ESTILO E INTERAÇÃO NA OBRA "CAIM" DE JOSÉ SARAMAGO


Alessandra Garuzzi (UEPA/2007)
Denise Barros (UEPA/2007)



RESUMO
Esta pesquisa pretende refletir sobre as estratégias interacionais utilizadas por Saramago, pressupondo a importância do estilo na personalização de sua escrita, para compreender de que maneira o autor pode utilizar a língua a fim de construir diferentes efeitos de sentidos para aproximar-se de seu leitor. Tendo isso em vista, usamos a Estilística, entre outras teorias, para identificar alguns recursos estilísticos empregados pelo autor e analisar como ele interage com o leitor por meio desses recursos, para então refletir sobre suas intenções quando se propõe a dialogar com o seu leitor. Como corpus, trabalhamos com Caim, a última obra lançada por Saramago.

Palavras-chave: Estilo, Caim, Escrita, Recursos Estilísticos, Saramago, Interação.



Introdução

A ideia da realização deste trabalho nasceu após nosso primeiro contato com a linguagem irreverente de José Saramago por meio de uma de suas obras. Após o contato com uma literatura dotada de uma escrita inovadora, com um procedimento peculiar no uso da pontuação e uma narrativa com muitas marcas de oralidade, foi inevitável a ânsia por tentar compreender um pouco este método intrigante de escrever.
A literatura criada por Saramago é aquela que nos deixa em meio à ficção e a história, a começar pelos títulos de suas obras ? O Evangelho Segundo Jesus Cristo, História do Cerco de Lisboa, etc. Quando o título não nos adianta o conteúdo a ser lido, basta que se leia o início do texto para nos depararmos com a presença de um teor histórico. Não bastasse esse artifício, utilizado para dimensionar tempo e espaço ou contextualizar a trama a ser desenvolvida, Saramago ainda faz uso de uma linguagem bastante intrigante no que se refere à forma de escrever literatura.
Por isso, esta pesquisa pretendeu refletir sobre as estratégias interacionais de Saramago, pressupondo a importância do estilo na personalização de sua escrita, para entender a maneira pela qual ele utiliza a língua a fim de construir diferentes efeitos de sentidos para se aproximar de seu leitor.
Para tanto, utilizamos trechos da obra Caim para efetuar análises dos efeitos de sentido conseguidos através dos recursos estilísticos, usados pelo autor no decorrer da escritura da obra. Dessa forma, recortamos os seguintes objetivos: identificar alguns recursos estilísticos (expressivos) empregados pelo autor e analisar como ele interage com o leitor por meio desses recursos, para então refletir sobre suas intenções quando se propõe a dialogar com o seu leitor.
Teoricamente, usamos a Estilística para destacar o que chamamos no trabalho de expressividade, conceitos da linguística textual de intertextualidade e efeitos de sentido, assim como a própria gramática normativa para analisar nossos dados. E como corpus, selecionamos Caim em decorrência de, no início do trabalho, ser a obra mais recentemente lançada pelo autor.
Para determinarmos quais marcas do texto seriam trabalhadas, fizemos várias leituras de Caim e optamos por investigar o uso da maiúscula, da vírgula, do discurso direto, do artigo, do adjetivo e da intertextualidade como recursos utilizados por Saramago para produzir efeitos de sentido com base na hipótese de que tais recursos construam a interação com o leitor.
Estruturalmente, organizamos nossa pesquisa da seguinte forma: no primeiro capítulo apresentamos a fundamentação teórica possibilitando ao leitor uma visão geral do universo do estilo, da Estilística, dos recursos interacionais e Gramática Normativa (GN). No segundo capítulo, apresentamos a metodologia utilizada na pesquisa, assim como organização e seleção dos dados compostos de uma pequena biografia do autor e resumo da obra utilizada. E no terceiro capítulo, a análise dos dados escolhidos, bem como a apreensão do significado dos recursos interacionais, de sua importância e objetivo de sua utilização na obra analisada. Este último capítulo é encerrado com as considerações finais.




Capítulo 1

O Estilo e a Estilística

Não há como escrever sem estar naquilo que se escreve. Escrever é uma construção pessoal, que exige tudo o que somos e o melhor de tudo o que somos (Eliane Brum).

Quando se intenciona tratar de interação do autor com o seu leitor, bem como a personalização de uma obra literária, é importante entender estilo para compreender que tipo de relação pode ter com interação, de maneira a perceber como o autor pode utilizar a língua a fim de construir diferentes efeitos de sentido para se aproximar do leitor. Tendo isso em vista, passamos a discutir estilo, iniciando com a definição da Estilística e suas funções na análise de um texto, com a finalidade de entender o papel dos recursos estilísticos para o estabelecimento da interação autor/leitor.
O estudo dos diferentes modos de uso da linguagem é algo que já vem sendo feito há incontáveis séculos pelos mais diferentes povos, como os gregos, os romanos e mesmo os hindus. Da antiguidade até o Renascimento, estilo era o objeto da retórica e não apenas um modelo alcançado pela expressão literária ou a meta de obtenção de uma maneira própria de escrever ou pintar, esculpir, etc. Era também o instrumento para a análise crítica da literatura.
A partir do século XVIII, o sentido normativo da arte literária entrou em decadência e a experiência pessoal que a linguagem deve expressar substituiu as regras da Retórica. O estilo passou a ser considerado como a expressão de um gênio individual.
A situação de tensão entre o espírito criador e a manutenção das leis da Gramática Normativa (GN) acabou fazendo nascer, no início do século XX, uma ciência que podia descrever e interpretar a singularidade dos efeitos estilísticos que podem ser obtidos por meio do desvio gramatical ? entendendo desvio como fuga dos padrões ditos normais para a GN ? e que podia também estudar o conteúdo e a forma das obras literárias. Esta nova ciência foi denominada Estilística pelo suíço Charles Bally, sem dúvida seu criador e sistematizador (VALENTE, 1998).
Anteriormente a Bally (MONTEIRO, 2009), o estilo era estudado apenas com o objetivo de complementar a esfera da Gramática. Esta tendência pode ser percebida na obra Estilística Latina, de Berger, a qual "tratava apenas das expressões particulares que escapavam à pura descrição gramatical" (ibidem, 2009, p. 15), como se o estilo emanasse apenas de um eu-lírico, descartando os usos da língua na vida cotidiana.
Com o intuito de explicar o estilo, Charles Bally, a partir de suas obras Précis de Stylistique: esquisse d?une métode fondée sur l?étude du français moderne, Traité de Stylistique Française e Le Langage ET La Vie, editadas, respectivamente, em 1905, 1909 e 1913, designou à Estilística a tarefa de descrever o sistema expressivo da língua coletiva. Para o teórico, ensinar a língua somente sob o ponto de vista da Gramática Normativa e de textos literários é dar a ela uma visão apenas parcial, que não corresponde à língua utilizada espontaneamente nas diversas situações da vida. E afirmou ainda que a Estilística estudaria "os fatos da expressão da linguagem organizada do ponto de vista do seu conteúdo afetivo, isto é, a expressão dos fatos da sensibilidade pela linguagem e a ação dos fatos da linguagem sobre a sensibilidade" (BALLY, 1952, p.16 apud BASTOS, 2004, p. 115-116).
Após consolidar-se como disciplina, a Estilística, segundo Monteiro (2009, p. 13):

(?) entrou numa fase efervescente, no intuito de afirmar-se perante outras áreas que lhe disputavam o mesmo objeto. E sua trajetória se bifurcou em duas direções: uma concentrada mais nos componentes do discurso e, por essa razão, rotulada de descritiva; a outra inclinada para a intuição e, por isso, rotulada de genética ou idealista.

Partindo do princípio de que a finalidade da comunicação verbal não é apenas a transmissão de conteúdos conceituais ou intelectivos, Bally passou a investigar os elementos de ordem afetiva que compõem a constituição do significado, os quais foram eleitos, posteriormente, como objeto próprio da Estilística.
Desse modo, inspirada pelo Estruturalismo de Saussure e desenvolvida por Charles Bally, a Estilística descritiva surgiu para estudar o que foi rejeitado pela Linguística, ou seja, os aspectos de afetividade da linguagem. Esse autor intuiu que elementos de ordem afetiva poderiam ser sistematizados, por isso, privilegiou a análise das funções da linguagem, principalmente a função expressiva, estudando as figuras em uma base mais científica que o arrolar da antiga Retórica (MONTEIRO, 2009).
A característica central da concepção da Estilística para Bally é a utilidade exclusiva nas ações de linguagem coletiva, onde não haja premeditação do que é dito. No entanto, esse linguista francês defendia a ideia de que o texto literário não deve ser analisado pela Estilística, "uma vez que o escritor faz da língua um emprego voluntário e consciente" (MONTEIRO, 2009: 14-15), determinado por uma intenção artística, nisto se distanciando do falante comum que usa a língua de forma muito mais espontânea. Esta visão foi refutada por Cressot (apud MARTINS, 2008, p. 4) que considerou a língua literária "o domínio por excelência da Estilística, porque nas obras dos escritores se acumulam os recursos expressivos, ricos e variados". Esse autor acabou invertendo a teoria de Bally, afirmando que era exatamente pelo fato de na obra literária a escolha da linguagem ser mais voluntária e consciente que esta deve constituir por excelência o domínio da Estilística.
Mais tarde, a partir da Estilística idealista de Leo Spitzer, chamada desta forma por basear-se na filosofia idealista de Croce e Vossler (apud MARTINS, 2008), os estudos da expressão literária começaram a tomar impulso. Enquanto Bally pretendia analisar os aspectos coletivos da linguagem, Spitzer voltou-se para os do discurso. A estilística de Spitzer tem como base a concepção do estilo como compreensão da personalidade do escritor, cuja ideia central é a de que "a língua reflete o próprio ser humano, sua cosmovisão, e é na sua utilização específica, enquanto mecanismo individual, que se pode atingir a consciência da capacidade de reflexão sobre a realidade" (MONTEIRO, 2009, p.19). Portanto, a Estilística Idealista é literária e preocupa-se com o modo de escrever do autor, entendendo sua escrita como uma forma de perceber o próprio autor.
As orientações de Spitzer foram seguidas por estudiosos que, mesmo valorizando os preceitos da Estilística idealista, buscavam outras variações sobre o mesmo tema. Foi o caso de Riffaterre que, no início dos anos de 1970, fundamenta a Estilística estruturalista e nela afirma que, para haver uma boa interpretação do texto, é preciso deter-se nele mesmo: o texto. Pois este não somente foi escrito "num código que lhe pertence" (RIFFATERRE, 1971 apud MONTEIRO, 2009: 23), como, também, encontra-se nesse mesmo texto a chave para decifrá-lo.
A noção de código é dada por Jakobson (apud MONTEIRO, 2009) que o relaciona à comunicação na condição de processo, o qual é feito da seguinte forma: o emissor (autor) codifica a mensagem (texto), a qual deve ser decodificada pelo receptor (leitor). E é justamente esse processo de decodificação do texto que fez com que Riffaterre se aproximasse dos teóricos da Estética da recepção .
Pelo fato de a Estilística estruturalista deter-se nos fatos marcados de modo estilístico, não há como deixar de lado as noções de desvio das normas, bem como as noções das próprias normas. E é com base nesta afirmativa que teóricos, como J. M. Paz Gago (1993 apud MONTEIRO, 2009), asseveram que existe algo que coincide entre a Estilística descritiva e a estrutural: ambas defendem a ideia de que o estilo trata-se de uma série de desvios pontuais disseminados ao longo de um continuum linguístico (o texto), os quais devem ser detectados e interpretados. A diferença está no modo de interpretar esses desvios, tidos como fuga das normas gramaticais (PIQUER, 2008).
Quando Riffaterre (1971 apud MONTEIRO, 2009, p. 24) nos diz que "o próprio contexto funciona como norma", e que "o que sobressai é, naturalmente, o dado estilístico", é possível entender que na Estilística estruturalista tenha havido uma tentativa de solucionar o problema a respeito da imprecisão do conceito de norma, uma vez que esse teórico nos propõe uma Estilística estrutural, levando em conta não as normas da Gramática ? as quais demandam o certo e o errado ?, tampouco uma expressividade grau zero ? que opõe o estilo ao não-estilo. O que ele propôs foi que se levasse em consideração que existe "uma norma do próprio texto" (DISCINI, 2004, p. 21-22), pensando no desvio não como uma transgressão ao correto, mas admitindo que "cada obra tem um sistema de organização estrutural particular" (RIFFATERRE, 1971, p. 22-23 apud DISCINI, 2004, p. 21-22), fazendo com que cada texto tenha sua forma de ser composto.



