Conselho Brasileiro de Psicanálise ( I.N.N.G.)

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OUVINDO O INCONSCIENTE

 

Dr. Wagner Paulon

     1974 - 2012

 

 

Neste artigo, vou ensiná-lo a "escutar". É possível que nem sempre o ato de escutar seja um hábito por si mesmo recomendável. Mas tudo depende do lugar e do que queremos ouvir.

 

Em si mesma, a arte de ouvir é uma das mais elogiáveis. E não é tão fácil como muita gente acredita.

 

O leitor, por acaso, já observou como "Psicanalista" um grupo de pessoas conversando? Se não, aproveite a primeira oportunidade para esse exercício. Há de encontrar bastante material para reflexão.

 

Vai observar, por exemplo, que as pessoas cujas ideias seriam as mais interessantes e instrutivas, são, justamente, as que menos falam; ao passo que as que falam muito, são as que têm opiniões de menos valor e interesse.

 

Ouvir é uma arte; falar é, muitas vezes, uma doença.

 

Quem fala muito não fala para instruir os demais, mas, simplesmente, para satisfazer uma inclinação inconsciente; fala, portanto, para si mesmo.

 

Ninguém deve habituar-se a falar sem pensar, e pensar é um trabalho penoso. A exposição das ideias que merecem reflexão alheia exige muito tempo e muito esforço.

Este artigo trata da arte de ouvir; ouvir o espírito inconsciente. E se ouvir o espírito alheio é uma arte, o desejo e a habilidade de escutar o nosso devem ser considerados uma verdadeira religião.

 

Há vários meios pelos quais podemos ouvir o nosso próprio espírito inconsciente; neste artigo trataremos daquele que nos é fornecido pelos fenômenos do sonho.

 

Algumas pessoas afirmam que não sonham, a não ser raramente. O que não quer dizer que seu espírito seja menos ativo que o dos outros ou seja mais disposto e aparelhado. Isto significa, simplesmente, que tais pessoas não são capazes de apreender exatamente o que se passa nas profundidades do seu inconsciente.

 

Sonhar e atividade mental inconsciente não são, absolutamente, expressões sinônimas.

 

Sonhar implica a habilidade da atividade mental inconsciente em se tornar consciente, mesmo que seja por espaços rapidíssimos, breves como relâmpagos. Um sonho é um rasgão nas nuvens que ocultam da consciência o funcionamento inconsciente. E são os rasgões nas nuvens que permitem à consciência a oportunidade de dar um golpe de vista no que se passa atrás da cortina mental. Tais clarões podem ser compridos ou curtos, raros ou frequentes, conforme as circunstâncias; e se uma pessoa não sonha, a razão está simplesmente no fato de que o véu me esconde a vida mental inconsciente é, poucas vezes, afastado. Em consequência, há poucas oportunidades da consciência conseguir um golpe de vista no que se passa nos "bastidores."

 

Milhões de pessoas viveram e morreram sem ter obtido, uma só vez, um sonho nítido; e qualquer pessoa pode sonhar, toda noite, se o quiser.

 

Até pouco tempo, ninguém dava ao sonho a importância merecida, de maneira a desejar sonhar ou não. O indivíduo seguia a sua vida rotineira, sem levar a sério a questão, sem se preocupar com o problema. E se se preocupasse com ele era só para considerar tais experiências como divagações intelectuais sem Importância, ( uma espécie de brincadeira, de passatempo psíquico). Evidentemente, se o sonho fosse dos da classe de sonhos ansiosos (pesadelos), a brincadeira não seria, com certeza, muito apreciada.

 

Pois qualquer pessoa pode ter um sonho por noite, se o quiser e, mais ainda, até cm hora preestabelecida, podendo ser o tempo regulado mesmo em minutos. Não falo de sonhos artificiais; mas de um verdadeiro levantar da cortina que separa a vida consciente da vida inconsciente.

 

Ao se deitar, esta noite, acerte o despertador para uma hora em que não está acostumado a acordar; pode acertá-lo até em minutos, escolhendo, assim, o minuto da noite em que deseja ter o sonho.

 

E quando o despertador o acordar, pare-o o mais depressa e mecanicamente possível, sem se importar com o ato em si, mas tendo o espírito livre, dirigido a outro ponto.

 

Quando começar o alarme do despertador, o leitor estará dormindo, isto é, em estado de inconsciência mental. Não há, então, véu algum velando o inconsciente, pois nada existe para ser velado.

 

Começa, então, uma grande luta entre a consciência e a inconsciência. Duas condições existem, prontas e dispostas a se realizarem;

 

1º de um lado, os estímulos auditivos, artificiais e energéticos, produzidos pelo alarma do despertador, procuram pôr a consciência, novamente, em atividade;

 

2º de outro lado, procura baixar-se,  cada vez mais, sobre o inconsciente, o véu que o desvendava.

