O objetivo deste presente capítulo está voltado para a descrição, em bases bíblicas e em bases de documentos da Tradição, da categoria Reino de Deus. Tal descrição terá uma perspectiva bem panorâmica, na intenção de que isto venha nos ajudar a nos situarmos na discussão acerca do tema ao longo da estruturação teológica da Igreja. Entretanto, a fundamentação bíblica para tanto deverá ser mais profícua que a dos textos da Tradição.

1 FUNDAMENTAÇÃO BÍBLICA

 

1.1 AS ANTIGAS PROMESSAS

A Escatologia é a disciplina que não se preocupa tão somente com o além das coisas, mas também com a esperança efetiva demonstrada no aquém. Este aquém, evidentemente, transcende os limites da experiência. Neste sentido, é justificável começar primeiro abordando as antigas promessas encontradas nas Sagradas Escrituras, o que traz uma descendência e proteção especiais e divinas. Dentro da história judaico-cristã acerca da fé, desde os primórdios, esta história sempre foi história da esperança. Seguindo a linha narrativa do Pentateuco, a história judaico-cristã inicia-se com uma promessa: “Disse o Senhor a Abraão: ‘Sai da tua terra e vai pra a terra que eu te mostrarei. Farei de ti uma grande nação, abençoar-te-ei e engrandecerei teu nome’.” (Gn 12,1). Encontram-se aqui as promessas clássicas: terra, descendência, dispensação de Deus etc., o que faz da promessa ser chamado para pôr-se a caminho. Também a história narrada no livro do Êxodo começa com esta verossimilhança: na palavra que procede da sarça ardente, Deus promete a libertação e a terra própria (cf. Êx 3,7-12). A Terra Prometida é descrita como algo sedutor, belo, amplo, local onde emana leite e mel. Aqui, a promessa do Êxodo acaba por transcender aquela promessa anterior presente no Gênesis, feita a Abraão. Entretanto, verifica-se que a promessa vem acompanhada de um apelo, assim como a anterior.[1]

Na promessa do Êxodo, Moisés deve negociar com faraó e fazer com exatidão aquilo que Deus prometeu que é conduzir o povo para fora do Egito. Assim, a promessa e a esperança colocam em movimento a história. Mais tarde, no Sinai, Deus promete aos seus uma dispensação especial: com esta, o povo torna-se destaque entre todos os povos da terra (cf. Êx 19,4-6). Tal motivo também nos lembra a promessa feita a Abraão. Entretanto, neste caso, a fé na promessa já se faz no apoiar-se nas experiências feitas por Israel na saída do Egito e na passagem pelo mar.[2]

Embora não exista um termo em hebraico a ser traduzido por promessa, o tema teológico da mesma é um tema bem evidente no Antigo Testamento. Já no Pentateuco estão sempre presentes a promessa e o seu cumprimento. É possível encontrar em Gn 12-50 uma série de promessas feitas aos patriarcas, tais como bênção, descendência numerosa, possessão de terras. O restante das histórias presentes por todo o Pentateuco e também no livro de Josué versa sobre o cumprimento das promessas feitas por Iahweh a seu povo. É no cumprimento das promessas do Antigo Testamento que se dá a revelação das novas promessas. Uma delas é a promessa do reino de Deus [de Iahweh], de uma dinastia eterna de Davi e, por fim, depois do exílio, a restauração de todo o Israel. O ponto básico e primeiro da fé de Israel (e de todo o Antigo Testamento) está nesse aspecto de que Iahweh pode e quer manter suas promessas: ele é fiel e sua fidelidade à promessa é um motivo para a fidelidade de Israel aos mandamentos de Iahweh.[3]

O reino é, contudo, a quarta promessa, que vem a fazer parte das outras três promessas (bênção, descendência e posses). “A esperança de Israel de posse segura da terra e de poder viver em paz com os inimigos liga-se agora com a esperança de um homem que conta com a especial assistência de Deus”.[4] Há, no entanto, um abuso do poder por parte deste único homem assistido por Deus (cf. 2Sm 11s), o que acarreta na divisão do reino, apresentando seguidas derrotas militares, dominância estrangeira, acarretando no exílio.

A despeito de todo o fracasso[5] vivido, as esperanças de Israel ainda transcendem para as promessas proferidas até então. Isaías promete um príncipe da paz, o direito e a justiça e a paz que não tem fim (cf. Is 9,1-6). Exilado na Babilônia, Israel recorda-se das promessas, que o lembram do êxodo no Egito. Essa circunstância o faz anunciar um novo Êxodo, que haverá de ser ainda mais espetacular que o primeiro (cf. Is 43,16-20; 55,12). Entretanto, o objetivo aqui apresenta-se com cores mais vivas, não como antigamente apenas como promessa de terra ampla e produtiva, mas com novas promessas associadas às experiências e recordações históricas, personificadas na cidade de Jerusalém, ainda em ruínas, mas que será, brevemente, reconstruída com aquela beleza indizível com a qual descreve Isaías (54,11s).[6]

1.2 O HORIZONTE BÍBLICO DA ESCATOLOGIA

A dimensão escatológica se faz como caráter essencial na compreensão da fé bíblica. Ela está essencialmente ligada à revelação divina, seja enquanto ato transcendente que se impõe ao homem na intenção de superar o plano simples do tempo terreno para entrar em um diálogo vivo com Deus em sua realidade eterna, seja enquanto ato em que o próprio Deus abre e constitui uma história para o homem. História esta que se abre no futuro e que é orientada pela própria palavra de Deus, enquanto Palavra de promessa. Desse modo, cada ato da revelação é, intrinsecamente, um ato escatológico que se abre a um horizonte também escatológico.[7]

A resposta à intervenção de Deus é a postura da fé que espera e que tem como conteúdo central e fundamental o próprio Deus (chamado de teocentrismo da esperança). Essa perspectiva só se revela em Cristo (chamado de cristocentrismo). Para tanto, diante de tal contexto, é possível dizer que “[...] a escatologia bíblica deve, antes de tudo, ser considerada no quadro da concepção do tempo histórico e do primado do futuro”.[8] A religião, na Bíblia, é uma religião de esperança, que interpreta a história à luz da promessa divina, a qual garante a ela uma consumação universal.

No contexto peculiar de uma história universal da salvação, insere-se a esperança escatológica e pessoal de cada indivíduo, de sua retribuição e participação na vida eterna. Para tanto, após breves delineamentos da concepção dos termos e das categorias fundamentais que compõem o vocabulário escatológico da Sagrada Escritura, referindo-se à realidade própria da história da salvação, no qual o contexto, acima de tudo, define-se na esperança bíblica, passamos a considerar os que são concernentes ao ponto de vista pessoal desta própria esperança.[9] A escatologia cristã precisa ser ampliada a uma escatologia cósmica, o que fará com que ela não se torne uma doutrina gnóstica da redenção e nem precise mais ensinar a redenção do mundo. Redenção que deve ser ensinada em relação ao mundo, não sendo uma redenção do corpo, mas uma redenção da alma em relação ao corpo. Enquanto seres humanos, não somos candidatos a anjos, que tem como pátria o céu e que devamos nos sentir como que estrangeiros nesta terra. Somos seres de carne e sangue e nosso futuro escatológico está figurado em um futuro humano e terreno: a ressurreição dos mortos e a vida do mundo futuro. O redentor, nesse sentido, não é outro senão o criador. Se assim não fosse, ele se contradiria a si próprio se não redimisse tudo o que criou. Um dia esse Deus que criou o universo, será tudo em todos (cf. 1Cor 15,28). A escatologia cósmica é necessária não por conta de se criar um universalismo, mas por conta do próprio Deus mesmo, pois não existem dois deuses (um criador e outro redentor), existe um só Deus que cumula em si todas as funções necessárias. Nessa unidade divina é que também devemos pensar na unidade de redenção e criação.[10]

A escatologia cósmica apresenta um programa que se depara com consideráveis dificuldades na civilização técnico-científica da era moderna. O cosmo, como um todo e em todos os âmbitos específicos, tornou-se objeto das ciências naturais. Na medida em que estas ciências precisam adotar uma postura agnóstica em sua metodologia, também não admitem afirmações teológicas dentro de seus âmbitos, muito menos acerca do início do cosmo nem sobre seu fim. É compreensível, por esta razão, que a teologia moderna tenha se retraído do âmbito da natureza e se concentrado na história e, no âmbito da história, restringiu-se a seu aspecto interno a existência dos seres humanos. Nesse sentido, escatologia e cosmologia distanciaram-se uma da outra, o que nos trouxe uma escatologia que tende a se transformar em um mito gnóstico de redenção, conforme se demonstrou dentro do existencialismo moderno.[11]

 

1.3 A ESCATOLOGIA DO ANTIGO TESTAMENTO E NA HISTÓRIA UNIVERSAL

As condições da aliança, ao longo da história do Antigo Testamento, sofrem uma certa potencialização. Isso em decorrência do fato de o povo, que ainda não tivera experimentado e conhecido a Javé, vê sua miséria atual: o exílio, que é consequência de sua infidelidade. No entanto, a misericórdia de Deus olhará preponderantemente para essa situação. Para tanto, no que diz respeito à eleição, será acrescida a dinâmica do perdão. Isso acarreta um novo significado de que a nova aliança vai além da primeira. Deus, por ocasião disso, toma seu povo pela mão e o conduz para fora do Egito.[12] Mais especificamente no livro de Ezequiel podemos verificar que a promessa política une-se à promessa da renovação da aliança: “Eu vos darei coração novo e ponho em vós um espírito novo. Tiro o coração de pedra de vosso peito e vos dou um coração de carne” (Ez 36,26).