O Estilo e os Efeitos de Sentido

Este tópico direciona-se à importância do estilo na elaboração de um texto literário e os efeitos de sentido que por meio dele o escritor pode produzir em sua obra. Designado também como o modo particular de pensar de qualquer pessoa, o estilo do pensamento pode materializar-se de diversas formas: na oratória, na escrita, na pintura, na escultura, na música, etc.
A nossa maneira própria de dizer ? ou escrever ? aquilo que pensamos é o que faz com que, mesmo parafraseado, parodiando ou mesmo tratando-se de um pastiche, seja único o nosso texto. Portanto, ao invés de dizermos que determinada pessoa tem um estilo próprio, basta, como assim aconselha Unamuno (1998), que se diga que essa pessoa tem estilo.
O termo estilo é usado para falar de um autor, de uma escola literária, de uma época ou como "o conjunto de traços particulares que define desde as coisas mais banais até as mais altas criações artísticas. É o conjunto de características que determina a singularidade de alguma coisa (?)" (FIORIN, 2008, p. 96). O termo estilo faz referência a um acontecimento que diverge, tornando-se fundamental quando é necessário perceber a "diferença entre um autor em relação a outro, de um pintor relativamente a outro, de uma época em relação a outra, etc." (ibidem 2008, p. 96), ligando-se não apenas à produção de uma obra, mas também a sua interpretação, aparecendo tanto nas formas discursivas quanto nas textuais.
Essa forma de pensar permite que se tome o texto literário não só como espaço privilegiado dos fatos estilísticos, antes disso, é um acontecimento discursivo, uma situação de comunicação que cria uma relação direta entre o autor e seu público. Situação na qual se leva em consideração as estratégias e intervenções do discurso, em que o autor assume a linguagem como uma atividade essencial no ato de interagir. Logo, o objeto de referência da Estilística faz-se tão importante em uma obra de arte, que, segundo Moisés (1982, p.24):

Como quer que seja, se por estilo se entende o que distingue, a diferença (independentemente de ser em relação a uma norma), não há como fugir de encará-lo. E se for escorraçado por desimportante, outros virão a ocupar-lhe o espaço, a fim de representar os traços que projeta simbolizar, e com isso regressaríamos ao ponto de partida, mudando apenas o vocábulo para designar o mesmo fenômeno.

Para esse autor, é o estilo que personaliza uma obra, pois "distingue obras, autores, etc., e não apenas por suas marcas sintáticas, mas, sobretudo, por uma íntima aliança entre a expressão e o modo de ver a realidade" (MOISÉS, 1982, p. 227). O estilo encontra-se na obra que revela o autor que a produziu. Ao colocar no texto sua cosmovisão ? partindo do princípio que cada um possui sua forma de ver e pensar o mundo ? o autor faz do texto ele mesmo. Em outras palavras, o estilo é a expressão da visão de mundo de um autor:

(?) interpreta traços estilísticos como particularidades psíquicas e propõe, como método, a cuidadosa, sensível e repetida leitura da mesma obra e de outras obras do mesmo autor, até que se verifique a gênese de tal obra, enraizada na alma do criador (DISCINI, 2004: 20).

Por meio do estilo, o autor encontra um modo simbólico de desenvolver sua experiência emocional e existencial dentro das condições e efeitos da criação artística, desse modo, dá sentido e significação àquilo que foi vivido. Ao criar um estilo, o escritor encontra sua maneira própria de atribuir significado ao que vivencia, desenvolve uma linguagem própria expressando, em sentido abstrato, o eu idealizado (AVZARADEL, 2006).
Ao adquirir seu estilo, o escritor passa a dominar sua personalidade, onde podemos diferenciar o homem do autor, pois, quando se fala da personalidade do autor, não se trata da identidade pessoal do autor (LOPES, 2006). Fala-se, na verdade, daquele que está escrevendo, de sua personalidade "em termos linguísticos" (CÂMARA JR, 1953, p. 23 apud MOISÉS, 2004, p. 168). Uma vez que o estilo é uma criação linguística individual que eleva a intuição do autor juntamente com o leitor. Nesse encontro ? quando autor e leitor interagem ? está o sentido do estilo, ou seja, "traços estilísticos localizáveis pontualmente no texto e diretamente relacionados à alma do criador", submissos às intenções desse criador (DISCINI, 2004, p. 19-20).
A interação é uma importante função do estilo. Antes de criar a obra, o autor já possui uma finalidade que, "por mínima que seja, preside-a uma dose de intencionalidade, entendida como eleição de mecanismos expressivos com vistas a determinados fins" (MOISÉS, 2004, p. 275). O autor consegue interagir com o seu leitor utilizando a linguagem não somente para se comunicar, mas, sobretudo, agir sobre o leitor, seu público. Uma vez que:

O intuito, confesso ou não, é atingir o leitor, persuadindo-o ou convencendo-o da "mensagem" que por meio do texto se veicula: a técnica empregada, a espécie ou fôrma literária eleita, o expediente retórico posto em funcionamento, tudo converge para o mesmo objetivo: persuadir ou convencer (MOISÉS, 2004, p. 275).


A Gramática Normativa na Produção de Sentido

Estilo é tudo aquilo que individualiza (?) a forma pessoal de expressão em que os elementos afetivos manipulam e catalisam os elementos lógicos presentes em toda atividade do espírito (Othon Garcia).

Para persuadir ou convencer, o autor deve ser capaz de selecionar os recursos eficazes que provoquem efeitos de sentido no leitor. Tendo em vista a discussão feita, envolvendo os recursos que podem ser empregados por um escritor como ferramenta para interagir com seu leitor, estabelecendo um diálogo via obra. A discussão sobre as classes gramaticais foram feitas com base em gramáticas normativas como Cegalla (1992), Cunha (2001) e Luft (1988).


O Adjetivo

Considerado uma palavra que caracteriza os seres nomeados pelo substantivo, o adjetivo descreve aos nomes uma qualidade, um modo de ser, uma aparência e mesmo um estado, como, por exemplo: menino estudioso; pessoa prestativa; ambiente aprazível, criança débil. É responsável também por dar maior precisão ao sentido dos substantivos ou lhes conferir um juízo de valor. Quando usados com acuidade, realçam o estilo; em excesso, enfraquecem-no.
Dependendo do modo como é utilizada, uma mesma palavra pode ser substantivo (quando usada como termo determinado: um jovem aplicado) ou adjetivo (quando usado com termo determinante: um advogado jovem). Portanto, o adjetivo pode ser considerado um substantivo quando, antecedido de um determinativo (geralmente um artigo), não funciona como termo determinante de nenhum substantivo: o desagradável da situação (comparar com "uma situação desagradável", em que "desagradável" funciona como adjetivo).
Quando se referem a continentes, países, regiões, estados, cidades, províncias, vilas e povoados, os adjetivos denominam-se pátrios (europeu, alemão, amazônico, paraense, campista, minhoto, etc.); os que se aplicam a raças ou povos são denominados gentílicos (latino, germânico, etc.). Podem variar em número, gênero e grau e, de acordo com o modo como é utilizado ? principalmente por desempenhar um papel importante naquilo que falamos ou escrevemos ? possuindo uma variada importância expressiva.
Optamos por analisar o adjetivo anteposto ao substantivo por evocar um tom afetivo, embrandecendo o seu valor, fazendo alusão às emoções, provocando aproximação com o leitor.


