia. Sabe-se também que a vitória deve ser obtida com a restrita observação das regras – este dado remete ao sentido da moralidade da regra. Ferraz (1997) descreve a íntima relação entre regra e moral no contexto do jogo:

Freqüentemente, em situações de jogo, pode-se observar uma prática sem consciência ou, por outro lado, a consciência sem prática. No primeiro caso, diz-se que se trata de um comportamento amoral, onde o sujeito age segundo a regra, respeitando-a, sem contudo fazer um juízo moral sobre ela. No segundo caso, consciência sem prática, está-se diante de uma situação de imoralidade pois o sujeito conhece as razões de ser de uma regra, dela não discorda, mas age intencionalmente contra ela (p. 28).

Esta relação, como já se mencionou anteriormente, foi bastante estudada por Jean Piaget e irá contribuir também para a análise do processo de conscientização das regras.

2.2. Consciência das Regras

Segundo Araújo (1992), quando se revê a história do jogo fica claro que este sempre foi considerado importante para a formação da personalidade da criança. Esta, quando envolvida em algum jogo, explora e manuseia tudo aquilo que está a sua volta, utiliza seus recursos mentais e físicos de uma maneira extremamente prazerosa, por estar momentaneamente livre da coação dos adultos – evidentemente, quando a criança passa a praticar mais especificamente os jogos de regras, existe a presença do adulto, mas isto não é necessariamente um elemento de coação, mas de estímulo ou orientação.

Araújo (1992) destaca que os jogos de regras são jogos de combinação sensório-motora ou intelectual, que apresentam sempre o elemento da competição – daí a necessidade das regras.

Conforme foi observado, o pensamento de Piaget (1994) sobre a relação entre regra e juízo moral apresenta elementos teóricos valiosos para a presente análise. Já se sabe que, além de perguntar diretamente, Piaget observou crianças jogando para obter respostas sobre a prática das regras. Era seu objetivo descobrir como os indivíduos se adaptavam, na prática, às regras – considerando as diferentes faixas etárias e seus respectivos estágios de desenvolvimento. Além disso, era fundamental que fossem captados dados relevantes sobre a consciência das regras.

O método de Piaget previa duas etapas: primeiramente a descrição, por parte das crianças das regras de um jogo qualquer. Esta descrição auxiliava na medição do nível de consciência destas. Depois, Piaget jogava com as crianças, para conferir a diferença entre a teoria e a prática dos jogadores. Além disso, as crianças não só eram indagadas a respeito da origem das regras e a modificação destas ao longo do tempo com também eram estimuladas a inventar novas, levando em consideração o aspecto da justiça e da aceitação destas novas regras por parte dos participantes do jogo.

A partir destas experiências, Piaget estabeleceu quatro níveis para a prática da regra e três para a consciência da regra, como mostra o quadro abaixo:

PRÁTICA DA REGRA

CONSCIÊNCIA DA REGRA

Motor individual

Não obrigatoriedade da regra

Egocêntrico

Obrigatoriedade sagrada

Cooperação nascente

Obrigatoriedade devido ao consentimento mútuo

Codificação das regras

Segundo Cunha (1973), na fase correspondente ao motor individual, a criança ainda não concebe a relação social ligada ao jogo – este ainda é individual, correspondendo a mais simples aplicação das possibilidades de ação. De fato, nesta fase ainda não há regras, mesmo que existam repetições ou rituais. Um bom exemplo desta fase é o bebê que arremessa sua chupeta repetidamente, para que o adulto a pegue.

A etapa egocêntrica, por sua vez, pode ser descrita como de imitação superficial das regras. A criança, que eventualmente aprende uma regra com uma criança maior, já pode anunciar a regra, mas não se mobiliza efetivamente para cumpri-la.

Já na etapa "cooperação nascente", a regra estabelece normas às ações entre os competidores e, ao prazer motor que se apresenta no nível anterior, nela aparece o gosto pela vitória sobre o adversário, respeitando-serigorosamente as regras do jogo, é a etapa onde a criança passa a obedecer às regras vigiando cuidadosamente seus adversários.

Finalizando passa-se para a codificação das regras. É quando a criança demonstra um grande interesse pela regra em si e por possíveis estratégias para obter vantagem e ganhar dentro do cumprimento da própria regra.