É Deus, em seu fôlego, que traz nova vida ao povo, que está morto no deserto, desesperado. Diante dessas fraquezas, é Deus que conduz o povo a uma nova terra, a uma nova pátria, como descreverá Ezequiel:

Eu mesmo colocarei espírito em vós [...], abro vossos túmulos e vos tirarei a vós, meu povo, de vossas sepulturas. Eu vos reconduzirei à terra de Israel [...]. Assoprarei em vós o meu espírito, então vivereis, e vos conduzirei para a vossa terra (Ez 37,5.12.14).

Desse modo, apresentam-se alguns modos característicos da antiga história da esperança. Em um primeiro momento, “[...] trata-se de conteúdos de esperança intramundanos, possibilitados pela proximidade salvadora, protetora e vivificante de Deus”.[13] Em um segundo momento, verifica-se uma história da esperança sempre mais abrangente, ainda que a história do povo de Israel não possa ser descrita de maneira retilínea. As pastagens na promessa feita a Abraão são a terra onde correm leite e mel. Mais tarde, no exílio, será acrescida a imagem da cidade preciosamente ornada, que se torna o ponto de encontro de todos os povos (cf. Is 2,2s). A esperança de descendência se torna a esperança de uma existência política duradoura do povo. Acarreta-se a isso uma promessa de dinastia duradoura e respeitada. Na promessa de uma dinastia respeitada e duradoura, nasce a promessa por um príncipe da paz. Também da esperança por liberdade e de segurança contra os inimigos, resulta a esperança por um reino de paz (cf. Is 11,6s; 65,17-25). “A especial dispensação de Deus [...] leva à aliança de proteção no Sinai”.[14] Essa aliança será, no entanto, superada pela promessa de perdão e por uma nova aliança. Portanto, a história do povo de Israel é uma constante peregrinação até um horizonte de esperança cada vez maior.

Em um terceiro momento, verificamos que muitas vezes promessa e apelo à ação são correspondentes. A primeira abre as possibilidades do segundo, o que concretiza a plena realização da promessa. Com isso, surge, por meio da promessa, uma história real, feita em liberdade pelos seres humanos, entretanto, em simultaneidade. Por fim, em um quarto momento, verificamos que a razão para com a esperança reside nas experiências históricas e na revelação de Deus como sendo o Deus da Aliança (ou Javé). Ambas estão intimamente relacionadas, pois Israel conheceu seu Deus em suas experiências históricas, o que significa dizer que são eventos históricos e a interpretação em fé, e que esse Deus se tornou historicamente concreto, sendo ele próprio a razão da esperança.[15]

Aproximando-se da escatologia bíblica, é preciso ter presente toda uma série de terminologias e de conceitos que caracterizam a sua linguagem, sobretudo quando se tratam dos conceitos de tempo e de história que se diferenciam profundamente da concepção cíclica que é própria da antiguidade grega e das culturas orientais milenares. A concepção delas centraliza-se na divinização da natureza consagrada à circularidade do tempo, do ciclo cósmico e das estações pelas quais o homem, culturalmente, é envolvido em uma sagrada e continuada duração cíclica e repetitiva.[16]

O tempo e a história são expressão de uma ampla gama semântica de terminologias (aiōn, kairos, chronos, sēmeron, nyn, ōra), com aquele pensamento de fé que exprime uma concepção de duração retilínea que se envolve em sentido teológico, exprimem o lugar de atuação do plano divino que se dá desde o princípio da obra criadora (cf. Gn 1,1 – 2,4) que culmina no sábado e que anuncia a aliança (cf. Êx 31,13.16.17) e as futuras obras de Deus. Assim, toda arché surge em função de um telos e a protologia bíblica se mostra essencialmente dinâmica e orientada a uma escatologia.[17]

O conceito de tempo adquire um significado novo, encontrado em seu conteúdo histórico: a temporalidade bíblica, de fato, não compreende somente a superação das imagens cíclicas, mas, também, a superação da estrutura quantitativa da duração, para assumir também aquela qualitativa, que deriva do conteúdo dos eventos dos eventos que temporariamente.

Tais eventos, pela sua particular posição na atuação do desígnio divino, são frequentemente chamados de «kairós» (momentos particularmente oportunos) que exprimem a absoluta liberdade de JHWH, que cumprem as suas promessas e devolvem a uma averiguação ulterior futura.[18]

É dessa maneira que hoje a intervenção de Deus é como que uma pedra milenar de uma estrada que assinala o caminho de uma marcha ascendente até a perfeição das coisas criadas. O telos é o cumprimento da arché; Israel toma consciência da historicidade do seu advir através de uma série de atos coordenados sobre uma linha temporal segundo uma secreta ordenação divina que constitui o desenho da história da salvação.[19]

Assim, o tempo se torna historicizado a partir da primeira intervenção criadora divina que constitui, com o início absoluto dos adventos, o anúncio de outras intervenções sucessivas e divinas, que tendem a um progressivo cumprimento o desenho divino. Assim, podemos dizer que a escatologia bíblica tem seu ponto de partida naquela concepção do tempo como história, que se fundamenta na mesma fé de Israel, enquanto fé que responde a uma experiência do Deus revelador que, mesmo em seu ato revelador, intervém no tempo humano rendendo-lhe tempo histórico.[20]

Tal sentido da história se evidencia considerando seja pelo dinamismo teleológico do tempo, que matura um grande plano de salvação no seu desenvolvimento linear, seja ao considerar-se seu cumprimento final, que o fecha de modo definitivo. A esperança escatológica do advento do Reino, sempre mais, vai se envolvendo na literatura apocalíptica, em um quadro meta-histórico universal, em claras dimensões celestes e cósmicas (cf. Dn 2,44-45; 7,9-12; 12.13). Tais dimensões universais da realidade do eschaton que encontram em Deus e em sua vinda. O quadro da esperança escatológica universal, à qual leva a mesma fé javista do Antigo Israel, coloca-se também sob o ponto de vista pessoal da esperança do homem. [21]

 

1.3.1 UMA PECULIARIDADE BÍBLICA: O DEUTERO-ISAÍAS

Há, dentro dos escritos do Antigo Testamento, uma peculiaridade bem distinta no que é conhecido e chamado de Segundo Isaías, ou Deutero-Isaías. Costuma-se classificar como Deutero-Isaías os capítulos de 40 a 66 dos chamados escritos de Isaías. Nessa parte do Deutero-Isaías verifica-se uma teologia de estilo elevado, que consegue uma síntese de todo o credo profético até seu tempo. Essa síntese une em uma concepção de grande capacidade a fé israelita na criação, no governo divino da história e na vontade salvífica de Iahweh. Tendo em vista que Iahweh é o criador, as potências presentes no mundo são, mesmo as maiores, insignificantes diante dele (cf. Is 40,14ss.21ss). Iahweh, como criador, é aquele que dispõe dos poderes da natureza; tais poderes são instrumentos na realização de sua vontade, que é a de libertar a Israel. [22]

A libertação de Israel é a primeira etapa para a construção do Reino de Iahweh. Israel é o servo de Iahweh, e, em seu reino, é seu mediador para todas as nações, é a testemunha primordial. O conhecer a Iahweh deve ser dado a todos os povos, pois todas as nações devem participar da economia da salvação dada por Iahweh. Tal é a meta de Iahweh para dirigir a história humana, sua condução se dá em vista das profecias, que fazem alusão contínua. Essas alusões não se referem a passagens precisas dos livros, uma vez que se baseiam mais na visão profética da história do mundo, como já antes formulada pelos profetas anteriores. [23]

É Iahweh quem conduz o curso dos eventos e é quem leva àquela meta que ele mesmo fixou. Nenhum povo compartilhava com Israel de tal visão de mundo. No tempo do Deutero-Isaías, pode-se constatar a condução de Iahweh na aparição de uma personagem emblemática para a história humana: Ciro, homem inesperado para realizar aquilo que era considerado impossível, que é a restituição da vida a um povo que os conquistadores quiseram deixar ocultas das páginas da história. Conseguinte a isso, Israel sobreviverá à Babilônia, e sobreviverá com a fé em Iahweh e com o testemunho do poder e da vontade salvífica de Iahweh. Essa mensagem que afirma que a salvação está na vinda de Iahweh, não apenas em suas ações ou em suas mensagens, é típica do Deutero-Isaías. A crença de que Israel seja o povo de Deus é uma fé antiga e fundamental, entretanto, o Deutero-Isaías acrescenta a essa mesma fé antiga uma expressão de amor tenro, compassivo, de perdão que se demonstra generosamente em fazer ressurgir para a nova vida, para uma nova criação, um povo que merecera a morte. [24]