O Artigo

O artigo é a palavra variável que precede o substantivo e concorda com este em número e gênero (CUNHA, 2001). Quando determina o substantivo de maneira particular, chama-se definido (o, a, os, as), quando se refere de maneira geral, chama-se indefinido (um, uma, uns, umas). Assim como determina ou indetermina o substantivo, o artigo, anteposto a qualquer outra categoria gramatical transforma-a em substantivo, como: o amar, o sim, a louca, o desaguar.
Embora não seja essencial no discurso e, por isso, em alguns casos possa até ser omitido, o artigo muitas vezes altera substancialmente o significado de uma frase, como nos exemplos: Acharam uma mulher e Acharam a mulher. Na primeira frase entende-se que se trata de uma desconhecida. Alguém que foi encontrado por acaso. Já a segunda frase trata-se de alguém específico, alguém por quem estavam procurando.
Antes de nomes próprios de pessoas, a presença do artigo definido é de uso coloquial e familiar, como pode ser notado nas frases: "O João está?"; "A Maria foi embora?". Possui também conotação de informalidade quando anteposto aos pronomes possessivos como nas frases: o meu pai e a nossa menina. Em contrapartida, a omissão do artigo, nesses casos, promove na frase um toque de elegância.
O artigo possui um grande valor expressivo dentro do texto, oferecendo ao escritor várias formas de utilizá-lo. Nesse trabalho, a análise se dará sobre o uso do artigo definido como meio de dar mais visualidade e familiaridade ao substantivo e o artigo indefinido como forma de traduzir indeterminação e mistério no texto.


O Discurso Direto

Em uma narrativa, a fala ou o pensamento de um personagem pode ser reproduzido de forma a conseguir efeitos de originalidade. Para Urbano (2000, p. 64), cada um dos diálogos contidos no texto "é a narração do conteúdo dos enunciados dos personagens, que pode ser feita pelo narrador, pelo narrador-personagem ou por qualquer personagem não narrador: o enunciado de outrem se torna objeto do enunciado de um desses enunciadores".
A relação entre o enunciado citado e o enunciado citante ? que diferem entre si pela forma como é colocado aquilo que foi dito ? gera diferentes tipos de discurso, ao que chamamos discurso direto, discurso direto livre, discurso indireto e discurso indireto livre. Dentre esses discursos, centramo-nos no Discurso Direto.
Alguns autores como Parente (2000), afirmam que, dos discursos existentes, o direto livre é aquele que possui maior valor estilístico. No entanto, existem autores modernos que utilizam o discurso direto de modo inovador como o caso de Autran Dourado, citado por Martins (2008), que organiza os diálogos de modo a fazer com que as falas sejam postas com ou sem mudança de parágrafo, sem sinais diacríticos e somente às vezes usando o verbo de elocução, como pode ser observado abaixo, num trecho retirado da obra O Risco Bordado (DOURADO, 1981: 23):

João, o que é isso, meu filho, você não vai comer? Disse a mãe só agora reparando, o caso interrompido. Será que você tem alguma coisa? Não é nada não, mãe, disse ele procurando ganhar tempo.

Esse tipo de discurso procura transcrever o enunciado de outrem da forma como foi dito ou como se imagina que o foi. Na transcrição fiel, ou quase, busca-se manter os traços de subjetividade "interjeições, exclamações, blasfêmias, interrogações, ordens, expressões de desejo, enfim sugere-se o enunciado vivo, como saiu ou deveria sair da boca daquela outra pessoa" (MARTINS, 2008: 196).
Na forma apresentada por Martins (2008), focalizamos o discurso direto porque permite manter viva a ligação com o leitor, propiciando uma interação maior com o autor.


A Intertextualidade

Tudo o que pensamos, fazemos, falamos ou escrevemos tem a ver com o que muitos pensaram, fizeram, falaram ou escreveram. Da mesma forma, ainda que inconscientemente, os textos produzidos resultam da influência maior ou menor, mais óbvia ou imperceptível, de outros textos. Este fenômeno é denominado intertextualidade.
O conceito de intertextualidade, estudado como o diálogo entre textos, originou-se na década de 1960, pela crítica francesa Julia Kristeva, dentro da Teoria Literária. Hoje esse conceito é estudado sob a ótica de diversas outras teorias como a Análise do Discurso, a Linguística Antropológica e a Linguística Textual, que tem o texto como um objeto que "não existe nem pode ser avaliado e/ou compreendido isoladamente" (KOCH, 2008, p. 9).
Segundo Maingueneau (2006, p. 163), o intertexto "é o conjunto de textos com os quais um texto particular entra em relação". Com base nesta teoria, podemos afirmar que todo livro se apoia em outros para ser desenvolvido e assim, apresentar uma nova visão do que já foi discutido, sem que com isso se esgotem as possibilidades de interpretação.
O fato de que todo texto seja construído a partir da absorção e modificação de outro e mesmo outros textos, não significa que haja falta de criatividade nos escritores. Reutilizar assuntos famigerados pode ser um grande desafio, pois:

Todo livro (?) se alimenta, como se sabe, não somente dos materiais que a vida lhe fornece, mas também, e talvez sobretudo, do espesso terreno da literatura que o precedeu. Todo livro recorre a outros livros, e é possível que o gênio não seja senão um aporte de bactérias específicas, uma delicada química individual por meio do qual o novo espírito absorve, transforma e por fim restitui, numa forma inédita, não somente o mundo bruto, mas, sobretudo a enorme matéria literária que a ele preexiste. (JULIEN GRACQ apud MAINGUENEAU, 2006, p. 165)

Esse diálogo, ou retomada de um texto, pode ocorrer das mais variadas formas e, justamente por tomar extensões diferentes, nem sempre são fáceis de serem detectadas. Em todo caso, há algumas formas da intertextualidade mais fáceis de serem identificadas, como a paráfrase, a citação, o ponto de vista, a epígrafe, a alusão, o pastiche, a referência.
No entanto, para efeito de análise, nos detemos aqui à intertextualidade em forma de paródia, um tipo de processo intertextual em que o texto original perde a sua ideia básica, seu fio condutor. Nesse caso, a narrativa é invertida ou subvertida, pois a paródia trata-se, frequentemente, de um texto crítico ou questionador.


A Pontuação

Originalmente, os sinais de pontuação não obedeciam ao padrão gramatical estabelecido hoje em dia. Eram utilizados para indicar a entoação dos textos no momento da leitura oral. De forma que os escritores faziam uso dos sinais conforme suas necessidades, segmentando as palavras, frases e orações em seus textos do modo como achavam coerente.
É sabido, inclusive, que as palavras nos textos gregos não recebiam a separação que recebem os textos atuais. Nos espaços em branco, ao invés dos sinais de pontuação conhecidos, eram utilizados apenas pontos como forma de facilitar a leitura e, consequentemente, sua compreensão. Ao longo do tempo, a base ritmo ? semântica, que era o ponto de partida para a produção de sentido ? foi sendo desconsiderada, passando a prevalecer o caráter sintático e semântico dos sinais.
Todavia, com o advento da imprensa, "a escrita sofre influências dos revisores, nas editoras, provocando problemas de interpretação do mesmo texto e dúvidas quanto à pontuação original do autor" (VILELA, 2005, p. 2). Daí surgindo a necessidade de sistematizar o uso dos sinais para que os textos não sofressem adulterações ou interpretações equivocadas.
Em 1959, a Nomenclatura Gramatical Brasileira (NGB apud VILELA, 2005) reconhece treze sinais de pontuação: aspas, asteriscos, colchetes, dois-pontos, parágrafo, parênteses, ponto de exclamação, ponto de interrogação, ponto-e-vírgula, ponto-final, reticências, travessão e vírgula. Além desse, muitos gramáticos consideram também a maiúscula, o apóstrofo e o hífen, entre outros sinais como o negrito, o itálico e o sublinhamento, como sendo sinais de pontuação, utilizados em textos escritos ou digitalizados, compondo, portanto, de modo muito recente o grupo de sinais gráficos.
Na língua escrita, pontuar deve ser mais do que fazer uso de sinais gráficos seguindo regras gramaticais. Entendidos como signos linguísticos, os sinais gráficos tornam-se significantes arraigados de significados, que vão além daqueles intentados pelo autor, ficando a cargo do leitor construir sentidos no processo de interação com o texto. Esse processo vai além das razões fono-sintáticas, ligando-se à "estilística exatamente quando, além de levar à compreensão, tenta transmitir as emoções, as paixões e o envolvimento afetivo do escritor-emissor da mensagem" (RANGEL, l983, p. 6).
Na língua falada, elementos da oralidade, como pausa, entoação e intensidade, valem de ajuda na formulação de um texto. Muitos teóricos, como Cunha (1971) e Said Ali (1964) veem a pontuação como a expressão gráfica da fala, pelo fato de que "a língua escrita não dispõe dos inumeráveis recursos rítmicos e melódicos da língua falada. Para suprir essa carência, ou melhor, para reconstituir aproximadamente o movimento vivo da elocução oral, serve-se da pontuação" (CUNHA, 1971 apud VILELA, 2005, p. 7).
Portanto, para produzir o efeito de novo e provocar o envolvimento do leitor, um escritor pode descartar o uso padrão dos sinais de pontuação, utilizar os discursos direto, indireto, indireto livre e o monólogo interior, ou seja, manipular sua língua materna de forma pessoal, criando um estilo próprio que o identifica, pois:

(...) cada escritor constrói sua língua, independentemente da língua de todos. A inscrição do escritor na língua comum ocorre, portanto num nível mais profundo, sendo os escritores considerados não locutores modelo ? que se conformam com o bom uso ?, mas perfeitos conhecedores dos recursos oferecidos por sua língua (MAINGUENEAU, 2006, p. 203).

Trabalhar com as palavras exige competência no seu manuseio, essa competência se dá quando o escritor conhece a língua que fala e escreve, a partir daí é possível descobrir os usos que são permitidos fazer dela, de acordo com o objetivo de cada texto. Portanto, não é apenas um uso não-padrão de uma língua que caracteriza a peculiaridade artística do escritor, é sim, sua capacidade de manusear a língua de forma a passar ao leitor as idiossincrasias da obra através da língua falada por ambos.


A maiúscula

Segundo a ortografia da Língua Portuguesa, o grafema em maiúsculo é utilizado em início de período ou citação, para dar destaque a uma palavra, seja ela um substantivo próprio ou não. Tradicionalmente encaixada na parte ortográfica da Gramática Normativa, a maiúscula é vista como "um objeto estável e fixado com antecedência" (DAHLET, 2006, p. 34).
Para Martins (2008: 64), por se tratar de "uma convenção estabelecida, cujas regras precisamos aprender e adotar", a ortografia é geralmente estudada fora da Estilística. Entretanto, acrescenta que os desvios das regras ortográficas e essas vacilações poder ser aproveitadas em uma análise estilística, de forma que o uso não convencionado pelo Acordo Ortográfico da maiúscula "pode sugerir respeito, admiração, sentimento religioso ou cívico" (MARTINS, 2008, p. 65).


