O filme em sala de aula: 2 filhos de Francisco

 

O número dois é um número místico, profético. A história evolutiva da humanidade nos remete a este poder cabalístico, quase determinante, do número dois, que define nossa eterna dualidade. Caim e Abel, Remo e Rômulo, Alexandre e Heitor, na construção do nosso chamado inconsciente coletivo, marcam presença na condição de dois seres que, intrinsecamente, vêm a ser um só.

A Literatura é recorrente nesse tema da dualidade. Esaú e Jacó, Dois Irmãos, João e Maria, O Homem Duplicado, só para citar, respectivamente, Machado de Assis, Milton Hatoon, Andersen e José Saramago, entre tantos outros, que fazem parte desse acervo literário, em que cada um, a seu modo, busca perenizar esse assunto que, de certa forma, nos incomoda e nos fascina.

Nossa cultura popular está impregnada de duplos: os dois lados da moeda, uma mão lava a outra, este é irmão deste (referente aos olhos) e assim por diante.

Enfim, a própria criação do mundo, luz e trevas, terra e céu, água e fogo, homem e mulher, é contada através de referências à duplicidade da Natureza.

Nessa linha, vale ressaltar que o mesmo que acontece com alguns números que, por si só, tornam-se emblemáticos, também acaba ocorrendo com alguns nomes, como é o caso de Francisco. Em nossa cultura ocidental cristã, Francisco é referência de superação, obstinação, desapego, religiosidade. Basta lembrar os ícones das igrejas católica e kardecista, como São Francisco de Assis e Francisco Cândido Xavier.

Unindo, então, essas duas palavras, ou melhor, três, porque teríamos também a palavra “filhos”, da qual sairiam mais algumas dezenas de temas para dela serem desdobrados temos o filme “2 filhos de Francisco” que, só pelo título, já valeria ser assistido e debatido pela Academia, público que, via de regra, se interessa por todas as manifestações artísticas.

No dizer de Marcelo Perrone, crítico de cinema, o filme mostra a figura do pai como aquele que é capaz de inverter a mão do destino, bem “à maneira” de um Francisco, se retornarmos à discussão do que vem significando esse nome em nossa religiosidade ocidental. Ainda nas palavras do citado crítico, o filme deve ser visto como “um ensaio antropológico sobre um Brasil que muita gente desconhece ou faz questão de não conhecer”; além da própria história da dupla sertaneja Zezé Di Camargo e Luciano, o longa “retrata a transformação do país que migrou do rural para o urbano, trocou a enxada pela pá de pedreiro, a casinha pelo barraco, o lampião pela lâmpada, o rádio pela televisão”.

Importante salientar também que “2 filhos de Francisco” relembra clássicos da música como “Tristeza de Jeca”, em um momento tão significativo, no qual a música sertaneja pouco ter a ver com a singeleza do cancioneiro sertanejo que deu origem a essa modalidade musical.

Além disso, como nos ensina o pesquisador e professor de Cinema, Glênio Póvoas, “deve-se ficar atento ao que está sendo produzido em vários níveis. E, acima de tudo, uma disponibilidade para ver tudo e estar aberto para tudo. Porque se o cara já vem com preconceito, não vai dar certo”; não devendo, portanto, o gosto musical ser o motivo único de apreciação sobre um filme musical, muito embora, é claro, J.Jota de Moraes nos faça o acertado alerta de que a música, entre outras coisas, seja uma forma de representar o mundo, de relacionar-se com ele e de concretizar novos mundos.

Enfim, a nossa sugestão, a professores e alunos, de exibição de filmes em sala de aula, tem procurado oportunizar a realização de outras leituras que possam ampliar, ou até complementar, o próprio texto escrito; pois “em que se baseia a leitura? No desejo. Esta resposta é uma opção. É tanto o resultado de uma observação como de uma intuição vivida, ler é identificar-se com o apaixonado ou com o místico. É ser um pouco clandestino, é abolir o mundo exterior, deportar-se para uma ficção, abrir o parêntese do imaginário. É manter uma ligação através do tato, do olhar, até mesmo do ouvido (as palavras ressoam). As pessoas leem com seus corpos. Ler é também sair transformado de uma experiência de vida”. (Bellenger, 1988)

Assistir ao filme “2 filhos de Francisco” é uma das maneiras de ver comprovada na tela a lição de que é possível transformar em vida real o mais delirante dos sonhos, conforme nos cita Marcelo Perrone e nos ensinava Aristóteles, em sua imortal Poética.