A síntese de criação, de poder e de querer salvífico nasce da profissão de fé do monoteísmo, que é explicita e polêmica, que não encontra paralelos em escritos anteriores. A concepção do mundo, sem dúvida, ampliara-se em Israel já a partir do século VIII a.C., o que significa que, desde que Israel estivera em contato com as potências do mundo, sendo absorvido em impérios mundiais e forçado ao exílio da própria pátria. Refletindo sobre esses acontecimentos, percebe-se que há uma tendência, para a época do Deutero-Isaías, em se dizer que a reflexão acerca de tais eventos destruía a fé de alguns israelitas. Mas, para o profeta, a concepção de Deus aumentava, já que as exigências morais e o governo do mundo atuado por Iahweh eram tão grandes quanto suas ações criadoras. Os deuses das nações em redor, portanto, não eram mais do que nada e, por isso, deveriam ser desconsiderados. [25]

Com o evento final da revelação de Deus, da ressurreição dos mortos, a palavra de promessa da Bíblia anuncia uma nova criação, que se configura em novos céus e nova terra (cf. Is 65,17-21; 66,22). Tal esperança de glorificação cósmica possui uma notável repercussão sob luz cristológica e escatológica. No Novo Testamento a palavra de Jesus anuncia uma palingenesi (cf. Mt 15,28) e a pregação apostólica uma restauração ou apokatastasis (cf. At 3,21), enquanto que em 2Pd 3,13 e Ap 21,1 é anunciado um novo céu e uma nova terra. A instância cósmica da salvação ressoa amplamente também no Magistério da Igreja (principalmente a Lumen Gentium em seu número 48; e a Gaudium et Spes em seu número 39), com a intenção de extinguir os equívocos de uma concepção demasiadamente individualista e desencarnada da esperança cristã. A nova criação não vem no plano de Deus como uma substituição ou uma simples reparação da primeira criação, a nova criação é o cumprimento do grande projeto cosmogenético de Deus que, a partir do primeiro momento criativo, há de se pôr no curso do tempo até a conclusão parusíaca. Entre um primeiro momento criativo e sua conclusão parusíaca, não há unicamente uma diastasis[26] nem uma fratura, mas uma continuidade e um progresso.[27]

No texto do Deutero-Isaías, a redenção e a restauração de Israel são descritas como um novo êxodo, pois todas as imagens são tomadas das tradições do Êxodo. Contudo, essas mesmas tradições são ampliadas, conforme se pode verificar nos capítulos 41,17ss; 42,16; 43,2.16ss; 48,21; 49,10; 51,10. O deserto pelo qual Israel deverá passar florirá, a terra de Judá será restaurada, a Jerusalém, também restaurada, demonstrará a grandeza dada a uma cidade na qual o próprio Iahweh habita (cf. Is 54,1s.11-14). [28]

 

1.3.2 A LITERATURA APOCALÍPTICA

A literatura apocalíptica oferece um quadro de esperança essencialmente diferente. Esse tipo de literatura inicia-se em uma época (cerca de 200 a.C. a 100 d.C.) que dava ocasião para um pessimismo extremado dentro do judaísmo, tanto político quanto religioso. As chances para uma reconstituição do estado próprio judeu parecia desmanchar-se frente aos domínios sob a guarda dos gregos e dos romanos. Os judeus crentes eram perseguidos, por consequência de sua fidelidade a Iahweh e à sua Lei; muitos eram assassinados e torturados, fazendo com que se debandassem para o lado dos poderosos. Na oportunidade de se conseguir estabelecer um estado judeu relativamente soberano, aqueles que detinham os poderes políticos acomodaram-se a tal ponto de o helenismo pagão, que para muitos crentes em Israel não foi possível uma identificação a essa forma de conduta cultural e filosófica. [29]

Dentro desse contexto, a esperança toma, então, uma forma outra que se expressa entre alguns círculos de judeus fiéis. A história, aparentemente, só toma rumos negativos, sendo guiada pelo próprio Deus, que é quem permite que os judeus se encaminhem à perdição, para, então, estabelecer o mundo novo e melhor, o novo eon. É muito frequente a figura dos visionários que recebem de Deus a revelação acerca do curso da história e que comunicam à comunidade perseguida o que viram. É deste aspecto que se dá o nome a essa literatura de apocalíptica, uma vez que venha do grego apokalypsis, que significa revelação.[30] Grande parte daquilo que é considerado literatura apocalíptica encontra-se fora dos escritos bíblicos. Em contrapartida, as partes que entraram nas Sagradas Escrituras apresentam-se com modificações acentuadas, e, assim, prometem o Espírito Santo nas situações críticas do tempo final e não apenas depois (cf. Mc 13,11).[31]

A literatura apocalíptica é feita através de pseudônimos, sendo uma proposta que se faz sobre a salvaguarda de um personagem célebre do passado, como, por exemplo, Henoc ou Moisés ou João (o apóstolo). A pretensão da literatura apocalíptica é a de dar uma revelação acerca de um futuro até a época em que vive o autor. Revelação esta atribuída ao antigo herói e que é mantida secreta até o momento oportuno. O meio que a revelação se vale é o da visão. As visões são, geralmente, aquilo que revela o futuro através de complicados simbolismos, que nem sempre são interpretados pelo próprio autor ou pelo próprio livro apocalíptico, mas que podem ser explicados quando a história contemporânea é suficientemente conhecida. A literatura apocalíptica trata do período final da história do mundo e de catástrofes do próprio mundo. Portanto, nesses casos, as forças do mal travam a luta suprema contra Deus e são finalmente derrotadas depois de um terrível e sangrento combate. Tais forças, que são descritas alegoricamente, são forças mundanas da própria história contemporânea do mundo, que, na literatura apocalíptica, dá-se sempre no último período que antecede ao fim.[32]

O combate entre as forças demonstra que a nação judaica, representada muitas vezes pela figura do líder messiânico, triunfa sobre o mundo. Muito do que é chamado de falso messianismo da época do Novo Testamento pode ser pesquisado nos livros apocalípticos. As visões acerca do paraíso para os bem-aventurados e da geena para os condenados são fartas e ricas.[33] As raízes da literatura apocalíptica estão no Antigo Testamento. A profecia estava totalmente arraigada na vida do povo de Israel, entretanto, deixou de existir enquanto forma tradicional já depois da queda de Jerusalém, juntamente com o fim da monarquia pelos idos dos anos 587 a.C. A profecia podia focalizar-se sobre a vida nacional do povo de Israel em todo o seu momento presente. O vidente começou, então, a olhar para o cumprimento da vontade de Deus e para a instauração de seu reino futuro. No Novo Testamento, no entanto, o único exemplo deste gênero é o livro do Apocalipse.

A importância, portanto, da literatura apocalíptica para a história bíblica da esperança é como que uma ambivalência. Há, de um lado, a fé bíblica que deve à literatura apocalíptica conteúdos de esperança que são decisivos. A fé no Deus que, ainda que se apresente em meio às catástrofes totais, pode abrir um futuro que se faz na esperança de ressurreição da morte. Nesse sentido, a ampliação da esperança, que até então era válida originalmente somente para Israel, faz-se para toda a humanidade, tornando-se um universalismo. De outro lado, há, também, as correções bíblicas que chamam a atenção para elementos na apocalíptica, tais como a tendência de calcular a data final, a negligência do tempo presente em face à tarefa de agir na história humana, bem como o mal entendido político, que se centraliza na opinião de que o reino de Deus poderia começar somente depois de eliminado o governo mal.[34]

 

 

1.4 FUNDAMENTOS DA ESPERANÇA ESCATOLÓGICA NO NOVO TESTAMENTO

 

1.4.1 PRESENTE E FUTURO NA ESCATOLOGIA NEOTESTAMENTÁRIA          

Passando à doutrina escatológica do Novo Testamento, é interessante notarmos os numerosos e amplos textos escatológicos e apocalípticos pelos quais dão-se a impressão que sejam profundamente influenciados pela doutrina do Antigo Testamento. Por isso, aparece, de forma não tão clara, a consciência de uma situação escatológica nova, que determina um novo ato interpretativo da escatologia antiga. A situação nova dessa economia neotestamentária se adverte imediatamente na consciência do valor que assume nela o presente como cumprimento da esperança para o qual foram anexados os últimos dias (cf. At 2,17; Hb 1,2), a última hora (cf. 1Jo 2,18) da história. [35]

Entretanto, somado a isso, nota-se a razão escatológica deste presente cumprimento: a pessoa de Cristo, o último Adão (cf. 1Cor 15,45) com quem se cumpre a obra de Deus que abarca a tudo e a todos como o Primeiro e o Último (cf. Ap 1,17), com o qual irrompe, através de sua cruz e ressurreição, o futuro de Deus no centro do tempo histórico, antecipando-lhe o fim. Jesus de Nazaré não anunciou um fim do tempo depois de si, mas antecipou em si , pela sua cruz e ressurreição, a era final da história. Também antecipou o acesso nosso aos bens messiânicos, à vida eterna já oferecida pelo Pai na pessoa do Filho. Portanto, esta relação das promessas, que se cumprem no presente, não anula, mas reforça a ulterior esperança ao eschaton definitivo da história. “Isso constitui [...] o paradoxo da tensão entre «presente-futuro» como nota específica da escatologia neotestamentaria”.[36] Isso constitui, ainda, o problema fundamental da escatologia cristã do Novo Testamento, que, em qualquer modo, reassume unitariamente todos os seus outros aspectos.