A vírgula

Para uma grande parte dos gramáticos, a vírgula aborda uma pausa na respiração ou simplesmente uma pausa para indicar que a frase ainda não está concluída (cf. DAHLET, 2006). Já para gramáticos como Celso Luft (1988), associar a vírgula a uma pausa é o que faz com que muitos encontrem dificuldade em sua utilização.
Cegalla (1992) admite o uso da vírgula para assinalar pausas, mas acrescenta que, como sinal de pontuação, é útil também nas "inflexões da voz (a entoação) na leitura; separar palavras, expressões e orações que devem ser destacadas; esclarecer o sentido da frase, afastando qualquer ambiguidade" (ibidem 1992, p. 62).
Portanto, é difícil definir regras para a utilização desse sinal gráfico. Por isso, na sistematização de seu uso, os teóricos acabam voltando à função original da vírgula: segmentar um texto, de acordo com a leitura em voz forte, e as pausas respiratórias, respeitando a base ritmo-semântico que outrora foi seguida.



Capítulo 2

Aspectos Metodológicos e Constituição do Corpus: os dados em seu contexto

Era uma vez um homem que nasceu numa azinhaga e se fez serralheiro, jornalista, escritor e cavaleiro. Era uma vez a gente que o amou e odiou. Era uma vez um homem que tinha um sonho e não sabia. Era uma vez uma mulher que o fez sorrir. Era uma vez um homem que escreveu um livro e o ouviu cantado em ópera. Era uma vez Blimundo. Era uma vez. Saramago (Luíza Jacobetty).

Neste capítulo apresentamos José Saramago e o romance Caim, nosso corpus de análise, cuja escolha deveu-se ao fato de, no início do trabalho, ser a obra mais recentemente lançada pelo autor. Nossa escolha findou por se tornar especial, pois, no ínterim de nosso trabalho, Saramago veio a falecer. Simbolizando, portanto, que nossa monografia seria concluída, coincidentemente, no ano de seu falecimento, tendo como corpus sua última obra lançada.
Para efetuarmos nossa monografia latu sensu, como primeiro passo optamos por efetuar uma pesquisa acadêmica de âmbito exploratório. Fizemos um levantamento bibliográfico com o intuito de nos aproximarmos do tema, bem como do objeto de estudo. Desta forma, tivemos uma visão geral sobre o problema, nos aprofundando nos conceitos.
Escolhemos o método indiciário, discutido por Ginzburg (apud JESUS, 2007), preocupado com a definição metodológica que garanta rigor às investigações centradas no detalhe, e nas manifestações de singularidade. A adoção de um paradigma indiciário de cunho qualitativo pode tornar mais produtiva a investigação da relação sujeito e linguagem, pois procura definir princípios metodológicos gerais que orientam a relação a ser estabelecida entre o investigador e os dados, buscando constituir em indícios reveladores o fenômeno que se busca compreender.
Pressupondo procedimentos indutivos de investigação, o trabalho com indícios consiste na análise dos menores reveladores, identificando os dados a serem tomados e a singularidade que revelam, procurando demonstrar que, a partir da análise desses dados aparentemente negligenciáveis e pouco notados, é possível se chegar a uma realidade bem mais complexa que aquela que se consegue alcançar quando esses indícios não são notados ou mesmo ignorados.
Para essa análise, pensamos na relação sujeito (autor) e linguagem, sujeito autor e leitor no processo de produção, pois, como suporte teórico para a análise, o que se considera são as práticas de escrita mediante condições de produção, da historicidade que envolve fatores ideológicos, sociais e culturais. Enfim, por meio do método indiciário pretendemos compreender as estratégias interacionais presentes em Caim, para provocar efeitos de aproximação do leitor.


O Autor

Nascido no ano de 1922, em 16 de novembro, em Azinhaga, José de Sousa Saramago foi registrado por seu pai como tendo nascido dois dias depois, ou seja, dia 18 de novembro. Para que não precisasse pagar uma multa, José de Sousa precisou dar outra data de nascimento ao registrar o filho. Outra situação inusitada na vida de Saramago é a origem de seu sobrenome, o apelido pelo qual o pai era conhecido, uma espécie de alcunha de família associada a uma planta silvestre. Saramago recebeu este sobrenome do funcionário do cartório, que, por conta própria, acrescentou ao nome o apelido da família. O pai, José de Sousa, só teria percebido o engano sete anos depois do nascimento do filho ao matriculá-lo na escola primária em Lisboa (CALBUCCI, 1999).
José Saramago estudou em Lisboa até os dezessete anos, onde, por questões financeiras, fez apenas cursos técnicos, período no qual começou a interessar-se por literatura. Entretanto, exerceu vários ofícios antes de dedicar-se de fato a ela: foi serralheiro mecânico, desenhista, empregado do comércio, jornalista e editor. Foi trabalhando como editor dos Estúdios Cor que Saramago começou a envolver-se com a literatura e pôde então viver dos livros e para eles (FLORY, 1997).
Sua carreira literária iniciou-se modestamente com a publicação de Terra do Pecado, em 1947. Quase vinte anos mais tarde, após ter escrito o conto O Heroísmo Quotidiano, em 1953, Saramago entra no mundo da poesia lançando Os Poemas Possíveis, em 1966. Em Provavelmente Alegria, de 1970, começa a se mostrar um escritor preocupado com as questões humanas e religiosas.
Sua intimidade com as palavras aparece na crônica Deste Mundo e do Outro, 1971. Em seguida outra crônica, A Bagagem do Viajante, 1973 e, um ano depois, em 1974, mais uma: As Opiniões que o DL Teve, pois, como foi dito pelo próprio autor, "para atender aquele que eu sou, há que ir às crônicas. As crônicas dizem tudo aquilo que sou como pessoa, como sensibilidade, como percepção das coisas, como entendimento do mundo: tudo isto está nas crônicas" (REIS, 1998, p. 42).
Dedicando-se mais uma vez à poesia, em 1975, lança O Ano de 1993, e retorna à crônica um ano depois com Os Apontamentos, 1976. Entretanto, embora tenha utilizado as crônicas para importantes relatos, foi em 1977, no romance Manual de Pintura e Caligrafia que o escritor demonstrou estar buscando outros caminhos na Literatura e abre, então, seu ciclo de obras narrativas (SOREL, 2007).
Até então Saramago já havia lançado quase dez obras e, ainda assim, ele próprio não se considerava um escritor. Lançaria ainda quatro obras ? Objeto Quase em 1978, Poética dos Cinco Sentidos, O Ouvido e A Noite em 1979 ? antes de surpreender a todos em 1980, com uma escrita irreverente lançando Levantado do Chão. Uma obra na qual Saramago reinventa sua escrita ao narrar a saga de uma família de trabalhadores rurais da região do Alentejo, ao sul de Portugal. Por meio desta obra o autor foi agraciado em 1981 com o "Prêmio Cidade de Lisboa" (FLORY, 1997, p. 93).
Foi a partir de então que a escrita de Saramago adquiriu um ritmo muito particular. Sua pontuação atravessou, então, o tradicional reinventando a escrita e combinando características do discurso literário com o discurso oral de modo a construir uma cumplicidade entre narrador e narratário. Em seus textos o autor transpõe sinais de pontuação, como dois-pontos, travessões, interrogações, exclamações etc., utilizando apenas a vírgula e o ponto.
O uso da inicial maiúscula marca a passagem de uma fala para outra, ajudando a discernir o diálogo dos personagens. Além disso, em alguns momentos, a própria estrutura da frase denuncia se estamos diante de uma pergunta ou de uma afirmação. Como é dito pelo próprio autor:
Todas as características da minha técnica narrativa actual (eu preferiria dizer: do meu estilo) provêm de um princípio básico segundo o qual o dito se destina a ser ouvido. Quero com isto significar que é como narrador oral que me vejo quando escrevo e que as palavras são por mim escritas tanto para serem lidas como para serem ouvidas (SARAMAGO, 1995: 49).
Depois de, em 1980, escrever Que Farei com este Livro? e em 1981 Viagem a Portugal, Saramago lança em 1982 seu famoso romance histórico, Memorial do Convento, no qual critica a Igreja Católica e seus poderes sobre a sociedade como um todo. Tanto em Memorial do Convento quanto em O Ano da Morte de Ricardo Reis em 1984, A Jangada de Pedra em 1986, e História do Cerco de Lisboa, 1989, o autor desenvolve uma espécie de historicismo fantástico: sua imaginação aliada a um ilimitado amor à vida, em cada minúcia de verdade humana ao longo do tempo, reelabora fatos da história de sua terra (ARNAULT, 2008).
Em O Ano da Morte de Ricardo Reis, lançado em 1984, o autor humaniza o heterônimo de Fernando Pessoa. Dois anos depois, 1986, lança outro romance, A Jangada de Pedra, no qual faz crítica à adesão de Portugal à União Europeia. Escreve a peça A Segunda Vida de Francisco de Assis, lançada em 1987, uma de suas obras na qual evidencia a injustiça, a intolerância e o fanatismo religioso. Questionando a veracidade das fontes históricas, escreve História do Cerco de Lisboa, lançada em 1989 (ARNAULT, 2008).
No entanto, foi ao lançar a obra O Evangelho Segundo Jesus Cristo em 1991, que obteve o auge de sua polêmica vida de escritor. Retratar Jesus Cristo de um modo tão humano, fazendo-o capaz de errar e mesmo sentir amor carnal, o autor traz contra si não apenas os líderes da Igreja Católica, mas também políticos e toda uma população religiosa. Em virtude do conteúdo do livro, o governo de Portugal o impede de concorrer ao Prémio Literário Europeu daquele ano alegando que sua obra ofendia os católicos. A partir de então, Saramago, como protesto, decide isolar-se na ilha de Lanzarote, pertencente à Espanha.
In Nomine Dei foi outra peça de teatro que Saramago lançou em 1993, antes de dar início a uma espécie de diário que chamou de Cadernos de Lanzarote. O primeiro foi lançado em 1994 e, Antes de lançar o segundo e o terceiro Cadernos de Lanzarote, respectivamente, em 1995 e 1996, escreve e lança em 1995 o romance Ensaio sobre a Cegueira, no qual ele abandona a nomeação das personagens, repensa a pós-modernidade e busca a verdade num mundo quase apocalíptico. Antes de lançar em 1997 e 1998 Cadernos de Lanzarote IV e V, são lançadas as obras Moby Dick em Lisboa, em 1996, e Todos os Nomes, em 1997. No mesmo ano de Cadernos de Lanzarote V, 1998, Saramago lança O Conto da Ilha Desconhecida, Discursos de Estocolmo, Folhas Políticas e o conto Natal. É também neste ano que recebe o prêmio Nobel de Literatura.
O romance A Caverna é lançado em 2000. No ano seguinte, 2001, Saramago escreve seu único livro infantil, o conto A Maior Flor do Mundo. Em 2002, lança o romance O Homem Duplicado. Dando sequência a obra Ensaio sobre a Cegueira, escreve, em 2004, Ensaio sobre a Lucidez. No mesmo ano, lança Corrida de S. Fermim e Pepe e, em 2005, outra peça de teatro, Dom Giovanni ou O Dissoluto Absolvido. Também em 2005, lança outro romance, As Intermitências da Morte . Em 2006 uma autobiografia, As Pequenas Memórias. E, respectivamente, em 2008 e 2009, suas últimas obras: A Viagem do elefante e Caim.
No entanto a vida de Saramago não se resume aos livros editados. Acreditando que o romance deve visar à expressão total e abrir-se a toda forma de inspiração literária, José Saramago renovou a prosa da ficção portuguesa ao criar um estilo que associa história e fantasia. Ficou conhecido como o responsável reconhecimento internacional da prosa em Língua Portuguesa, por também polemizar sempre: por ser um ateu declarado, ter se casado aos 63 anos com uma mulher de 35, por criticar a veracidade dos fatos históricos e também os bíblicos.
Considerado um comunista convicto e um mestre no tratamento da Língua Portuguesa, sendo assim um marco na Literatura contemporânea ocidental, José de Sousa Saramago, para a tristeza de muitos, faleceu aos 87 anos, em 18 de junho deste ano de 2010, em sua casa, na ilha de Lanzarote.