 

Todos os sonhos, resultam de uma falta de sincronização nessas duas ações. Se se estabelece o estado consciente mais depressa que o abaixamento do véu sobre o inconsciente, aquele pode obter um golpe de vista sobre os bastidores deste último. E temos, então um sonho.

 

Tais "golpes de vista" são, em geral, muito efêmeros, embora tenham, muitas vezes, a duração suficiente para permitir a visão de uma boa parte do inconsciente mental.

Assim, quando tocar o alarma, deve-se silenciá-lo imediatamente, procurando-se concentrar as primeiras forças da inteligência consciente sobre aquilo que existe no espírito, justamente no momento em que se desperta.

 

Nesse momento certas ideias surgem, sob qualquer forma, na consciência (é essa apreensão intelectual das ideias que constitui, propriamente, o consciente). Se, entretanto, os primeiros segundos que se seguem ao despertar da consciência não forem utilizados na formação deliberada de pensamentos conscientes, então o espírito será ocupado por pensamentos inconscientes, isto é, por sonhos.

 

No momento do despertar, a consciência não será ocupada nem com pensamentos das experiências da véspera, nem com os que se relacionem com as responsabilidades e projetos do dia que nasce. Não está tão acordada que permita uma atividade tão grande. Está, pelo contrário, povoada por tudo aquilo que conseguiu penetrar antes que se abaixasse, completamente, a cortina sobre o inconsciente; e tudo isso que a povoa, são ideias reais, verdadeiras, de que se ocupava, no momento, o seu, espírito inconsciente.

 

A atividade mental inconsciente não para nunca; nem de dia, nem de noite. Do berço até o túmulo. É um atribulo da própria vida; quando cessa, cessa a vida mesma. O que conhecemos como sonhos são visões rápidas, fugidias, dessa atividade.

 

A pessoa que não tem sonhos, portanto, é simplesmente aquela em que, usualmente, os dois atos, o de despertar e o de abaixamento da cortina, que corta a atividade inconsciente, são simultâneos.

 

O que a pessoa que não sonha precisa, pois, fazer para sonhar como as outras, é despertar-se o mais depressa possível e empregar os seus primeiros momentos de acordada em apreender o que já está no espírito, não se preocupando em enchê-lo com pensamentos deliberadamente formulados.

 

Não é absolutamente indispensável para tanto fazer-se a experiência com o despertador; cada um pode consegui-lo normalmente, quando acordar. O que é necessário é despertar-se depressa e procurar apreender, rapidamente, o que existe, nesse momento, na consciência. Assim, sempre se encontrará nela alguma coisa; e como, evidentemente, essa coisa não penetrou pelos meios comuns dos sentidos e do raciocínio, força é considerá-la como tendo vindo de baixo: um sonho, portanto.

 

A experiência do despertador serve, simplesmente, $ara demonstrar que o grande inconsciente sempre está em atividade, atividade esta que se pode sempre "espiar" um pouco, bastando para isso apenas alguma habilidade. O leitor pode "escutar" esse vasto inconsciente, a qualquer hora da noite, se assim o desejar.

Para tanto, exigem-se somente dois requisitos:

1.° — estar o leitor dormindo;

2.° — despertar-se rápida e bruscamente, procurando apreender tudo o que este em sua mente, antes de nela colocar qualquer coisa consciente.

 

É necessário pouco exercício para uma pessoa que não sonha tornar-se um sonhador fértil, inveterado. O sonho pode ser cultivado como se cultiva um hábito.

 

Entenda-se que a natureza da atividade mental inconsciente é de maior importância para a personalidade e para que se consiga qualquer nova orientação na vida mental submersa é, naturalmente, de primeira necessidade, conseguir-se a oportunidade de observar a sua exata natureza.

 

Há, então, um processo de reeducação, cujo primeiro passo é o de encarar o fenômeno mental em condições adequadas, de modo a se poder perceber a maneira de agir e de sentir do espírito inconsciente.

 

Cada experiência do sonho é uma oportunidade para se obter uma vista de olhos sobre as atividades inconscientes; daí a necessidade e a importância de sua compreensão.

 

É possível, naturalmente, que o inconsciente tenha experimentado, durante a noite, muitas emoções diferentes daquelas que a consciência aí encontra, na ocasião de despertar. Não importa. Tudo o que, nesse momento, está atraindo a atividade mental submersa, tem a sua importância. Há, entretanto, boas razões para se supor que, justamente nos momentos em que a consciência está mais apagada, mais entrem em atividade no inconsciente os fatos que se realizaram mais intensamente na véspera.