Há uma tensão entre presente e futuro que emerge no aproximar-se dos dados da teologia do Novo Testamento, começando já por aqueles sinóticos acerca da pregação de Jesus até sua proclamação inaugural como nos aparece na redação do Evangelho de Marcos (1,15) na qual a irrupção escatológica do Reino é afirmada já no agora do tempo cumprido e na afirmação da sua aproximação, que faz alusão a uma presença própria e dinâmica em vias de conclusão. Este aspecto característico da escatologia neotestamentária que ecoa em muitas parábolas dos evangelhos sobre o Reino (cf. Mc 4 e Mt 13) nas quais aparece como realidade em vista de um crescimento e em alguns dados importantes para o futuro, como o que encontramos no Evangelho de Marcos: “[...] aquele que, nesta geração adúltera e pecadora, se envergonhar de mim e de minhas palavras, também o Filho do Homem se envergonhará dele quando vier na glória do seu Pai com os santos anjos” (Mc 8,38). [37]

Sobre o juízo futuro do Filho do Homem, o qual porém já agora vai amadurecendo-se no tempo presente do ministério de Jesus, que impõe aos homens sua radical decisão quanto à postura que se deve assumir diante a ele. Se em alguns lugares dos Sinóticos se fala, no entanto, em termos de manifestação repentina do Filho do Homem, quase que anulando a importância da duração do presente, que se coloca já na salvação do homem, como caráter repentino de intensidade não tanto no sentido cronológico, mas no sentido qualitativo, como avivamento que retoma a postura própria dos homens frente ao evento mesmo. Para quem se encontra nessa postura espiritual, a vinda do Filho do Homem será repentina como aquela do ladrão à noite (cf. Mt 24,43-44). A discriminação escatológica futura é, antes de tudo, já determinada pela decisão escatológica do presente, nos confrontos do Cristo (cf. Mt 25). Tais dados evangélicos mostram claramente como a escatologia pertence ao futuro, assim como a proclamação de uma realidade tal, que já agora advém ao homem por causa do evento escatológico, na pregação do Reino e na sua definitiva instauração, na morte e ressurreição de Jesus, que determina uma mudança fundamental na própria história. [38]

 

1.4.2 DO PRESENTE ESCATOLÓGICO AO MOMENTO PARUSÍACO

Um dos problemas que domina o estudo da escatologia no Novo Testamento é o que lança seu olhar sobre o próprio relacionamento entre o presente da vida das comunidades cristãs e sua espera parusíaca. Deixando à parte as teses já superadas pelo escatologismo consequente que embate com quanto tudo que já se tenha dito acerca deste assunto, que se fecha se a esperança acerca da vinda do Senhor, tão viva nas primeiras comunidades cristãs, diante do fato de experiência do indefinido prolongar-se do transcorrer do tempo não seja em qualquer modo posta em crise, determinando, assim, aquilo que viria a ser o problema central escatológico do cristianismo primitivo.[39]

Há diversas afirmações da parte de Paulo que poderiam tentar, de algum modo, avaliar a ideia de que os primeiros cristãos esperavam uma parusia próxima, dentro de sua própria geração. Isso é uma questão de pertença aos problemas exegéticos do passado. Na verdade, as afirmações que expressam-se sobre o devir breve (cf. 1Cor 7,29) do tempo não aparecem tão intensas no sentido de uma iminência cronológica. Essas são, portanto, as determinações qualitativas do tempo cristão presente no Senhor que se faz próximo (cf. Fil 4,5), da qual essa aproximação é mais um conceito teológico que cronológico do presente cristão que nos consente afirmar que as comunidades pascais que vivem na alegria da experiência da plenitude do dom do Espírito Santo não padeceram nas crises por conta do retardamento da parusia, como se o tempo já inaugurado pela ressurreição e pelo pentecostes fosse ainda um tempo vazio da salvação que se coloca na espera do evento futuro da parusia. Se assim tivesse acontecido, qual seria a novidade definitiva introduzindo a vinda do Cristo e o cumprimento da hora pascal em concordância com o antigo eon da promessa? Diversamente a isso, ela, ao contrário, descreve a situação da igreja apostólica após a ressurreição, motivo da sua experiência sobreabundante dos dons do Espírito e da expansão missionária da pregação apostólica do Evangelho que tomava consciência da plenitude dos valores salvíficos através dos tempos. [40]

Era mesmo uma plenitude não ainda assimilada da totalidade da humanidade e da sua história que mantinha viva a espera pela consumação definitiva do plano de Deus (parusia). Ela estava tomada, assim, não pela preocupação de encontrar um preenchimento ao decurso do tempo, para completar o seu vazio, se bem pelo desejo de levar à sua total expansão a plenitude cristologico-soteriológica presente da história, preparando, assim, o momento final da parusia do Cristo. [41]

A demora não é pensada no Novo Testamento como enganação da esperança dos primeiros cristãos. Ela é como que uma tomada de consciência da exigência de crescimento nas suas dimensões universais do evento escatológico centralizado no tempo. Enquanto que na escatologia judaica a perspectiva apocalíptica do fim buscava percorrer a temporalidade da história, cuja finalidade dos tempos implicava no fim da própria história e a consumação do século presente, assinalando a passagem repentina (iminência apocalíptica) ao eon anterior, meta-histórico, a novidade da escatologia cristã está, ao contrário, na integração da eternidade e do eon futuro no tempo histórico, que se faz presente entre o tempo da espera e o fim da história, decorrendo em um tempo longo, no qual já agora se cumpre a própria salvação, através de Cristo, que reina vitorioso, que é o triunfo da vida sobre a morte, da verdade da fé que conforta o caminho dos crentes.[42] A relação entre o antigo e o novo eon redefine-se na proclamação que Jesus faz do Reino de Deus já próximo e sua história precedente no Antigo Testamento. No tempo de Jesus, podem-se distinguir algumas manifestações peculiares acerca da esperança do Reino de Deus vindouro. A primeira dessas manifestações se faz na esperança messiânico-política que tem, como ponto de partida, a ideia de que ao Reino de Deus contrapõe-se o domínio estrangeiro em Israel. Nesse caso, o sentido conotado ao Reino é o de libertação do jugo das tropas de ocupação estrangeira. Outra manifestação é a que diz respeito da esperança rabínica quanto ao Reino de Deus, que vê na culpa de Israel a razão pela qual o Reino de Deus, que era visível, acabou por afastar-se de Israel. Desse modo, agora, o Reino de Deus está oculto, porém, se a Lei fosse observada novamente, o Reino de Deus se manifestaria novamente, com a obediência dos israelitas à Lei. Há também a manifestação de uma esperança apocalíptica, que aposta no breve desaparecimento do eon antigo, para, então, começar um novo, bem diferente. [43]

No Novo Testamento, há um vocábulo significativo: o Reino de Deus. Esse conceito encontra-se, principalmente, nos Evangelhos Sinóticos, pois é narrado e proclamado por Jesus. Entretanto, a proclamação e o anúncio do Reino de Deus presentes nos Sinóticos não correspondem às manifestações acima verificadas. Na visão de Jesus, a incursão do Reino de Deus está ligada à sua pessoa, à sua atuação (cf. Lc 11,20). Porém, Jesus não quer ser o messias político no sentido esperado pelos israelitas. No intuito de excluir essa afirmação, ele parece evitar o uso do título de messias para si. [44]

“[...] Jesus enfatiza que o Reino de Deus é, antes de tudo, uma dádiva. ‘O tempo está cumprido, o reino de Deus está próximo. Convertei-vos e crede no evangelho’ (Mc 1,15)”. [45] Percebe-se que há, primeiramente, o uso de um indicativo (o tempo está; o reino de Deus está) e, logo em seguida, um imperativo (convertei-vos e crede). Essa estrutura de pregação está também presente nas diversas parábolas, como a do tesouro e da pérola (cf. Mt 13,44-46).  A alegria expressa pelo encontro do tesouro é a mesma daquele que encontra o reino dos céus. Tanto na parábola quanto para o que busca o reino dos céus há um esforço ético no começo, culminando em uma gratificação.

Contrariando o pensamento apocalíptico de que o Reino de Deus só viria depois que o velho eon estivesse totalmente desaparecido, Jesus anuncia que o Reino de Deus já se faz presente, já brotou, em meio ao tempo atual. [46] “A vinda do Reino de Deus não é observável. Não se poderá dizer: ‘Ei-lo aqui! Ei-lo ali’, pois eis que o Reino de Deus está no meio de vós” (Lc 17,20s). E em que consiste esse Reino de Deus anunciado por Jesus? Não em qualquer escrito de sua parte ou em seus dizeres, menos ainda qualquer definição a respeito desse tema. O fato decisivo e novo é que, para os discípulos de Jesus, o reino irrompe com o Mestre. Nesse sentido, há todo um sentido no se falar sobre ele, sobre seus atos e ditos, caso se queira dizer algo sobre o conteúdo do reino de Deus.