A Obra

Sendo um texto com um conteúdo fictício e polêmico, Caim trata-se de uma visão muito particular de algumas histórias bíblicas, retirada dos primeiros livros do Velho Testamento, organizada por Saramago aleatoriamente de forma heterodoxa. Como anti-herói e personagem central da trama, a obra apresenta Caim ? primogênito de Adão e Eva e assassino de Abel, seu irmão ? que interpreta os fatos de forma a fazer com que o "todo-poderoso" reconheça a própria parcela de culpa no que ficou conhecido biblicamente como o primeiro assassinato da história da humanidade.
Como castigo, Caim vaga pelo mundo e é levado por uma força desconhecida aos tempos futuros. Em cada viagem que realiza, Caim se depara com atitudes de um deus que parece brincar com os homens, exigindo-lhes resignação, mas retribuindo-os com sofrimento e morte. Nesse contexto, é estabelecida a batalha entre um homem e um deus, na qual o primeiro acredita que "a história dos homens é a história de seus desentendimentos com deus, nem ele nos entende a nós, nem nós o entendemos a ele" (Saramago, 2009, p. 88).
Dessa forma, antes de ser um romance, Caim é o produto de um intertexto, pois dialoga com a Bíblia, apresentando dela uma nova visão. Nessa obra, Saramago reconta, com toda sua peculiar ironia, as histórias bíblicas do Velho Testamento que vão do Jardim do Éden ao dilúvio. Mais do que ser influenciado pelas histórias da Bíblia, Saramago faz prevalecer a sua visão sobre a da saga de Caim.


Capítulo 3

Os dados em Análise

Se alguma coisa me preocupa é que, venha de onde vier esse estilo ou esse modo de narrar e sobretudo esse modo de "dizer", é que qualquer pessoa, lidas duas linhas minhas, diga "isto é de fulano" (José Saramago).

Ao tratamos de comunicação entre transmissor e receptor através do texto, a interação entre ambos é um fator extremamente importante, a qual, quando ocorre entre autor e leitor, fica oculta no texto e começa a ocorrer a partir da elaboração da obra.
Esta elaboração é feita pelo escritor quando este pressupõe o seu público, bem como a mensagem que pretende transmitir-lhe através da leitura que fará da obra e os sentidos que ele, o leitor, lhe dá. É preciso considerar que o diálogo se faz presente no ato da leitura, podendo continuar depois disso em decorrência dos efeitos de sentido causados por esse ato no leitor.
Podendo manifestar-se de forma mais ou menos intensa, mais ou menos consciente, de acordo com Buffon (apud MORA, 2004: 374b) o estilo é "o próprio homem", no entanto, não no sentido individual, mas especificamente do ser humano, única criatura dotada dessa virtude (ECO, 2003: 151). Todavia, ao ler Saramago, a primeira impressão que se tem é de que seu estilo e sua linguagem brotam de uma forma intempestiva, irreverente, com características inconfundíveis, subvertendo as regras tradicionais, fazendo com que as opiniões sobre aquilo que escreve sejam sempre extremistas. No entanto, interessou-nos, neste trabalho, mostrar, principalmente, como o processo de interação é estabelecido por Saramago através de suas escolhas linguísticas, feitas para a construção de seu texto.
Levamos em consideração, também, a premissa bakhtiniana de que todo texto estabelece uma relação dialógica sendo que "o livro, isto é, o ato de fala impresso, constitui igualmente um elemento da comunicação verbal" (BAKHTIN, 1995: 123). Pois, através da leitura, institui-se entre o autor e o leitor uma relação que pode ser "definida como de responsabilidade mútua, pois ambos têm a zelar para que os pontos de contato sejam mantidos, apesar das divergências possíveis em opiniões e objetivos" (KLEIMAN, 1989, p. 65 apud BORBA e GUAREX, 2007, p. 87).
Dessa forma, temos a interação verbal como uma atividade de cooperação onde é necessária a coordenação ativa dos participantes, porquanto, o discurso do autor deve ser adequado aos conhecimentos, às necessidades e às expectativas do leitor e "o leitor deve, no processo de interpretação, levar em conta a figura do autor e o contexto de criação e veiculação da obra" (BORBA e GUAREX, 2007: 88). Com este trabalho recíproco, a interação encontra um campo onde pode estabelecer-se satisfatoriamente.
Como citamos no embasamento, Saramago utiliza de sua habilidade para manipular a Língua Portuguesa produzindo os efeitos de sentido necessários para provocar o envolvimento do leitor. Este é, inclusive, um fato tratado pelo próprio autor sempre que tinha oportunidade. Como podemos constatar neste trecho, retirado de uma entrevista concedida ao jornal Folha de São Paulo (1991 apud BRAGA, 1999: 33), em que Saramago afirma que sua pretensão é a de "que o leitor sinta a presença do narrador como alguém com quem ele dialoga".
Mais do que, pura e simplesmente, passar informação, o ato de escrever envolve também expressão, afetividade, evocação, através da individualidade de cada autor e no caso específico de Saramago, ainda podemos citar os desvios ou rupturas com as normas gramaticais. E, embora a ideia de ruptura muitas vezes afete de forma negativa o entendimento de um texto, não é o que ocorre ao texto de Saramago, pois, mesmo sem usar o sinal gráfico de interrogação, por exemplo, conseguimos entender quando, dentro do texto, uma frase trata-se de uma interrogação do narrador ou do personagem.
Compreender a linguagem por sua concepção dialógica é entender o dialogismo "como aspecto constitutivo dos processos que envolvem a linguagem" (FARACO et al, 2006: 59) esse entendimento está também na base da concepção de estilo. A relação entre interlocutores e entre os discursos está na essência do estilo e como consequência disso afirmamos que "estilo implica interação" (ibidem, 2006: 59) e está intrinsecamente ligado a qualquer tipo de interação em todas as atividades de linguagem, sejam elas literárias ou não.
Como afirma Discini (2004: 26), o estilo é o "efeito de sentido produzido no e pelo discurso". Tendo isso em vista, procuramos responder à questão problema que trata das estratégias interacionais utilizadas por Saramago, pressupondo a importância da expressividade na personalização de sua escrita. A apresentação da análise dos dados ocorre em dois momentos: no primeiro, focamos as classes gramaticais no sentido expressivo e no segundo, a intertextualidade, o discurso direto e a pontuação que além de seu aspecto expressivo utilizamos para compreender a personalização da escrita saramaguiana.
Para a apresentação dos dados, recortamos diferentes trechos da obra Caim, procurando pistas, indícios, assim sistematizados: usamos a numeração cardinal 1, 2, 3, sucessivamente; transcrevemos literalmente os recortes em itálico, colocando em negrito as palavras ou as expressões relevantes para a análise.


O Uso do Adjetivo Anteposto

Elemento fundamental na caracterização dos seres, o adjetivo desempenha um importante papel tanto na fala quanto na escrita e "nos permite configurar os seres ou os objetos tal como a nossa inteligência os distingue, nomeando-lhes as peculiaridades objetivamente apreensíveis" (CUNHA, 2001, p. 265), tornando-se imprescindível no que se refere à expressividade.
Considerando que nos interessa o valor expressivo do adjetivo, destacamos a posição anteposta ao substantivo uma vez que pode interferir no sentido do texto, do ponto de vista interacional, como afirma Lapa (1998), muitas línguas utilizam o adjetivo uniformemente antes do substantivo, apenas "o português e o espanhol admitem liberdades que dão a quem fala e escreve riquíssimas possibilidades de expressão" (ibidem 1998, p. 126).
Geralmente, usa-se antes do substantivo apenas adjetivos que sejam superlativos relativos (O maior castigo), adjetivos monossilábicos que formam com o substantivo expressões comparadas a substantivos compostos (bom dia, menor descuido) e adjetivos que adquiriram um sentido diferente como simples que, dependendo do contexto, pode sofrer modificações em seu significado (mero, só, único, etc.). Para nossa análise, selecionamos somente os casos de adjetivos antepostos a substantivos com a finalidade de perceber a expressividade que podem imprimir ao texto, de forma que possamos ver sua contribuição como estratégia interacional. Vejamos nossos recortes:


DADO 1

O que não se sabia era donde tinham vindo as peles que o senhor fizera aparecer com um simples estalar de dedos, como um prestidigitador (SARAMAGO, 2009, p. 21 ? grifo nosso).