3. OUTROS ASPECTOS DO COMPORTAMENTO - ESQUEMA CORPORAL (7 A 10 ANOS)

Este tópico da monografia pretende observar mais atentamente alguns aspectos do desenvolvimento físico-motor das crianças pertencentes à faixa etária delimitada entre 7 e 10 anos de idade. Deve-se salientar que este período ao qual estamos estudando corresponde, como se sabe, à parte final ou posterior da infância e caracteriza-se por aumentos progressivos e compassados da massa muscular, peso e altura das crianças.

Conforme afirmam Gallahue; Ozmun (2001), o período anterior, ou a primeira fase da infância, que abrange o período de vida compreendido entre 2 e 6 anos de idade, é marcado por um acelerado ritmo de crescimento, que vai diminuindo ao longo da fase posterior. E após um período de relativa 'calmaria' ocorre um novo surto de crescimento, mas já durante a adolescência.

A fase que aqui será analisada, relativa ao final da infância, é marcada por um tipo de crescimento muito específico, como descrevem os autores:

O período de 6 a 10 anos de idade na infância é caracterizado por aumentos lentos, porém estáveis, na altura e no peso, e por um progresso em direção à maior organização dos sistemas sensorial e motor (...). A infância é principalmente, época de alongamento e de preenchimento, antes do crescimento pré-púbere que ocorre por volta dos 11 anos de idade nas meninas e dos 13 anos em meninos. Embora esses anos sejam caracterizados por crescimento físico gradual, a criança tem rápidos ganhos, apresentando níveis crescentemente maduros no desempenho esportivo (Gallahue; Ozmun, 2001, p. 242).

É importante destacar que, devido a este período posterior da infância ser marcado por um crescimento mais lento e 'consistente', a criança tem tempo mais que suficiente para adaptar-se às transformações de seu próprio corpo, o que gera uma notável melhora de sua coordenação e controle motor e, como se pode inferir, de seu desempenho nas diversas atividades cotidianamente desenvolvidas na prática de Educação Física.

Nesta fase, segundo Gallahue; Ozmun (2001), também são quase imperceptíveis as diferenças entre os padrões de crescimento dos meninos e das meninas. De maneira geral, os membros de ambos crescem mais do que o tronco, sendo que os meninos normalmente têm um crescimento ligeiramente mais expressivo dos membros, além de manterem uma altura relativamente estável. As meninas, por sua vez, já apresentam um quadril mais largo e as coxas mais volumosas.

Outro dado importante é referente ao crescimento do cérebro: este, no período de desenvolvimento aqui em questão, também cresce muito lentamente, e o crânio mantém-se praticamente o mesmo, ocorrendo uma expansão mais perceptível da cabeça somente quando se aproxima o final da infância.

Enquanto as crianças não alcançam a fase da pré-adolescência, as diferenças de peso e conformação física são relativamente poucas. Segundo dados estatísticos que compreendem o período entre 1973 e 1991[4], pouca coisa se alterou, o que significa que meninos e meninas desta faixa etária ainda podem – e devem – ser capazes de participar conjuntamente das atividades propostas durante as aulas de Educação Física.

3.1. Aspectos Sócio-Afetivo, Cognitivo e Psicomotor

O ser humano, como se sabe, não é formado apenas pelos componentes estritamente físicos. Outros elementos coexistem, formando uma unidade complexa que é a criança. Na obra 'Construindo o Movimento na Escola', de MATTOS; NEIRA(2000), constauma tabela que resume com clareza as distintas fases do crescimento infantil, segundo diferentes concepções teóricas:

FAIXA ETÁRIA

SÓCIO-AFETIVO

(WALLON)

COGNITIVO

(PIAGET)

MOTOR

(VAYER)

3 A 6 ANOS

Crise da oposição e inibição, aquisição da consciência do eu, narcisismo, egocentrismo, auto-admiração, imitação, inserido no contexto familiar

Fase pré-conceitual, aquisição da função simbólica, pensamento irreversível, os estados são resultantes de transformações incoerentes

Através da ação melhora a precisão e coordenação de movimentos, utilização cada vez mais diferenciada e precisa dos seus segmentos