Jesus usa de uma simbologia toda clássica para o Reino de Deus. Em uma de suas parábolas ele cita o reino de Deus como um banquete festivo, o que se torna de fácil apercepção e compreensão para seus contemporâneos. Nesse sentido, o Reino de Deus é alegria, é comunhão, é partilha. [47]

Na fé no reino de Deus concentram-se as antigas promessas e esperanças de Israel, sobretudo a esperança da corporeidade e mundanidade da salvação; em parte as antigas promessas também são desenvolvidas, superadas e transformadas. Também se recorre a elementos essenciais da apocalíptica, sobretudo a esperança da ressurreição dos mortos e a tendência ao universalismo. A relação entre os dois éones, porém, é vista de modo diferente do que na apocalíptica. O reino de Deus não vem primeiro (como virada que a transforma) depois do tempo presente, mas já começa no tempo presente: como germe do novo no velho mundo. [48]

No entender escatológico, quando se fala de Reino de Deus, ele se faz de ambas perspectivas: ele já está presente e ainda não está, está atuante e ainda está por vir, ele já é experimentável e ainda é objeto da esperança. É nesta tensão que está a grandeza escatológica acerca do que se denomina sobre o Reino de Deus. Nisso se confirma a definição de escatologia cristã: não se deve restringir a eventos e condições que são, ainda, instâncias de futuro. A escatologia cristã fala de experiências que as pessoas crentes fizeram com Jesus Cristo, daquela realidade peculiar que é ainda atuante hoje, despertando, simultaneamente, a esperança de um futuro melhor e maior. [49]

 

1.4.3 O EVENTO DA PARUSIA

Em grego, parousia significa presença ou chegada. Esse termo é empregado, muitas vezes, em sentido técnico para designar uma visita cerimonial de um soberano a uma cidade ou país. No que diz respeito ao Novo Testamento, o termo é usado, muitas vezes, para designar a vinda escatológica de Jesus.[50] Os evangelhos sinóticos descrevem a parusia como a vinda do Filho do Homem na glória do Pai. Essa vinda é, muitas vezes narrada como uma vinda nas nuvens, em poder e glória. A parusia será precedida por sinais nos céus, a saída dos corpos celestiais de seus cursos. Há também uma imagem da vinda como sendo igual a um relâmpago. Nessa imagem, encontramos o significado refere-se à repentina e não anunciada aparição do Filho do Homem, mas, também sugere o esplendor de seu aparecimento. Ele virá da mesma forma de como subiu aos céus e, assim, porá seu trono nos céus. [51]

A temporalidade da parusia é indefinida. Portanto, os discípulos não terminarão a sua pregação a todas as cidades de Israel antes que o Filho do Homem venha. A presente geração passará antes que todas essas coisas aconteçam. Por outro lado, ninguém conhece a hora, nem mesmo o Filho do Homem, sendo esse um segredo que o Pai reservou para si. Nesse sentido, Jesus adverte aos discípulos para estarem prontos para a sua vinda a qualquer hora.[52]

Nessa direção, o discurso do Reino de Deus acaba se transformando em discurso do Reino de Cristo nos outros escritos neotestamentários, principalmente em Paulo e suas cartas. Há uma significativa mudança de perspectivas entre o Antigo e o Novo Testamento. A partir do Novo, Jesus é o anunciador do Reino de Deus, tornando-se o Cristo que passa a ser o centro da pregação das comunidades cristãs primitivas. Tanto uma quanto a outra se baseiam na convicção de que o Reino de Deus se tornou realidade em Jesus Cristo e por meio deste. Em consequência a isso, é possível, agora, enunciar que o Reino de Deus está enunciado em Jesus Cristo, da mesma forma que a consumação do Reino de Deus se torna a própria esperança na vinda de Cristo em sua glória, em sua parusia (cf. 1Ts 1,10; 1Cor 11,26.16,22; Ap 22,20). [53]

Enquanto expectativa, a parusia passa por uma mudança acentuada no Novo Testamento. “A primeira geração de cristãos viveu na expectativa iminente, isso é, na esperança do fim próximo, ainda durante seu tempo de vida”. [54] Nesse sentido, dá para entender a inquietação de Paulo, que expressa na carta aos Tessalonicenses as seguintes indagações: que será dos cristãos que já morreram? Acaso eles não têm parte na parusia? A esses questionamentos o próprio apóstolo responde:

Irmãos, não queremos que ignoreis o que se refere aos mortos, para não ficardes tristes como os outros que não têm esperança. Se cremos que Jesus morreu e ressuscitou, assim também os que morreram em Jesus, Deus há de levá-los em sua companhia. Por isso vos declaramos [...]: que os vivos, os que ainda estivermos aqui para a Vinda do Senhor, não passaremos à frente dos que morreram. (1Ts 4,13-15).

O fato de gerações inteiras estarem morrendo enquanto a história continuava, gerou um novo desafio para responder aos questionamentos como: acaso virá a parusia? Sobretudo Lucas é que escreve sobre a divisão da história. Nesta concepção, Cristo virá com certeza, mas não importa ficar olhando para o céu com o pensamento preso na parusia. É preciso esperar a vinda do Cristo na comunidade (cf. At 1,11-13). A vinda definitiva do Senhor há de se deslocar para o futuro mais distante, a um tempo indeterminado e intermediário, que é o tempo da Igreja. Esse tempo torna-se, então, o mais importante.[55]

Do mesmo modo, o juízo não acontece primeiro no dia derradeiro. Ele já acontece agora, na decisão feita pela fé em contrário à descrença (cf. Jo 3,18). No já agora é que se faz ouvir o chamado escatológico do Filho do Homem, que é quem chama os mortos à vida (cf. Jo 5,25). Tendo em vista, entretanto, “[...] que a comunidade [...] não quis deixar de anunciar a parusia como a consumação do mundo ainda por vir, introduziram-se [...] enunciados no tempo futuro na escatologia”.[56] Esta escatologia foi concebida originalmente e exclusivamente em tempo presente.

As características externas do evento parusíaco nos Evangelhos Sinóticos têm clara derivação dos eventos relacionados à vinda do Filho do Homem narrados pelo profeta Daniel. Para Daniel, a vinda do Filho do Homem é o último ato; é a história mundial, é a instauração do Reino de Deus e é a sujeição de todas as coisas e de todos os poderes hostis. Nesse sentido, a tradição cristã primitiva atribuiu essa imagem de Salvador e Juiz a Jesus.[57]

Na literatura paulina encontramos o conceito de parusia muito desenvolvido, no entanto, em consubstancialidade ao conceito de parusia que encontramos nos sinóticos. A parusia é o dia de nosso Senhor Jesus Cristo (cf. 1Cor 1,8). No entender de Paulo, em seus escritos ele expressa que Jesus é aquele que vem com os seus santos (cf. 1Ts 3,13) e sua vinda é precedida por um arcanjo e um toque de trombeta, vindo Jesus das nuvens (cf. 1Ts 4,13ss). Na carta aos Filipenses, Paulo narra a vinda de Jesus dos céus, com os anjos, em uma chama de fogo, com glória (cf. Fl 3,20; 2Ts 2,7ss). Sua vinda é precedida por sinais, através dos quais sua proximidade pode ser discernida (cf. 2Ts 2,1-12). Ele vem no tempo indicado, chamado de kairós (cf. 1Cor 4,5). Por tal sentido, a parusia é a hora da ressurreição dos mortos: os justos haverão de se unir com ele nas nuvens, ao passo que os vivos serão arrebatados com ele até a glória.Também as demais cartas católicas trabalham a ideia de que, na parusia, o céu e a terra serão consumidos pelo fogo (cf. 2Pd 3,10-12). A parusia é, assim, chamada de revelação de Jesus Cristo.[58]

Nos escritos joaninos, no entanto, encontramos um problema: a ausência da parusia. Em 1Jo 2,28 o termo usado é epiphaneia (manifestação), da qual os cristãos esperam, e o Cristo glorificado é representado dizendo que ele vem sem demora (cf. Ap 3,11; 22,20). Para Bultmann, a ressurreição de Jesus trabalhada em João é explicada, junto com sua parusia, através de uma fundição das duas realidades. A ressurreição e a parusia foram fundidas em único evento.[59]

O tempo da parusia como evento indefinido era forte na Igreja primitiva. Muitos chamam a Igreja primitiva de comunidade escatológica, pois vivia continuamente na comum esperança parusíaca. A Igreja não teve consciência de sua missão, até que foi obrigada a renunciar à esperança de que o fim estava próximo, o que tornou difícil a conciliação com a própria obra evangelizadora dos apóstolos.[60]

As mudanças quanto à expectativa da parusia mostram com clareza como que se dá a tradição da fé. Ela se dá em uma correlação existente entre os antigos elementos da própria tradição e as novas experiências. Essas novas experiências (a morte de um membro da comunidade, a história que continua através de gerações são alguns exemplos) modificam o modo original da forma como a fé concebia a parusia. Contudo, a fé na parusia também modifica a própria experiência histórica com situações intra-históricas, com encontro entre pessoas, com determinadas situações que já podem ser experimentadas. Entre elas estão os encontros com o Senhor, que vem ao nosso encontro, embora a consumação derradeira da história ainda esteja por vir. A tradição da esperança da parusia é um processo de aprendizagem que necessita tanto das novas experiências históricas quanto o decisivo impulso de decisão do início. É neste processo de aprendizagem que se torna possível a aprendizagem da tensão existente entre o já agora e o ainda por vir, que é uma característica da pregação neotestamentária acerca do Reino de Deus. Se a esperança da parusia não é, em princípio, outra coisa senão a esperança do próprio Reino de Deus, ela tem que valer naturalmente também para a parusia.[61]