Dado 2

(?) imaginamos que pouco haverá faltado para que os solitários ocupantes do paraíso terrestre se vissem a si mesmos como uns pobres órfãos abandonados na floresta do universo (?) (ibidem 2009, p. 11 ? grifo nosso).


Dado 3

O anjo havia entrado no jardim, demorou-se lá o tempo necessário para escolher os frutos mais nutrientes, outros ricos em água, e voltou ajoujado sob uma boa carga (ibibem 2009, p. 25-26 ? grifo nosso).

No dado 1, o adjetivo simples é qualificativo, anteposto ao verbo substantivado estalar, aumenta o efeito de sentido, indicando maior subjetividade de quem fala, ou seja, intensifica o olhar avaliativo do falante, um maior envolvimento na ação mostrada no trecho. Como estamos tratando de estratégias interacionais, podemos dizer que o adjetivo nessa posição estabelece diferenças do ponto de vista comunicativo, marca o lugar de quem fala, evidenciando a sua postura avaliativa da situação, já que a obra é um espaço de conflito entre Caim e Deus.
No caso do segundo recorte, ao usar o adjetivo antes do substantivo, o autor dá ênfase à inusitada situação, isto é, o olhar do leitor é direcionado à situação e não aos personagens. No terceiro, uma boa carga pode não ser uma carga boa, estando anteposto a "carga", o adjetivo boa adquire o sentido de pesada, cheia, grande, abastecida.
Quando ocorre do adjetivo estar anteposto ao substantivo, os dois juntos formam o que Lapa (1998, p. 128) chama de "grupo fraseológico", no qual, em prol do significado do todo (frase, oração, período), acabam perdendo cada qual um pouco de seu valor. Como podemos observar no dado abaixo:


Dado 4

(...) bastou trazer-lhe a mulher o proibido fruto do conhecimento do bem e do mal para que o inconsequente primeiro dos patriarcas (...) (SARAMAGO, 2009, p. 14 ? grifo nosso).

Ao colocar o substantivo fruto posterior, o autor faz com que o adjetivo proibido imprima uma ideia geral sem ter de fato uma precisão a fruto, pois um proibido fruto parece mais acessível que um fruto proibido. Nesse caso, a expressão nos dá a ideia de que esse fruto nem sempre estará com acesso negado, que é possível burlar as regras algum dia, ainda que para isso se arque com algumas consequências.
O mesmo caso é percebido com o adjetivo inconsequente, no mesmo trecho, que abranda o significado do substantivo. Ao ser chamado de inconsequente patriarca, somos levados a crer que Adão é muito mais ingênuo que irresponsável que não consegue dimensionar as consequências de seus atos. Para Lapa (1998: 128) "estas posições sentimentais não são favoráveis geralmente à nitidez das ideias, por isso, o grupo do adjetivo antes do substantivo tende a construir séries usuais de intensidade e clichês", destacando a subjetividade do autor da fala.
São os sentimentais aqueles que fazem uso do adjetivo desta forma. Estes, segundo Lapa (1998), procuram expressar lirismo em seus textos, usando o adjetivo anteposto com a intenção de dar ao substantivo uma diferente significação, de forma a marcar sua posição no texto.
Ao usar o adjetivo na condição de anteposto ao substantivo, Saramago põe em destaque aquilo que aparentemente já possui status de permanente. Nessa posição, o adjetivo perde a possibilidade de ser relativo, nos direcionando a observar e nos inclinar para o sentimental, a parar para "conversar" com o autor que por meio da marcação de sua subjetividade no texto, atenua o polêmico de sua obra, numa tentativa de diminuir o sentimento de rejeição que ela causa naqueles que tem a Bíblia como objeto sagrado e indiscutível.


O Artigo e suas Possibilidades

Segundo Lapa (1998, p. 101), "o artigo é uma palavra pequenina, de aparência insignificante", mas que possui um enorme valor expressivo, pois, dependendo do modo como é utilizado, responsabiliza-se por modificar o valor das frases.
Quase inseparável de substantivos e adjetivos, o uso do artigo é dos mais delicados na língua, exigindo dos autores um certo cuidado, já que esta prática pode mudar muito o significado daquilo que foi dito. Vamos ver como se configuram em nossos dados:

Dado 5

O ciúme é o seu grande defeito, em vez de ficar orgulhoso dos filhos que tem, preferiu dar voz à inveja, está claro que o senhor não suporta ver uma pessoa feliz (?) (SARAMAGO, 2009, p. 86 ? grifo nosso).

Esta é uma frase dita por Caim a Deus. Note que, pelo uso do artigo antes do pronome demonstrativo seu e do adjetivo grande, a frase adquire um valor semântico diferente. A presença do artigo nos permite entender que ela signifique que o ciúme é o maior defeito de Deus, o culpado pelos erros que Ele comete, é o que faz com que você cometa os maiores erros.
Por causa do artigo, é possível afirmar que a informação contida no fragmento é de conhecimento tanto do falante quanto do ouvinte. Dessa forma, a presença do artigo depende do autor, de sua finalidade no texto e da maneira como ele quer apresentar os fatos ao leitor.
Para Lapa (1998, p.102), "o artigo tem um valor estilístico que não é para desprezar de modo nenhum". Entretanto, nas frases dos exemplos acima, pode-se perceber que os artigos possuem uma posição especial, não estão seguidos imediatamente por um substantivo. O dado seguinte mostra outra situação:


Dado 6

O senhor há-de prover, o senhor há-de encontrar a vítima para o sacrifício (SARAMAGO, 2009, p. 78 ? grifo nosso).

Observe que, dentro de uma categoria maior que é o gênero humano, a palavra senhor refere-se a um indivíduo determinado por causa do artigo definido o: "aquele Deus, o nosso Deus há de prover", assim, "o substantivo precedido do artigo definido se refere à coisa, ao objeto em si, considerado individualmente ou genericamente, como concreto ou como abstrato", Lapa (1998, p. 102-103). Quando se quer apontar qualidades, usa-se o artigo definido, caso contrário, pode ser omitido.
O uso do artigo definido o antes do substantivo senhor, traduz a existência de intimidade entre Deus e Abraão, autor da frase do dado acima citado. Se ele dissesse "Deus há-de prover" não transmitiria a mesma segurança, pois a ausência do artigo distanciaria a divindade e o homem. A frase "o senhor há-de prover" dá credibilidade a Abraão, que, ao repeti-la (O senhor há-de prover, o senhor há-de encontrar...), enfatiza ainda mais sua proximidade com Deus. Na história, isso transmite segurança a Isaac e, no texto, convence o leitor do que está sendo dito.
No caso de artigo indefinido, este possui a capacidade estilística de dar imprecisão aos significados, traduzindo a indeterminação e o mistério (LAPA, 1998), como se observa neste trecho:

Dado 7

Animado pelo súbito descobrimento, fazendo, como é costume dizer-se, das tripas coração, buscou forças onde já as não havia e acelerou o passo, sempre à espera de ver aparecer uma casa com sinais de vida, um homem montado num burro ou uma mulher com um cântaro à cabeça (SARAMAGO, 2009, p. 44 ? grifo nosso).

Como se pode notar, nada aí é determinado, pode ser qualquer casa, qualquer homem montado em qualquer burro, ou qualquer mulher levando qualquer cântaro, Caim já andava sozinho há algum tempo e, neste momento da história, havia encontrado um caminho. Esperava então encontrar qualquer coisa: um lugar, pessoas, algum animal. Era de fato um mistério tanto para o personagem quanto para o leitor.
Para Lapa (1998, p. 109), "a indeterminação e o mistério vão quase sempre acompanhados de movimentos da sensibilidade". Desta forma, o artigo indefinido nos revela os alvoroços mais íntimos. No caso do dado 8, os artigos indefinidos nos colocam a par dos sentimentos de Caim, de sua aflição em caminhar sem rumo por lugares que nunca vira, de seu receio por estar exposto a riscos.


Discurso Direto: a originalidade

Considerada uma das grandes marcas originais nos textos de Saramago (CALBUCCI, 1999), o discurso direto ocorre com bastante frequência em Caim e de um modo muito particular: introduzido por uma letra maiúscula logo após uma vírgula. É utilizado por Saramago para manter viva a ligação com o leitor, pois "fica ao leitor o encargo de recriar, em voz alta, ou mentalmente, a dinâmica vocal sugerida pelo texto" (MARTINS, 2008, p. 196). Identificamos o discurso direto como um traço interacional na escrita de Saramago que propicia um envolvimento com o leitor.
Abaixo, temos um dos exemplos de discurso direto presentes em Caim (SARAMAGO, 2009, p. 78):

Dado 8

Já as pálpebras tinham começado a pesar-lhe quando uma voz juvenil, de rapaz, o fez sobressaltar. Ó pai, chamou o moço, e logo uma outra voz, de adulto de certa idade, perguntou, Que queres tu, issac, Levamos aqui o fogo e a lenha, mas onde está a vítima para o sacrifício, e o pai respondeu, O senhor há-de prover, o senhor há-de encontrar a vítima para o sacrifício.

No fragmento acima, chama atenção a ausência da pontuação própria, presente em enunciados discursados de forma direta: dois pontos, travessão e aspas. Tal pontuação pode ser utilizada com algumas variações, havendo, "na literatura atual maior liberdade na apresentação das palavras transcritas" (MARTINS, 2008, p. 196).
Nesse dado, observamos que para indicar que se trata de um discurso direto, são destacados verbos de elocução, introduzindo o discurso citado. Podem vir antes, no meio ou no final do enunciado, posicionado depois da fala do narrador ? "sobressaltar" ? e, em seguida, depois da fala do jovem ? "chamou". A partir daí, os enunciados vão-se alternando entre os personagens com a presença de tais verbos. Há ocasiões nas quais, mesmo com a ausência desses verbos de elocução, compreende-se quem está com a fala no discurso, como pode ser notado no trecho:
Dado 9
Perguntou isaac, Pai, que mal te fiz eu para teres querido matar-me, a mim que sou o teu único filho, Mal não me fizeste, isaac, Então por que quiseste cortar-me a garganta como se fosse um borrego, perguntou o moço, se não tivesse aparecido aquele homem para segurar-te o braço, que o senhor o cubra de bênção, estarias agora a levar um cadáver para casa, A ideia foi do senhor, que queria tirar a prova, A prova de quê, Da minha fé, da minha obediência[...] (SARAMAGO, 2009, p. 81-82)
Isso é possível porque o diálogo é iniciado pelo verbo de elocução perguntou marcando a indagação do rapaz. Esse mesmo personagem tem a fala marcada posteriormente, o que tornou desnecessária a marcação da fala do outro personagem. O conteúdo do enunciado também distingue as falas, pois Isaac não se expressa como Abraão e este por sua vez não fala como o narrador. Logo, se o leitor estiver atento à narrativa, não encontrará dificuldade em compreender o que está se passando.