7 A 10 ANOS

Personalidade polivalente, ajustamento da conduta às circunstâncias das possibilidades e conhecimento mais preciso e completo de si

Progressiva descentralização, coordenação interiorizada dos esquemas de ação, operações simples e concretas

Associa as sensações motoras aos outros sentidos, controla respiração e postura, afirma a lateralidade, possibilidade de relaxamento, independência de segmentos, transporta o conhecimento de si aos outros

11 EM DIANTE

Extrema valorização do grupo, conhecimento incompleto do seu potencial, período da testagem

Surgimento do pensamento lógico e dedutivo

Movimento corporal mais preciso e rítmico, consciente das próprias possibilidades e das possibilidades alheias

Fonte: Mattos & Neira: Educação Física Infantil: Construindo o Movimento na Escola.

Segundo os autores, um educador, quando está preparando uma aula, deve ter em mente todos os aspectos que compõe uma criança, a saber, os componentes sócio-afetivo, cognitivo e motor. Eles destacam os dois primeiros devido à dificuldade em se elaborar aulas que, de fato, atinjam os objetivos pretendidos.


4. DESENVOLVIMENTO MORAL

O educador da área de Educação Física atuante no Ensino Fundamental - mais especificamente aquele que atua com crianças na faixa etária delimitada entre 7 e 10 anos de idade - deve estar atento às abordagens teóricas mais modernas, que levam em conta as inter-relações entre fatores psicológicos, físico-motores e sociais, uma vez que, como afirma Olivier (2000),certos comportamentos são sempre percebidos quando as crianças estão estabelecendo sua sociabilidade ou especificamente vivenciando seus conflitos, ainda durante o período que corresponde ao princípio da vida escolar.

Olivier (2000) destaca algumas características bastante comuns entre as crianças: conteúdos agressivos manifestos através de brigas, discussões, lutas por objetos, espaço ou poder. Todas estas manifestações (constantes, evidentemente, entre inúmeras outras características) tão conhecidas daqueles que, por um motivo ou outro, convivem com os pequenos podem ser observadas, no caso do ambiente escolar, tanto dentro da sala de aula como no pátio das escolas.

É ponto consensual entre pedagogos, psicólogos e educadores, conforme afirma Biaggio (2001), que os conteúdos acima citados são aprendidos antes das crianças iniciarem sua vida escolar. Naturalmente, não consta entre os objetivos deste trabalho descrever as inúmeras teorias que procuram dar conta do desenvolvimento infantil em sua fase pré-escolar (objetivamente, o período anterior ao ingresso no Ensino Fundamental), contudo, um dado de caráter psico-sociológico deve ser salientado: conteúdos violentos são inerentes a sociabilidade humana, como Olivier (2000):

Pensamos que essa violência é inerente às relações sociais e que seria inútil e perigoso negá-la (grifo meu). É preferível considerá-la como o resultado de múltiplas interações, manifestando-se em circunstâncias precisas: como reação à violência do outro, do meio ambiente, como resposta a um estresse ou a uma frustração, como desejo de impor-se. Portanto, não se trata de procurar suprimi-la, mas de considerá-la como modo de expressão e de comunicação, para que a criança seja progressivamente capaz de situá-la em suas relações com os outros, trazendo, assim, respostas às interrogações que a violência provoca[5] ( p. 11).

Serão analisados com mais cuidado neste tópico - que trata especificamente do desenvolvimento moral da criança, considerando os aspectos psicológicos e sociais -, os modos pelos quais os pequenos, através dos Jogos de Regras, tornam-se gradativamente preparados para estabelecer uma sociabilidade construtiva – que domestica seus componentes violentos.

Este processo, como sublinha Aquino (2000), considera o enfrentamento de algumas interrogações por parte das crianças que a escola - e certamente o educador da área de Educação Física – deverá ajudar a responder: que violência sofro? Que violência suporto? Que violência é socialmente permitida?

Aquino (2000) frisa também que, ao encaminhar estas demandas dos alunos ainda em seus primeiros anos de vida escolar, os educadores devem ter consciência de que estarão contribuindo de maneira decisiva na estruturação moral das crianças, uma vez que o ambiente escolar, como se sabe, é o lugar ideal para o desenvolvimento da percepção dos limites do permitido, proibido ou suportável.