Portanto, a fé na parusia acarreta em, pelo menos, duas características. A primeira versa-se sobre os termos futuros: virá o dia em que Cristo reinará; virá o mundo anunciado por ele mesmo; virá o mundo anunciado por ele e que, por ele mesmo, foi iniciado, que é o Reino de Deus. A segunda versa-se sobre o tempo presente: podemos e devemos contar diariamente com o encontro com Cristo, embora, aparentemente, o curso da história nos pareça intocado no que diz respeito ao desafio do amor concreto ao próximo, na reunião em seu nome e na celebração da Eucaristia. Tal encontro já nos é uma prefiguração do encontro com o mesmo Cristo, com o qual nos encontraremos definitivamente no fim. Essas duas características são inseparáveis, no entanto. Dessa maneira, a esperança da parusia não pode ser reduzida aos comprimentos fragmentários do nosso tempo, mas, também, não se dirige exclusivamente para um futuro infinito. Contrariamente a isso, ela faz do presente o começo da consumação esperada.[62]

1.4.4 PARUSIA E JUÍZO

A fé na parusia de Cristo está associada à fé no julgamento do mundo. Essa fé tem larga história que começa já no Antigo Testamento, apresentando-se como história de sofrimentos do povo de Israel, no confronto com o indescritível sofrimento das pessoas justas (por exemplo, Jó), na experiência de que não se pode fechar o balanço entre o modo como as pessoas vivem e o destino que elas têm e que fizeram com que sua fé na justiça de Deus, que é efetiva em todos os tempos, transformasse-se em esperança da futura intervenção divina na história, na esperança de que venha o dia de Javé (juízo divino).[63]

Deus virá e julgará os povos inimigos (cf. Is 13-17). Entretanto, ele também julgará a Israel e exigirá de Israel as prestações de conta do luxo, da injustiça e da idolatria de seu povo (cf. Is 2,6-4,1). Até mesmo para Israel a vinda do Senhor será terrível (cf. Am 5,16-20.6). O objetivo do juízo final não é a destruição ou a tortura sem fim. Pelo contrário, é a purificação e a salvação, que estabelecerá, no fim, uma nova relação do homem com Deus, gerando uma nova alegria de Deus em seu povo (cf. Ml 3,2-4).[64] Já no tempo dos grandes profetas, imaginava-se o juízo divino com termos intra-históricos. O juízo aconteceria em catástrofes históricas, através de derrotas políticas e militares, no caos, nos saques, nos regimes governamentais de caráter desumanos, no exílio. Todas essas coisas servem para a purificação. Através delas é que Deus pode dirigir para o bem a história do homem, dirigir a própria história de Israel em busca de uma renovação da própria vivência do povo israelita. Desse modo, então, a literatura apocalíptica apresenta como o dia de Javé, o dia derradeiro, que é o dia que haverá de pôr fim à história do presente eon.[65]

Nos Evangelhos de Mateus e de Lucas, vemos um João Batista pregador do arrependimento, inteiramente dominado por pensamentos acerca do juízo próximo. Na pregação de Jesus podemos também verificar palavras de ameaças e elas têm papel importantíssimo: as figuras do fogo, das trevas, do choro e ranger de dentes são exemplos bem concretos e convincentes dessa perspectiva. Concomitante a essas ameaças, encontramos também outros motivos para a conversão, tais como a exortação de não perder a festa, a não ficar de fora quando lá dentro se celebra o casamento (cf. Mt 25,1-13; Lc 14,16-24), o convite a uma vida maravilhosa, vida essa em que a pessoa possa se sentir como sendo filha ou filho de Deus, em semelhança ao Pai (cf. Mt 5,45.48). [66]

Com a aproximação do Reino de Deus, aproxima-se também o juízo. Tudo o que foi dito sobre o juízo, por Jesus, pode ser entendido como que um chamado de alerta, um despertar para a situação de decisão apresentada. Ao tomar ciência do juízo, ele também apresenta um caráter e um efeito libertador nos que dele tomam consciência. A ciência do juízo proporciona liberdade interior em relação aos poderosos deste mundo (cf. Mt 10,28), tornando as coisas relativas e proibindo, inclusive, qualquer condenação das pessoas entre si.[67] O elemento teológico neotestamentário do juízo se dá na afirmação de que o juiz vindouro é o próprio Jesus, e não outro. Nos Atos dos Apóstolos encontramos os seguintes dizeres: “[...] E ordenou-nos que proclamássemos ao Povo e déssemos testemunho de que ele é juiz dos vivos e dos mortos, como tal constituído por Deus” (At 10,42), que culmina em toda a pregação apostólica, conforme verificamos, por exemplo, em João: “[...] Porque o Pai a ninguém julga, mas confiou ao Filho todo julgamento [...] e lhe deu o poder de exercer o julgamento, porque é o Filho do Homem” (Jo 5, 22.27). Verificamos que há, nesses enunciados escatológicos, muito mais do que uma mera e simples informação sobre o que será o futuro. Trata-se, portanto, de dar uma direção à história dos homens e de uma perspectiva de esperança.[68] A história do mundo será decidida por Jesus. Esse fim será conforme o agrado dele e o futuro pertencerá ao mundo por ele enunciado, anunciado e praticado por ele. O futuro pertencerá ao Reino de Deus, como Jesus o compreendeu e o mostrou. Sua pregação e sua prática de vida são o critério decisivo para o juízo e, portanto, é também o critério decisivo acerca do comportamento ético, que significa vida bem-sucedida ou fracassada, conforme as escolhas próprias de cada um. Por Jesus ser o juiz, é dele toda e qualquer dignidade de fé presente nas eschata, e também é dele todo e qualquer comportamento cristão que se apresente numa perspectiva de esperança. O juiz é o mesmo que “[...] passou fazendo o bem e curando a todos os que estavam dominados pelo diabo” (At 10,38).

2 O HORIZONTE ESCATOLÓGICO NA TRADIÇÃO TEOLÓGICA CRISTÃ

 

2.1 O PERÍODO PATRÍSTICO

Se na concepção da teologia neotestamentária o evento cristológico da cruz e da irrupção da salvação escatológica no presente da era cristã antecipou e reforçou a esperança parusíaca, então, devemos nos perguntar se no pensamento da antiguidade cristã se tornara enfraquecida ou mantida por uma certeza de vivência em um tempo escatológico, rico das primícias do Espírito Santo e qual seria o estado de postura em busca da escatologia delineada em diversas perspectivas dentro do âmbito do pensamento pós-apostólico. É preciso notar, antes de tudo, que nos primeiros séculos, onde a fé era viva e sã, permaneceu clara na consciência dos crentes a persuasão originária de gozar já dos benefícios da era futura.[69]

O pensamento patrístico nos apresenta uma peculiar acentuação acerca do primeiro período pós-apostólico a partir da carta de Clemente. Nessa carta, o autor testemunha a tensão entre a inesperada e repentina parusia do Senhor e tende a colocar em evidência os bens que provêm da parusia, abrindo a via, na concepção de uma escatologia das últimas coisas (conforme a Teologia dos Novíssimos) com uma certa acentuação em uma condição retributiva e individual do homem no além-túmulo. Desse modo, Clemente, ao citar os apóstolos Pedro e Paulo, afirma que, no momento de seu trânsito, eles entraram no lugar santo, das coisas perfeitas e se aperfeiçoaram na perfeição do amor. Tais acenos a uma retribuição individual aparecem de forma não sistematizada em outros testemunhos dos primeiros séculos, como, por exemplo, em Inácio de Antioquia.[70]

No século III, a convicção que, além dos mártires, também os fiéis que viveram conforme a fé possuíam o destino à gloria. Isso encontramos em Cipriano e em outros autores de sua época. É preciso, no entanto, reconhecer que, entre o segundo e o terceiro séculos, tal convicção nem sempre esteve evidenciada ou presente. Alguns Padres, no entanto, referindo-se a uma retribuição diferente daquela dos justos e dos malvados, viram tal retribuição, portanto, inicial, colocada na espera da ressurreição final e deixando como que uma exceção feita à sorte dos mártires. Para Justino, por exemplo, as almas dos piedosos ficariam em um lugar melhor, enquanto que as almas dos ímpios ficariam em um lugar pior, na espera do momento do juízo. Na concepção de Irineu e de Tertuliano, os justos, que estavam à espera do juízo, receberiam, temporariamente, um refrigério somente. Essas posições, principalmente as de Irineu, demonstram ser uma posição anti-herética de sua parte, sobretudo contra os agnósticos, que tendiam a afirmar a importância da ressurreição contra a ideia de um destino da alma como também único destino do homem. Gregório Nazianzo, Gregório de Nissa, Cirilo de Alexandria apresentam, nos séculos posteriores, uma tendência de sublinhar uma imediata retribuição do homem após a morte.[71]