Intertextualidade: Interação entre textos e pessoas.

Umas das marcas mais recorrentes nas obras saramaguianas é a intertextualidade "baseada no uso repetido da paródia" (CALBUCCI, 1999, p.105). O autor utiliza esse recurso tanto para compor narrativas históricas como de caráter crítico ideológico. Em nosso corpus de análise notamos essa habilidade de Saramago em estabelecer relações entre textos, fazendo com que histórias que são conhecidas há milênios ganhem um novo valor semântico.
Em nossa análise, atentamos para o lugar do leitor estabelecido por Saramago na produção do romance, que dialogicamente o provoca ao embate a fim de dividir a responsabilidade pelos sentidos possíveis para o texto.
No dado a seguir, temos um exemplo de como o autor prepara o leitor para introduzi-lo na narrativa aguçando-o:

Dado 10

Eis o que foi escrito num livro chamado do justo, que actualmente ninguém sabe onde pára. Durante quase um dia inteiro, o sol esteve imóvel, ali no meio do céu, sem nenhuma pressa de desaparecer no horizonte, nunca, nem antes nem depois, houve um dia como aquele, em que o senhor, porque combatia por israel, deu ouvidos à voz de um homem. (SARAMAGO, 2009, p. 121 ? grifo nosso).

Essa forma (Eis o que foi escrito num livro chamado do justo) de iniciar uma narrativa é semelhante a dos contos de fadas (Era uma vez), que prepara o leitor para uma historia inverossímil. Dessa forma, desarma o leitor de tal modo que se sente instigado a continuar a ler, mesmo que "para ver no que vai dar". Assim, o leitor já está pelo menos predisposto a "ouvir" o que o autor tem a dizer.
Já no caso da expressão num livro chamado do justo, por meio do jogo artigo definido e artigo indefinido, o valor de sagrado da Bíblia é desconstruído. O autor usa o artigo indefinido um (artigo indefinido um mais a preposição em) para colocar a bíblia no mesmo nível que qualquer outro livro, ao mesmo tempo com o definido em do (preposição de mais artigo definido o) determina que este livro é chamado assim somente pelos justos, excluindo todos os outros.
O trecho da obra que antecede o dado 10 retrata o momento em que Josué pede a Deus que pare o sol e este diz que não pode fazer isto, pois parado ele já está. Como Caim é toda ela uma paródia de várias narrativas bíblicas, Saramago questiona seu poder de verdade por meio do pressuposto científico que afirma que o sol está parado e a Terra é quem se move ao redor dele, dessa forma, o autor coloca em cheque o poder de Deus e a sabedoria que lhe é atribuída. Veja o que o deus de Caim diz a Josué:

Não posso fazer parar o sol porque parado já ele está, sempre esteve desde que o deixei naquele sítio. (SARAMAGO, 2009, p.118)

Após afirmar pela boca de Deus que é impossível parar o sol, Saramago usa um trecho retirado quase integralmente da Bíblia para montar a farsa que é criada na obra. Vejamos a frase escrita pelo autor, que está contida no dado 10, e a frase que está na Bíblia:

Nunca, nem antes nem depois, houve um dia como aquele, em que o senhor, porque combatia por israel, deu ouvidos à voz de um homem
(Dado 10).

Nunca antes nem depois houve um dia como aquele, quando o Senhor atendeu a um homem. Sem dúvida o Senhor lutava por Israel! (JOSUÉ, 2004, p. 231 ? 10: 14).

Saramago ao topicalizar o advérbio nunca descarta o fato de algum dia deus ter ouvido algum homem, ou seja, admitir as ideias de um ser humano. Ao contrario, a bíblia ressalta que teve um dia, o foco é o dia, em que apesar de todo o poder Deus, sua humildade o fez atender às vontades do ser humano.
O autor utiliza quase as mesmas palavras, mas muda a situação e com ela, o significado no momento da recepção. O leitor preparado compreende que Caim é obra de ficção e, por isso, passível de ser interpretada de acordo com a capacidade crítica de cada leitor, que não é obrigado a aceitar interpretações estabelecidas por convenções religiosas, tampouco pelas do autor. Esse ato de "alerta interpretativo", é uma estratégia interacional que procura manter autor e leitor numa relação de cumplicidade. Ou seja, o autor sabe que está abordando um tema polêmico, sagrado para alguns, e o leitor também compartilha desse conhecimento. Passemos ao próximo recorte:

Dado 11

Não há nada de definitivo no mundo que criaste, job julgava estar a salvo de todas as desgraças, mas a tua aposta com satã reduziu-o à miséria e o seu corpo é uma pegada chaga (...) (SARAMAGO, 2009, p. 149).

Essa fala é um dos últimos diálogos entre Deus e Caim, quando o nosso anti-herói questiona as razões de todas as desgraças que viu acontecer em nome desse mesmo Deus. O que aconteceu com Job, ou Jó, é relatado em Caim da mesma forma como na Bíblia, no entanto, a maneira como a história é colocada por Saramago, torna Deus o responsável por todas as desgraças.
O trecho abaixo retirado da Bíblia relata o momento em que Satanás recebe permissão de Deus para ferir Jó mais uma vez. Vamos ao trecho bíblico:

O Senhor disse a Satanás: "Pois bem ele está em suas mãos; apenas poupe a vida dele." Saiu, pois, Satanás da presença do Senhor e afligiu Jó com feridas terríveis, da sola dos pés ao alto da cabeça (JÓ, 2004, p. 518 ? 2: 6-7).

A paródia produzida por Saramago tem a capacidade de tornar profano aquilo que é considerado divino. E, ao profanar o divino, o autor coloca Deus como comparsa do diabo, assim como o fez em O Evangelho Segundo Jesus Cristo. Para que o leitor compreenda a releitura, é importante que tenha conhecimento do texto base, somente assim chegará ao entendimento da relação interativa entre os dois textos e da interação pretendida pelo autor com seu leitor.
Para Sant?Anna (2003), a paródia pode ser vista como a intertextualidade das diferenças, porque o autor utiliza a história original e a reescreve mudando o foco e com isso a ideologia. Algo que ocorre em Caim, Saramago reescreveu várias histórias do Velho Testamento focalizando a personagem central, assim levantando críticas sobre o que até hoje é contado como exemplos de milagres, resignação e castigo divino.
De acordo com Flory (1997), a construção das narrativas bíblicas no romance e o referencial presente em toda obra, envolvem o leitor em uma celeridade dinâmica de interação, colocando-o "no espaço dramático do texto encarregado de presentificar as contiguidades metonímicas e o eixo das combinações metafóricas para chegar à compreensão e interpretação da mensagem ficcional" (ibidem 1997, p. 61).
Portanto, quando o leitor compreende a proximidade das ideias e o ponto central da discussão estabelecida na obra, pode-se afirmar que há uma relação interativa. As histórias bíblicas são conhecidas por quase todas as pessoas do mundo ocidental, o que torna quase certa a compreensão do que é paródia e do que foi parodiado. Deste modo, a interação dos textos é identificada e a interação entre autor e leitor é alcançada.


O Simbolismo da Maiúscula no Texto

Para analisarmos a maiúscula com função expressa, é importante que a tomemos como um sinal que compõe a parte pragmático-enunciativa da pontuação de palavras, junto com o ponto abreviativo, os parênteses, as reticências, o hífen, o apóstrofo e o travessão (cf. DAHLET, 2006). Essa visão nos possibilita analisar os diversos usos da maiúscula sem sermos levados pela concepção de erro imposta pelo caráter restritivo da ortografia.
No caso de Saramago, a maiúscula é utilizada como substituta do parágrafo e do travessão, dois sinais usados para indicar a passagem da fala no discurso direto. Vamos ver como funciona o uso da letra maiúscula como sinal de palavra em dois excertos de Caim.

Dado 12

O anjo resmungou,(1ªfala) Mais um racionalista, e, como ainda não tinha terminado a missão de que havia sido encarregado, despejou o resto do recado, (2ªfala) Eis o que mandou dizer o senhor, (3ªfala) Já que foste capaz de fazer isto e não poupaste o teu próprio filho, juro pelo meu bom nome que te hei-de abençoar(...) (SARAMAGO, 2009, p.: 81 ? grifo nosso).

No dado acima notamos a fala de apenas um personagem dividida em três partes. Na primeira e na segunda, o discurso é diretamente passado para ele através do narrador e a letra maiúscula depois da vírgula indica a passagem e a continuação da fala respectivamente. A terceira fala, apesar de ser do mesmo personagem, é marcada como passagem de fala, porque o anjo está oralizando o discurso que deus mandou, portanto, indiretamente é a fala desse outro personagem que é lida ou ouvida. No dado abaixo, temos outro caso de uso da maiúscula em Caim.

Dado 13

Que fizeste com o teu irmão, perguntou, e caim respondeu com outra pergunta, Era eu o guarda-costas de meu irmão, Mataste-o, Assim é, mas o primeiro culpado és tu, eu daria a vida pela vida dele se tu não tivesses destruído a minha, Quis pôr-te à prova, E tu quem és para pores à prova o que tu mesmo criaste, Sou o dono soberano de todas as coisas, E de todos os seres, dirás, mas não de mim nem da minha liberdade, Liberdade para matar, Como tu foste livre para deixar que eu matasse a abel quando estava na tua mão evitá-lo (...) (SARAMAGO, 2009, p. 34).