 

Um grama de demonstração vale inúmeras toneladas de teorias. Por isso, nada mais fácil do que verificar-se se, de fato, durante o sono, a atividade inconsciente está respondendo a alguma experiência do dia precedente. Basta ouvir, segundo as normas indicadas, a atividade inconsciente, conseguir uma vista de olhos suficiente sobre o material do sonho e confrontá-lo com o material das experiências e fatos da véspera. A prova se evidenciará!

 

O grande mecanismo inconsciente está sempre reagindo aos diferentes estímulos; embora as reações às vezes sejam tão pronunciadas que não permitam dúvidas sobre a sua natureza, há, entretanto, casos, e numerosos, em que não há reconhecimento consciente do que se passou. Se, com efeito, as pernas tremem, as faces ficam pálidas de medo ou se recuamos de pavor ante um perigo visível, não há necessidade de se procurar a causa de tudo isso, pois a reação inconsciente é tão pronunciada e direta, que dispensa provas sobre a sua causa e natureza. Há muitos casos, porém, nos quais a consciência ignora totalmente os verdadeiros fenômenos que se passam no inconsciente, muito embora seja a primeira a sofrer a sua influência.

 

Um fato que a princípio pode parecer estranho e difícil de se compreender mas que, não obstante, não deixa de ser muito verdadeiro, é o de que os acontecimentos e experiências que mais seriamente vão influir em nós são exatamente os que não são apreendidos pela consciência. E, embora a afirmação pareça paradoxal, é muitas vezes necessário dormir para que consigamos descobrir o que nos impressionou mais profundamente quando acordados.

 

Os sonhos nunca são produzidos por qualquer coisa que nos tenha preocupado muito e muito recentemente ; sempre giram em torno de alguma coisa que tentamos recalcar.

 

Mesmo durante os momentos de esforço intelectual acentuado, quando nos preocupamos seriamente com assuntos de negócios ou de vida doméstica, os sonhos não têm os principais característicos, nem de uns, nem de outros; estão, ao contrário, ligados a algum traço das ocorrências do dia anterior que não conseguiu, de modo algum, nos impressionar conscientemente. As influências estimuladoras do sonho nunca são reconhecidas no momento de sua ocorrência; somente se revelam pela análise, depois de passado o sonho. Quando o leitor apanha o seu inconsciente "cochilando", por assim dizer, e procura ouvi-lo por intermédio do sonho, vai descobrir com a análise subsequente, que ele se estava ocupando em reviver alguma velha lembrança que fora enterrada viva. Um traço qualquer das experiências da véspera (e desconhecido pelo consciente) fez explodir um determinado material recalcado no inconsciente: (certas lembranças velhas foram estimuladas e entraram em atividade com a mesma vivacidade e a mesma insistência que possuíam quando foram, inicialmente, recalcadas).

 

Qualquer observação sumária do funcionamento do inconsciente revelará a atividade mental de uma ou outra coisa que ignoramos, ou que tentamos ignorar, recusando-lhe qualquer reconhecimento por parte da consciência.

 

Não importa o número de vezes em que procuramos auscultar o inconsciente; toda vez que o fizermos, vamos encontrar a sua atividade girando em torno de alguma forma de pensamento que procuramos expelir da consciência em vez de sublimá-lo. As perturbações que recusamos a encarar face a face, procurando ajustá-las ao consciente, refugiam-se, por isso mesmo, na inconsciência. E, muitas e muitas vezes, com efeitos desastrosos.

 

Para que nos conheçamos a nós mesmos, devemos, portanto, antes, começar conhecendo o nosso espírito inconsciente.

 

Do mesmo modo que,  muitas vezes, uma mudança de clima vem intensificar alguma velha debilidade física, também mudanças que ocorrem nas influências psíquicas poderão afetar as antigas feridas do EU.

Desde que, com uma vista de olhos sobre o inconsciente, se descubram ideias dramatizadas, disfarçadas, pode-se ter a certeza de que atrás desses disfarces se escondem pensamentos latentes, penosos para a personalidade. O disfarce na dramatização das ideias inconscientes sempre indica a atividade de, memórias recalcadas e não sublimadas:

A - onde há disfarce no drama do sonho, há conflito;

B - e onde há conflitos, há, também, perda de energia.

 

Recalcamentos, conflitos, disfarces e perda de energia sempre andam juntos. Onde está um, estão todos.

 

Os únicos sonhos "bons" são os que estão totalmente isentos de disfarces, de camuflagens. Tal é a regra fundamental para a análise dos sonhos. Infelizmente, são raríssimos esses sonhos na vida adulta.

 

O disfarce que se encontra na dramatização do sonho, representa um recurso do inconsciente para ocultar as suas tendências e desejos inconfessáveis. E é preciso notar que as pessoas que mais possuem tais tendências e desejos são justamente aquelas que mais nos procuram impressionar com a sua ultra respeitabilidade psíquica.