2.2 O PERÍODO MEDIEVAL

O aporte do período medieval ao desenvolvimento da esperança escatológica foi notável, especialmente no que diz respeito à espiritualidade dos mosteiros, que esteve permeada pelas fontes bíblicas e patrísticas, dominadas por sua dimensão escatológica e cristológica. Ligada à tradição, tal espiritualidade é também originalmente herdeira do passado, constituindo, no entanto, o prolongamento da cultura patrística em uma outra época e em uma outra civilização.[72]

Através dos valores da contemplação e da piedade, aos mistérios da vida de Jesus, a espiritualidade monástica evidencia não pouco as consumações escatológicas. A devoção aos mistérios da glória enquadra-se na forte tensão existente entre essa espiritualidade voltada ao céu e à Jerusalém futura, conduzindo o crente a alimentar o desejo de habitar as regiões celestiais. Podemos dizer que a espiritualidade monástica testemunha, no tempo da Igreja, este constante e contínuo olhar o céu. Florido nas mesmas épocas e nas mesmas regiões, o período escolástico parece-nos menos sensível à tensão escatológica do pensamento de fé, enquanto que nesse pensamento é pré-valorizado o interesse das duas temáticas e de suas buscas a uma criação e a uma redenção. O debate sobre as últimas coisas torna-se atestado só por um certo número de sentenças isoladas, que acabam por constituir os próprios elementos temáticos de fundo àquele esboço de um tratado escatológico que se envolverá através do curso do século XII.[73]

Também a redescoberta da filosofia de Aristóteles, na segunda metade do século XII, trouxe novidades até mesmo para a escatologia. Dessa maneira, a concepção de alma como corporis forma, presente no pensamento de Guilherme de Auxerre, que reduzia a alma e o corpo a princípios iguais e constituintes como que únicos no homem, encontrará no método especial aristotélico uma nova concepção, através das categorias de substância, acidentes, e outras mais, o que ameaçava atomizar e coisificar os conteúdos da esperança escatológica. Predomina, então, nesse contexto o ponto de vista individual, que está ligado a uma recuperação da filosofia aristotélica de uma composição unitária do homem.[74]

Em 1336, o papa Bento XII publica a bula Benedictus Deus (DZ 1000-1002), importante documento dogmático que se encontra contextualizado em discussões teológicas acerca do princípio aristotélico da unidade do homem. Nesse documento, percebemos alguns conceitos que se retém acerca da morte e da alma, que não poderiam ser objeto de juízo e de retribuição plena e imediata. Confrontando a doutrina da Benedictus Deus, verificamos o famigerado dualismo grego da divisão do homem em corpo e alma. Entretanto, abrindo-se a uma verdadeira herança da antiguidade, a Igreja antiga não poderia trair suas respostas ao resguardo daquelas questões. As concepções desenvolvidas na Igreja antiga sobre a sobrevivência do homem entre a morte e a ressurreição se fundamentam sobre as tradições judaicas acerca da existência do homem no Xeol, tradições que o Novo Testamento trouxe e centralizou na cristologia.[75]

Nenhuma outra concepção pode prevalecer frente aos dados históricos. Isso significa que a doutrina da imortalidade possui dois aspectos: uma que diz que ela é determinada pelo centro cristológico, que garante ao crente a indestrutibilidade da vida que se abre a Cristo na fé; outra que abaixa esta mesma afirmação teológica sob o conceito do Xeol como seu substrato antropológico e que repousa sobre uma concepção de fundo universal e humano. Essa afirmação teológica foi desenvolvida ulteriormente em concepções arcaicas, que não foram aprofundadas suficientemente, resguardando suas implicações antropológicas.[76]

 

2.3 A ESCATOLOGIA NA ÉPOCA CONTEMPORÂNEA

No período contemporâneo, a reflexão acerca da escatologia se beneficiou de uma renovação um tanto quanto interessante a um sentido de uma história polarizada em torno da ideia de sua unidade e a de uma ideia teleológica. Apesar dos esforços verificados em Pascal, Bossuet, Vico, para uma orientação racionalista desencadeada pelo Iluminismo, levava-se sempre mais em conta uma consciência imanentística e puramente mundana da história e a um processo progressivo de moralização da própria humanidade. Esse processo foi, posteriormente, reforçado pelo sistema idealista representado por diversos filósofos (entre eles Fichte, Schelling e Hegel) que se resolveu nas formas mais radicais da secularização, culminando no positivismo e no materialismo. Foi nesse período de revolução cultural que a escatologia voltou a um primeiro plano. Ao retornar a esse patamar, a escatologia adquiriu novo vigor, pelo menos no que diz respeito ao ponto de vista formal, e superou nitidamente os interesses decadentes de uma reflexão teológica que foi predominante na baixa escolástica. [77]

O mérito dessa renovação atribuiu-se, sobretudo, à restauração católica operada na época do chamado Romantismo. Essa restauração vê-se, principalmente, na Escola de Tübingen que, em contraposição aos sistemas idealistas, reafirmou a unidade histórica que a sua dinâmica escatológica expressava através da centralidade na história da salvação. Próximo à metade do século XIX, a retomada da neoescolástica denunciou um defeito de pensamento histórico e retornou às concepções setoriais da escatologia e à coisificação de seus conteúdos, qualificando-se como uma física das últimas coisas.[78] Há uma única exceção a esta concepção que versa acerca do quadro da teologia da encarnação e da graça, dando à escatologia um status de uma teologia da transfiguração. Essa mesma escatologia conecta-se em tudo e para tudo à cristologia encarnacionista. Ela é animada por um profundo conteúdo teológico e sua visão da escatologia permanece com menos sensibilidade a um sentido histórico-salvífico que, a cada modo sempre mais rica, torna-se possível e consolidada no próprio tempo.[79]

Já no século XX, o debate acerca da escatologia foi animado vivamente pela teologia protestante. Sem dúvida, a concepção escatológica do mundo protestante operou uma verdadeira e peculiar revolução na teologia do século em questão. Para muitos autores protestantes (como Barth, Bultmann, Moltmann, Pannenberg), a escatologia não é só a consequência do seu sistema de pensamento, mas constitui a alma própria de seu modo de proceder. As diversidades sobre temas particulares, nesse sentido, despendem de concepções diversas e de fundo.[80]

Na concepção escatológica protestante desempenham um papel essencial alguns lugares teológicos fundamentais, como a teoria da justificação, o relacionamento entre história e história salvífica, a possibilidade ao menos de diálogo entre a palavra de Deus e as culturas, sejam quais forem.[81]

Acerca do tema da escatologia intermediária, podemos verificar muitas divergências que trazem para a causa problemáticas tanto filosóficas quanto teológicas que são, por certo, notáveis. Os pontos de maior fricção concernem à antropologia, nesse caso acerca do problema da retribuição, da imortalidade da alma e da ressurreição dos corpos, e à hermenêutica bíblica e teológica, acerca da possibilidade de ao menos inculturar a linguagem bíblica e as verdades de fé.[82]

Já a teologia ortodoxa, contrário à protestante, não conheceu uma revolução escatológica que assinalasse toda a sua teologia. A doutrina escatológica da igreja ortodoxa não é muito elaborada. A escatologia figura, dentro da teologia ortodoxa, como que um capítulo da sua teologia dogmática, entretanto, não sob igual importância como trata a teologia católica romana. Portanto, fica difícil de se reconstruir uma doutrina escatologia das igrejas ortodoxas com seu estatuto e sua originalidade. [83]

Refletindo sobre os enunciados dialéticos que o Concílio Vaticano II apresenta sobre a interrelação e a diferença entre crescimento terreno e crescimento do reino de Deus e estimulado pelo diálogo marxista-cristão dos anos 60, Karl Rahner é um dos grandes questionadores do período contemporâneo que se inquieta com a questão do mundo ser o que o próprio ser humano cria, tão somente material de uma comprovação moral, que permanece na indiferença em si mesmo e que seria um mundo a ser deixado para trás quando vier definitivamente o reino de Deus. O futuro intramundano e o futuro absoluto não devem ser confundidos e nem poder ser separados. Por mais que o futuro intramundano venha a ser mais e mais o resultado do planejamento e do trabalho dos homens, ele permanece em grande parte obscuro e também aberto. Tal obscuridade e abertura que, em princípio, não podem ser resolvidas, Rahner vê como indício de que todos os futuros intramundanos apontam para um futuro absoluto. O futuro absoluto, por sua vez, já está incluído e é visado em todos os projetos para o futuro, sendo ele força motriz de todos os esforços intramundanos pelo futuro.[84]

Portanto, a teologia cristã apresenta-se em um duplo trabalho: lembrar simultaneamente o direcionamento para o futuro (que está aberto) e a esperança do futuro absoluto, que postula utopias que são históricas, intramundanas e concretas. Essas utopias criticam o presente, inquietam a história e impulsionam o ser humano à esperança, ou seja, a enxergar mais à frente. Conseguinte a tudo isso, a teologia tem que ser a guardiã da docta ignorantia futuri (sábia ignorância do futuro) em virtude de todas as utopias perfeccionistas de que nenhum objeto intramundano futuro deva ser absolutizado.[85]

A abordagem hermenêutica dá continuidade à abordagem sócio-analítica e abre para a discussão que será tomada na abordagem teórico-prática. Pensar a escatologia e seu resgate pede também refletir sobre as fundamentações no viés bíblico e do Magistério. Pensando na trajetória histórica da escatologia, verificamos a importância que ela tem dentro da teologia e da própria conduta humana, principalmente para os cristãos. Nesse sentido, é importante entender a problemática pela qual atravessou a história da escatologia nos tempos antigos, entendida como Teologia dos novíssimos até o que é pedido hoje: a renovação escatológica em busca de uma escatologia da esperança. Esse tema será ainda mais aprofundado em nosso próximo capítulo, que se reservará entender e buscar as fundamentações acerca das necessidades da renovação dos critérios escatológicos da teologia dos novíssimos e da fundamentação da escatologia da esperança, cuja centralidade se faz sob a categoria reino de Deus, e não nas perspectivas de céu, inferno e purgatório. Isso é de vital importância dentro da perspectiva teórico-prática para que, justamente, entendamos e também busquemos a renovação escatológica de nossas comunidades eclesiais que, em sua grande maioria, ainda se apegam e se pautam sob a perspectiva da teologia dos novíssimos, de caráter manualístico e não tanto de libertação e de realização do reino em nosso meio.