Esta percepção, segundo Gimenes (2000), permite à criança, entre outras coisas, identificar com clareza as alterações dos limites em função dos diferentes ambientes em que esta se encontra: em casa, na rua ou no ambiente da escola, para ficarmos apenas nestes três exemplos.

Na percepção de Olivier (2000), outro elemento que emerge gradualmente à consciência dos pequenos está relacionado aos diferentes 'tons' de repreensão, que variam conforme o caráter da violência praticada, recebida ou simplesmente observada. Esta pode ser reacional ou visar claramente um dano, condições estas que vão determinar a atitude do educador ou instituição que, quase sempre, precisam enfrentar as versões dos 'sujeitos conflitantes': "ele começou primeiro" ou "o fulano bateu primeiro", as típicas argumentações das crianças que já percebem as diferentes gradações de repreensão.

4.1. Desenvolvimento Cognitivo

Segundo a avaliação de Biaggio (2001), o modo como os valores e comportamentos morais são adquiridos pela criança sempre foi um tema que despertou a curiosidade de inúmeros estudiosos. Entre estes poderíamos citar Freud, Durkheim e Parsons, para ficarmos apenas nos nomes mais conhecidos.

De maneira geral, segundo Biaggio (2001), a moralidade é vista como um conjunto de regras culturais que foram assimiladas pelo indivíduo. Essa assimilação ocorre de fato quando a pessoa segue uma determinada regra independentemente de qualquer incentivo ou controle social. Portanto, qual é o processo que faz com que uma criança – que, invariavelmente, nasce amoral – internalize, de maneira definitiva, normas morais? Algumas possibilidades podem ser vistas no quadro abaixo:

TEORIAS

CONTEÚDOS ENFATIZADOS

METODOLOGIA

PSICANALÍTICA

Complexo de Édipo, formação do superego, culpa.

Clínica e especulativa.

APRENDIZAGEM SOCIAL

Comportamentos manifestos de resistência à tentação; altruísmo; alguma atenção a reações de culpa e a aspectos cognitivos.

Pesquisa empírica de natureza relacional e especialmente experimental.

COGNITIVA

Julgamento moral.

Dissonância cognitiva.

Clínica, especulativa e algumas pesquisas empíricas.

Pesquisas empíricas.

As teorias apresentadas no quadro acima, naturalmente, não serão analisadas em profundidade, mas algumas considerações breves podem ser realizadas.

Conforme afirma Costa (1991), é importante reconhecer o impacto de conceitos desenvolvidos pela psicanálise - como superego, culpa e repressão, entre outros – para o desenvolvimento dos estudos científicos em psicologia.

Como já foi citado anteriormente, Piaget (1994) considera a moralidade um sistema de regras, e o fundamento básico deste sistema seria o respeito que o indivíduo alimenta por estas regras. A criança, argumenta Piaget, quando chega no estágio mais avançado de seu desenvolvimento moral tem a consciência de que o comportamento moral é importante para a confiança e a boa vontade nas relações sociais. Este caminho pode ser dividido em quatro estágios, no que diz respeito à pratica das regras:

-Primeiro estágio, entre dois e três anos de idade, em que a criança absolutamente desconhece a existência de jogos com regras. Nesta fase a criança demonstra apenas a tendência para comportamentos repetidos, ritualizados;

-o segundo, conhecido como estágio egocêntrico, onde a criança percebe a existência de regras mas ela ainda não joga com os outros. Ela percebe as regras como algo que surge de uma autoridade superior;

-o terceiro estágio, iniciado em torno de oito ou nove anos, corresponde ao período em que a criança começa a jogar com os outros, percebendo então o sentido da existência das regras. Essa conscientização da interação com outras crianças;

-O último estágio, entre 11 e 14 anos, corresponde à fase em que as regras são codificadas. A partir de então, percebem que as regras podem ser mudadas, se todas as crianças concordarem.