 

Com um pouco de prática, qualquer pessoa pode habituar-se a auscultar o inconsciente pela manhã, ao despertar-se, e sempre com a possibilidade de conseguir um fator-índice de sua vida mental inconsciente.

 

Não é necessário um sonho longo. Um dos sonhos que me forneceu à consciência maior quantidade de dados aproveitáveis não ocupou mais que uma fração de segundo para ser sonhado; foi, na realidade, um relâmpago. Eu me deitara para uma sesta rápida, logo depois do almoço, antes de ir ao escritório. Nem era uma sesta; nem, mesmo, um cochilo. Uma rápida perda de consciência. Pois se, durante esse tempo, estivesse guiando um automóvel em ruas cheias de um tráfego intenso, não poria ninguém em perigo, não provocaria nenhum acidente. E, entretanto, a análise desse "sonho" exigiu duas horas de tempo para ser datilografada.

 

Esse sonho me levou de São Paulo a uma paisagem montanhosa do Sul de  Minas Gerais em 1974, mais ou menos; e depois de lá vagar, ligou-se o meu espírito, sob a influência "de várias condições, a uma experiência do tempo da infância, libertando uma lembrança que tenha ficado completamente escondida da minha consciência, durante muitos anos.

 

Para se avaliar a importância da análise do sonho, basta considerar-se que um seu simples elemento, de uma rapidez incrível, pode, pela análise, remover um conflito inconsciente que tenha durado a vida inteira.

 

♦ - Na análise dos sonhos, deve o leitor lembrar-se que há dois fatores do maior interesse;

1 - a natureza da lembrança inconsciente evocada no sonho

2 - e o acontecimento da véspera que provocou O sonho.

♦ - Em outros termos:

1 - a influencia provocadora do sonho (realizada na véspera)

2 - e as ideias que se movimentaram:

♠ - medos,

♣ - fraquezas,

♥ - desejos anteriores e recalcados..

 

O objeto da análise consiste em ligar esses dois fatores, procurando aplicar sua lição e ajustar convenientemente o seu resultado à personalidade.

 

Em vez de ser um trabalho penoso, a análise do sonho torna-se um esforço interessante. Com a noção de que esta prática fornece uma alavanca com a qual se pode remodelar, reajustar e reconstruir os alicerces subterrâneos da personalidade, o estudante de autoanalise não precisará de outros estímulos para pôr em aplicação esses princípios. Quanto mais progredir nesses esforços analíticos, tanto mais se beneficiará, não só na disposição geral, na personalidade, como na atitude mental consciente. E como o "escutar" o inconsciente se vai tornando, com o tempo e com a prática, um hábito, vão consequentemente desaparecendo os conflitos psíquicos.

 

O nosso enorme inconsciente está sempre procurando se fazer ouvir; se o não ouvimos, falará através de nós, utilizando-se de nossas palavras (escritas e faladas) e das nossas ações para que se façam compreender pelos outros.

 

Se nos recusamos a ouvi-lo, o inconsciente "invadirá" e com veemência a nossa conduta consciente. E é o que acontece durante a nossa vida toda, sem que disso tenhamos conhecimento; e se o não percebermos é porque andamos, a vida toda, a procurar desculpas para as diversas falhas que tivemos e para as muitas experiências desastradas por que passamos.

 

O inconsciente está continuamente lembrando à consciência que deixe de desperdiçar energias em conflitos insensatos, de modo que ela se possa utilizar das exigências do meio e das circunstâncias. E muitas vezes não damos importância a essas admoestações, o que nos traz, fatalmente, os mais desastrosos efeitos.

 

Este grande mecanismo submerso tem potencialidades maravilhosas e é capaz de exercer um tremendo poderio; mas a primeira coisa necessária para se conseguir esse poder, de maneira a utilizá-lo conscientemente, é compreender o seu mecanismo. Um elefante faminto não se satisfaz somente com um regime de aforismos, nem um automóvel pode andar onde não existe estrada. Se há necessidade da utilização da força bruta daquele enorme animal, o que se deve fazer é alimentá-lo e cuidá-lo convenientemente, assim como fornecer gasolina a este, desde que se exija que suba em terceira. Além disso, é necessário conhecer-lhe o mecanismo.

 

O Sermão da Montanha é unia das mais inspiradas e sugestivas mensagens; mas é, por si só, impotente para impedir uma "crise de nervos" nos indivíduos que persistem em abusar das leis que regem os fenômenos mentais. Eis por que as personalidades mais notáveis se transformam em ruínas sobre os rochedos e bancos perigosos que vão semeando no inconsciente, conforme já descrevemos acima.

 

Os sonhos são os clarões dos faróis que iluminam e indicam as correntes da atividade mental do inconsciente; e aqueles que aprendem a identificar esses sinais, ajustando-os convenientemente à sua orientação mental terão, assim, uma noção precisa de sua responsabilidade na vida