Temos aí um exemplo da fluidez na escrita de Saramago. Deus e Caim discutem no excerto por meio de cinco falas para cada personagem. Apenas a primeira fala de cada um é marcada por um verbo de elocução. Apesar da sequência rápida que o uso apenas da vírgula e da maiúscula dá à leitura, não é difícil compreender a discussão, ao contrario, nos passa a impressão de uma discussão em que os oponentes se colocam como iguais e não aceitam perder no embate retórico. Essa fluidez envolve o leitor permitindo que interaja com o que está acontecendo, como se estivesse a assistir a cena e não a lê-la.
Vejamos como ficaria esse diálogo no dado 13 se estivesse escrito de acordo com as regras da GN, colocando os travessões para marcar o discurso direto:

─ Que fizeste com o teu irmão, perguntou, e caim respondeu com outra pergunta.
─ Era eu o guarda-costas de meu irmão?
─ Mataste-o.
─ Assim é, mas o primeiro culpado és tu, eu daria a vida pela vida dele se tu não tivesses destruído a minha.
─ Quis pôr-te à prova.
─ E tu quem és para pores à prova o que tu mesmo criaste?
─ Sou o dono soberano de todas as coisas.
─ E de todos os seres, dirás, mas não de mim nem da minha liberdade.
─ Liberdade para matar?
─ Como tu foste livre para deixar que eu matasse a abel quando estava na tua mão evitá-lo (...).

Nessa simulação, percebemos que a alternância de fala marcada pela mudança de linha e pelo travessão quebra a conexão entre leitor e texto. O ritmo de leitura é outro. É possível destacar também que, a substituição de sinais traz para o texto a participação ativa do leitor/ouvinte.


A Vírgula: um sinal valoroso

Acreditando que o romance deve visar à expressão total e abrir-se a toda forma de inspiração literária, José Saramago renovou a prosa da ficção portuguesa com um estilo que associa história e fantasia. Sua pontuação foge ao tradicional, reinventa a escrita, combina características do discurso literário com o discurso oral, construindo uma cumplicidade entre narrador e leitor.
Dispensando sinais como dois-pontos, travessões, interrogações ou exclamações, ele emprega apenas a vírgula e o ponto como sinais gráficos, o que sugere nuance de leitura. O uso da inicial maiúscula marca a passagem de uma fala para outra, ajudando a discernir a fala dos personagens. Além disso, em alguns momentos, a própria estrutura da frase denuncia se estamos diante de uma pergunta ou de uma afirmação.
Observemos abaixo:

Dado 14

Que desacordo foi esse, perguntou caim, e o homem respondeu, Quando nós viemos do oriente para assentar-nos aqui falávamos todos a mesma língua, E como se chamava ela, quis saber caim, Como era a única que havia não precisava de nome, era a língua, e mais nada, Que aconteceu depois, Alguém teve a ideia de fazer tijolos e cozê-los ao forno(...) (SARAMAGO, 2009, p. 85).

No dado acima, a primeira pergunta é marcada posteriormente pelo verbo de elocução perguntou e a resposta também é identificada pelo verbo correspondente. Em seguida, a fala dos dois personagens é alternada naturalmente sem outras marcas, além da letra maiúscula identificar quem está com a palavra.
Ao substituir todos os sinais de pontuação pela vírgula, pela maiúscula e pelo ponto final, Saramago consegue tornar o texto mais fluido. Com isso, o leitor participa diretamente da construção do texto, compreendendo o discurso ao aplicar mentalmente as aspas, os travessões e demais sinais que considere necessários inicialmente. Nesse processo de construção de diálogos, Saramago consegue manter a interação constante com leitor.
Observemos o dado seguinte:

Dado 15

Ao menos, desta vez não lhe faltará comida, os alforges vêm cheios até à boca (?) (SARAMAGO, 2009, p. 76).

No dado 15, a vírgula é usada em esquema duplo, como sinal sintático e dividindo categorias funcionais. Além disso, marca o que nos parece ser o pensamento do narrador sobre o acontecimento narrado (desta vez não lhe faltará comida). A separação de Ao menos da oração seguinte nos transmite essa impressão. Se não tivéssemos a primeira vírgula a frase ficaria dessa forma:

Ao menos desta vez não lhe faltará comida, os alforges vêm cheios até à boca (?).

Com essa segmentação, temos a divisão das duas orações inserindo a primeira na narração e não a separando como reflexão do autor sobre a história. Na frase original, Saramago segmentou o pensamento dele sobre o acontecido do fluxo da narração da história.
O dado abaixo nos apresenta um tipo de diálogo muito comum nas obras de Saramago:

Dado 16

Caim deixou-se escorregar da albarda, entregou a arreata a um escravo que tinha acudido e perguntou-lhe, Está alguém no palácio, Sim, está a senhora, Vai dizer-lhe que chegou um visitante, Abel, chamas-te abel, murmurou o escravo, lembro-me de ti, Vai, então (SARAMAGO, 2009, p. 25-126).

O autor marca a fala do Caim por meio do verbo perguntou seguido da vírgula. Desta forma o leitor identifica que o próximo a falar é o escravo e, cada vez que a fala se alterna através da maiúscula, é possível compreender quem está falando, mesmo com a fala do escravo sendo identificada apenas uma vez no final do diálogo por meio de murmurou. O autor ainda usa a vírgula para separar duas orações coordenadas que se ligam sem elemento de coordenação. As orações também poderiam ser construídas da seguinte forma:

Caim deixou-se escorregar da albarda e entregou a arreata a um escravo que tinha acudido e perguntou-lhe (...)

A segmentação pela vírgula torna o texto mais leve, imprimindo maior ritmo à leitura como língua falada, na qual não há necessidade de verbos de elocução ou outras marcas formais para a troca de turnos entre falante e ouvinte.
A forma heterodoxa com que Saramago utiliza os sinais gráficos não se distancia em demasia do entendimento que Villela (2005) e outros teóricos têm desses sinais. A autora defende que os sinais são uma marca na organização do texto escrito e, por isso, podem funcionar no papel de estabelecer interação entre enunciador e enunciatário guiando a leitura.
No decorrer da leitura o texto passa a ser compreendido da forma como se apresenta, com os sinais rítmicos de pausa e entonação próprios da fala e não de pontuação. Como bem descreveu o próprio autor, "fala-se como se faz música, com sons e com pausas; toda a música é feita de sons e pausas e toda a fala é feita de sons e pausas". (REIS, 1998, p. 74). Assim, segue explicando que a sua forma de escrever aguça a atenção do leitor, que lê suas obras como quem trafega por uma estrada sem sinais de trânsito, mas que, por possuir bom senso ? no caso do leitor, e também por conhecer as normas necessárias, não sofre e nem causa acidentes.
Devemos ter em mente que tais recursos somente podem ser utilizados de modo coerente pelo escritor se ele souber usá-los na constituição lógica do texto escrito. Para isso é necessário recorrer às regras gramaticais e, dessa forma, organizar sintática e semanticamente a produção textual dando o toque pessoal, o qual, no caso de Saramago, é transformar esses sinais de pontuação em sinais de pausa em várias ocasiões. Ao fazer essa transformação, Saramago dá uma maior leveza psicológica aos seus textos, e, deixando o leitor fica numa posição mais confortável (cf. CARRERO, 2005).
Dessa forma, Saramago não abre mão totalmente das regras da gramática normativa. Ele utiliza a vírgula para separar as orações assindéticas, coordenadas, as conjunções adversativas e em outras situações. Essa facilidade em transitar do gramaticalmente "correto" ao estilisticamente aceitável, torna a leitura de obras saramaguianas uma conversa com um autor que está sempre presente, dando pistas e espaço para diferentes interpretações de seus enunciados.











Considerações Finais

Essa pesquisa pretendeu refletir sobre as estratégias interacionais utilizadas por Saramago com a finalidade de compreender a maneira como o autor pode utilizar a língua a fim de construir efeitos de sentidos de aproximação de seu leitor. Tendo isso em vista, identificamos como recursos interacionais: artigos, adjetivos, discurso direto, a pontuação, procuramos entender o emprego dessas classes de palavras em Caim, sem viés de erro, desvio, no sentido da gramática normativa, focando seu uso do ponto de vista expressivo.
Por meio de uma narrativa aparentemente intempestiva, irreverente, criada por uma escrita oralizada e rupturas com as normas da gramática, concluímos que os recursos expressivos empregados pelo autor servem para estabelecer interação com o leitor, concedendo-lhe um espaço como colaborador nesse complexo processo que é o diálogo autor/leitor, construindo entre narrador e leitor uma cumplicidade. Percebemos assim que, através de seu estilo, José Saramago torna-se um contador de histórias que, diante de nós, narra uma saga com minúcias historiográficas e detalhes indispensáveis a um leitor mais ávido pela grandeza da narrativa. Esses detalhes dinamizam a leitura e trazem o leitor para a obra.
Ao longo de todo o trabalho, foi possível perceber que o estilo é de fundamental importância no marcar e no imortalizar de uma obra literária. Pois o estilo inconfundível de Saramago consegue fazer com que a obra Caim traduza a intertextualidade. Através de sua escrita, ele nos dá uma sensação de uma história oralmente narrada, onde, apesar de todo o intertexto e algumas histórias serem bem conhecidas, sua escrita e maneira particular de enxergar os fatos nos prende ao livro à espera de um novo final que possa surgir.
Ressaltamos que a possibilidade de nos aprofundarmos na vida e obra deste autor considerado um dos maiores escritores contemporâneos, foi sem dúvida o que mais nos encantou neste trabalho. Desse modo, nos reafirmando a genialidade de Saramago.
Esperamos com esse trabalho dar contribuição a futuros estudos no que diz respeito às estratégias utilizadas para tornar ainda maior aquilo que já é incomensurável: o poder da palavra. Um poder que ultrapassa todos os limites de nosso entendimento, mas que foi muito bem utilizado por Saramago, o qual, por meio de sua inusitada forma de colocar as palavras, consegue dialogar com o seu leitor e mesmo persuadi-lo, ainda que este nem perceba.
No entanto, mesmo estudando seu estilo e sua interação com o leitor através deste, para nós será para sempre um enigma o encanto conseguido por Saramago através de suas obras, sua capacidade em conseguir despertar em tantas pessoas o interesse pela leitura, ainda que em meio a uma realidade tão difícil quanto o hábito de ler, ou que a cada dia seja maior a concorrência com o surgimento de tantas novidades tecnológicas que afastam dos livros pretensos leitores, ou que sua "voz em branco e preto " fuja aos padrões impostos por sua língua, mas que insinua e convida o leitor a uma narrativa que parte do verossímil ao possível real.









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