Piaget (1994) acompanhou as alterações na prática das regras, bem como as atitudes em relação às regras. Estas mudanças foram, então, divididas em três estágios:

-O primeiro estágio corresponde ao momento em que a criança não considera as regras pertinentes à sua vida. A criança sempre joga sozinha;

-O segundo é relativo à fase egocêntrica, em que a criança descobre as regras, porém considera as regras imutáveis. Ela ainda está nos primeiros passos no sentido da cooperação mútua;

-finalmente, a criança aprende a cooperar com os outros na prática dos jogos. Ela se conscientiza de que as regras existem porque os participantes num jogo concordam a respeitos destas mesmas regras.

Contrariamente aDurkheim, Piaget (1994) afirma que a moralidade não é aprendida apenas através da imposição de uma autoridade. É preciso também que exista cooperação mútua para que um indivíduo internalize e aceite certos valores morais.

Biaggio (2001) também destaca a importância do chamado Realismo moral nos estudos de Piaget. O Realismo Moral é a tendência a considerar o dever e seu valor como independentes de qualquer variável, ou melhor, superiores a qualquer circunstância. O realismo moral, para as crianças, se desenvolve em três estágios:

1.Não é errado mentir ou roubar se não houver castigo;

2.A mentira e o roubo são maus, independente da existência da punição e, finalmente;

3.A sinceridade e a honestidade são necessárias para a reciprocidade e a harmonia. Todas as ações são julgadas em função de sua motivação.

Gimenes (2000) destaca também um aspecto importante que Piaget observou em relação ao desenvolvimento do julgamento moral: a relação entre justiça e castigo. Existiriam dois tipos de castigo, o expiatório, no qual a intenção do autor não é levada em conta e o castigo dado é proporcional ao estrago produzido, e o castigo recíproco, onde a punição está contida no efeito de rompimento do laço social. Em relação ao desenvolvimento do conceito de justiça, Piaget percebeu também estágios distintos:

1.A justiça sempre está subordinada a uma autoridade adulta e a punição expiatória é aceita pelo 'infrator'.

2.A fase do Equalitarismo Progressivo, onde a ação moral é valorizada por si mesma e;

3.A equidade, onde a 'expiação' é eliminada do castigo e o perdão pode ter maior valor que a retribuição. Segundo o autor, muitos adultos ou mesmo muitas culturas jamais atingem essa fase.

Biaggio (2001) destaca outro importante estudioso do comportamento moral, o norte-americano Kohlberg, que também considera importante a observação do processo de maturação de estruturas cognitivas. No entanto, contrariamente a Piaget, Kohlberg acredita na universalidade de princípios morais. E justamente para que não se conclua que as idéias de Piaget são absolutas, em seguida serão detalhados mais alguns aspectos da teoria de Kohlberg.

A maioria dos psicólogos, afirma Biaggio (2001), considera que não há princípios morais universais – cada indivíduo adquire os valores morais exclusivamente da cultura em que vive. O desenvolvimento moral seria, via de regra, a internalização direta de normas culturais e, além disso, estaria ligado a processos irracionais e emocionais.

Kohlberg (1970) discorda dos pontos de vista acima. Para ele os princípios éticos são diferentes das regras e crenças e possuem uma seqüência evolutiva bastante clara. Esta seqüência pode ser observada no quadro abaixo:

NÍVEL I / PRÉ-CONVENCIONAL (ou pré-moral)

ESTÁGIO 1

Orientação para a punição e a obediência

ESTÁGIO 2

Hedonismo instrumental relativista

NÍVEL II / CONVENCIONAL (moralidade de conformismo ao papel convencional)

ESTÁGIO 3

Moralidade 'bom garoto', de manutenção de boas relações e de aprovação dos outros.

ESTÁGIO 4

Autoridade mantendo a moralidade

NÍVEL III / PÓS-CONVENCIONAL

(moralidade de princípios morais democraticamente aceitos)

ESTÁGIO 5

Moralidade de contrato e de lei democraticamente aceitos.

ESTÁGIO 6

Moralidade de princípios individuais de consciência.

Avaliar em que estágio se encontra um indivíduo, a partir da observação da tabela acima é algo bastante complexo e subjetivo, sendo que Kohlberg (1970) elaborou até um escore numérico para utilizar a tabela. Para os objetivos deste trabalho, acredita-se ser suficiente apenas esta apresentação.

4.2. Abordagem Comportamental

Do ponto de vista comportamental, segundo Biaggio (2001), para se compreender como uma criança assume comportamentos morais é indispensável que seja analisada a maneira como essa criança é ou foi criada.

Biaggio (2001) afirma ainda que quando o desenvolvimento moral é analisado a partir de uma abordagem comportamental, normalmente são observados os recursos utilizados pelos pais para educarem seus filhos. Estes recursos, via de regra, são os seguintes: a premiação, a punição e o exemplo.

Dentre estes recursos pode-se destacar o exemplo, uma vez que diversos estudos demonstram que as crianças assimilam padrões culturais a partir da observação dos mais velhos.

Como destacam Tani et al (1988), e já foi anteriormente mencionado, todo comportamento humano pertence aos domínios cognitivo, afetivo-social e motor. Mas, embora um determinado comportamento possa ser classificado num dos três domínios citados, é importante deixar claro que na maioria absoluta dos comportamentos ocorre a participação de todos os três domínios. Essa classificação é útil, basicamente, para que se possa mapear a predominância eventual de um ou outro elemento.

CAPÍTULO III - CONCLUSÃO

 

Conclui-se pelo exposto nesse trabalho que os jogos de regras são de suma importância para o desenvolvimento infantil, uma vez que tanto no ambiente escolar - mais especificamente na prática da Educação Física - quanto no cotidiano, faz-se necessário que a criança pratique sua sociabilidade e desenvolva diversas aptidões. E a vivência dos jogos de regra é, sem dúvida, um dos elementos que melhor atende a essa demanda da infância.

Vivenciar, praticar os jogos de regra significa, na verdade, preparar-se de maneira intensa e saudável para a vida adulta. E ser adulto, entre tantas definições, é também ter a capacidade de responder a uma diversidade de chamados. O chamado da responsabilidade, o chamado da construção de uma sociedade melhor, o chamado para a vida, enfim.

Desta forma, não se pode esperar de um adulto um desempenho satisfatório diante dos desafios da vida - seja no âmbito profissional, familiar e até mesmo da cidadania -, se este não vivenciou, em sua infância, o sentido da cooperação e da solidariedade ou o sentido da união com o objetivo de perseguir uma vitória.

Todas as questões levantadas e analisadas conduziram este trabalho para o pensamento que hoje considera a criança como um ser complexo, inserido no ambiente social – e não apenas um objeto de análise morfológica, psicológica ou, talvez, mais um caso clínico. Viver e ensinar o respeito às diferenças, às peculiaridades de cada um; estimular as potencialidades que toda criança traz consigo: este é o papel do educador e até mesmo do especialista mais dedicado às especulações teóricas.

A escola é, por excelência, não apenas o local de recepção das diferenças humanas e sociais, perceptíveis em qualquer turma de alunos. Ela é também produtora de novas, e felizes, diferenças: a diferença do pensar, a diferença do sentir. Na escola vive-se, permanentemente, novos estranhamentos e novos reconhecimentos. E os jogos de regra, se não puderem contribuir para este processo, de nada servem.

Como nos faz lembrar Julio Groppa Aquino, a palavra pedagogia é constituída das palavras paidos (criança) e agogia (conduzir). Portanto, educar é conduzir seres humanos numa viagem - numa boa viagem, repleta de crescimento e de satisfação. Sem dúvida viajar sempre implica em partida - algo que uma criança, comumente, não tem plena consciência. Mas o professor sabe: ele vai conduzir essa criança para um mundo totalmente diferente, distinto da proteção dos pais. E neste lugar a criança vai encontrar o outro, aprender com o outro, jogar com o outro, viver com o outro. Com a ajuda do professor, vai-se tornar mais humano.

 


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

 

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[1] Citado em Gimenes, p. 14.

[2] Realizada por Petróvski (ver Elkonin, pág. 11).

[3] Também citado por Elkonin, pág. 12.

[4] Ver biblio.: David L. Gallahue e John C. Ozmun, 2001, p. 242.

[5] Essa afirmação, deve-se ressaltar, não está imediatamente relacionada com o intenso (e necessário) debate relativo à violência na vida contemporânea.