[1] Cf. SCHNEIDER, Theodor. Manual de Dogmática, p. 341, v. II.

[2] Cf. SCHNEIDER, Theodor. Manual de Dogmática, p. 342, v. II.

[3] Cf. Dicionário BÍBLICO. In: PROMESSA, p. 747.

[4] SCHNEIDER, Theodor. Manual de Dogmática, p. 342, v. II.

[5] Os fracassos vividos por Israel estão ligados, principalmente, às lutas tanto internas (com a divisão do Reino de Israel) quanto externas (os domínios dos povos estrangeiros), bem como os momentos de exílio e todos os suplícios  (derrotas militares). Cf. SCHNEIDER, Theodor. Manual de Dogmática, p. 342.

[6] Cf. SCHNEIDER, Theodor. Manual de Dogmática, p. 342, v. II.

[7] Cf. BORDONI, Marcello; CIOLA, Nicola. Gesù nostra speranza, p. 81.

[8] BORDONI, M.; CIOLA, N. Gesù, nostra speranza, p. 81: “[...] l’escatologia biblica deve anzitutto essere considerata nel quadro della concezione del tempo storico e del primato del futuro”.

[9] Cf. BORDONI, Marcello; CIOLA, Nicola. Gesù, nostra speranza, p. 81.

[10] Cf. MOLTMANN, Jürgen. A vinda de Deus, p. 279.

[11] Ibidem.

[12] Cf. SCHNEIDER, Theodor. Manual de Dogmática, p. 342, v. II.

[13] SCHNEIDER, Theodor. Manual de Dogmática, p. 343, v. II.

[14] Ibidem.

[15] Cf. SCHNEIDER, Theodor. Manual de Dogmática, p. 343, v. II.

[16] Cf. BORDONI, Marcello; CIOLA, Nicola. Gesù, nostra speranza, p. 82.

[17] Cf. RUIZ DE LA PEÑA, J. L. L’altra dimensione. Escatologia cristiana, p. 47. In: BORDONI, M.; CIOLA, N. Gesù, nostra speranza, p. 82.

[18] BORDONI, Marcello; CIOLA, Nicola. Gesù, nostra speranza, p. 82: “Tali eventi, per la loro particolare posizione nella attuazione del disegno divino sono spesso chiamati «kairoi» (momenti particolarmente opportuni) che sprimono l’assoluta libertà di JHWH, che adempiono le sue promesse e rimandano ad una verifica ulteriore futura”.

[19] Cf. RAD, G. von. Théologie de l’Ancien Testament, p. 93. In: BORDONI, M.; CIOLA, N. Gesù, nostra speranza, p. 83.

[20] Cf. BORDONI, Marcello; CIOLA, Nicola. Gesù, nostra speranza, p. 83.

[21] Ibidem, p. 84-85.

[22] Cf. Dicionário BÍBLICO. In: ISAÍAS, p. 453.

[23] Ibidem, p. 454.

[24] Ibidem.

[25] Cf. Dicionário BÍBLICO. In: ISAÍAS, p. 454.

[26] Diástasis (do grego διαστασεις) significa dimensão. Cf. Dicionário Gramatical, p. 809.

[27] Cf. BORDONI, Marcello; CIOLA, Nicola. Gesù, nostra speranza, p. 246-247.

[28] Cf. Dicionário BÍBLICO. In: ISAÍAS, p. 454.

[29]Cf. SCHNEIDER, Theodor. Manual de Dogmática, p. 343, v II.

[30] Ibidem, p. 344.

[31] A guisa de exemplo, o Evangelho de Marcos narra a expectativa do fim próximo como algo desarmado. “[...] em vez de fixar-se apocalipticamente no fim, o evangelista chama a atenção para aquilo que deve ser feito na história: anunciar o Evangelho entre todos os povos” (Mc 13,10).

[32] Cf. Dicionário BÍBLICO in: APOCALÍPTICA, Literatura, p. 57.

[33] Ibidem.

[34] Cf. SCHNEIDER, Theodor. Manual de Dogmática, p. 344, v. II.

[35] Cf. BORDONI, Marcello; CIOLA, Nicola. Gesù, nostra speranza, p. 89.

[36] BORDONI, Marcello; CIOLA, Nicola. Gesù, nostra speranza, p. 90: “Questo costituisce [...] il paradosso della tensione tra «presente-futuro» come nota specifica della escatologia neo-testamentaria”.

[37] Cf. BORDONI, Marcello; CIOLA, Nicola. Gesù, nostra speranza, p. 90.

[38] Cf. BORDONI, Marcello; CIOLA, Nicola. Gesù, nostra speranza, p. 91.

[39] Ibidem, p. 93-94.

[40] Cf. BORDONI, Marcello; CIOLA, Nicola. Gesù, nostra speranza, p. 94.

[41] BORDONI, Marcello; CIOLA, Nicola. Gesù, nostra speranza, p. 95: “Era proprio questa pienezza non ancora assimilata dalla totalità della umanità e della sua storia che manteneva viva l’attesa della consumazione definitiva del piano di Dio (parusia). Essa era presa, così, non dalla preocupazione di trovare un riempitivo allo scorrere del tempo, per colmare il suo vuoto, bensì dal desidero di portare alla sua totale espansione la pienezza cristologico-soteriologica presente della storia, preparando così il momento finale della parusia del Cristo”.

[42] Cf. BORDONI, Marcello; CIOLA, Nicola. Gesù, nostra speranza, p. 95.

[43] Cf. SCHNEIDER, Theodor. Manual de Dogmática, p. 344-345, v. II.

[44] Ibidem, p. 345.

[45] SCHNEIDER, Theodor. Manual de Dogmática, p. 345, v. II (grifo do autor).

[46] Cf. SCHNEIDER, Theodor. Manual de Dogmática, p. 345, v. II (grifo do autor).

[47] Cf. SCHNEIDER, Theodor. Manual de Dogmática, p. 346.

[48] SCHNEIDER, Theodor. Manual de Dogmática, p. 346, v. II (grifos nossos e do autor).

[49] Cf. SCHNEIDER, Theodor. Manual de Dogmática, p. 347, v. II.

[50] Cf. Dicionário BÍBLICO. In: PARUSIA, p. 694.

[51] Cf. Dicionário BÍBLICO. In: PARUSIA, p. 694.

[52] Ibidem.

[53] Cf. SCHNEIDER, Theodor. Manual de Dogmática, p. 347, v. II.

[54] SCHNEIDER, Theodor. Manual de Dogmática, p. 347, v. II.

[55] Cf. SCHNEIDER, Theodor. Manual de Dogmática, p. 347, v. II.

[56] SCHNEIDER, Theodor. Manual de Dogmática, p. 348, v. II.

[57] Cf. Dicionário BÍBLICO. In: PARUSIA, p. 694.

[58] Ibidem.

[59] Cf. Dicionário BÍBLICO. In: PARUSIA, p. 694.

[60] Ibidem, p. 695.

[61] Cf. SCHNEIDER, Theodor. Manual de Dogmática, p. 348, v. II.

[62] Cf. SCHNEIDER, Theodor. Manual de Dogmática, p. 348, v. II.

[63] Ibidem, p. 349.

[64] Ibidem.

[65] Ibidem.

[66] Cf. SCHNEIDER, Theodor. Manual de Dogmática, p. 349, v. II.

[67] Ibidem.

[68] Ibidem, p. 350.

[69] Cf. KELLY, J. N. La Speranza cristiana. In: BORDONI, Marcello; CIOLA, Nicola. Gesù, nostra speranza, p. 96.

[70] Cf. BORDONI, Marcello; CIOLA, Nicola. Gesù, nostra speranza, p. 97.

[71] Cf. BORDONI, Marcello; CIOLA, Nicola. Gesù, nostra speranza, p. 97.

[72] Cf. LECLERCQ, J. Cultura umanistica e desiderio di Dio. In: BORDONI, Marcello; CIOLA, Nicola. Gesù, nostra speranza, p. 101.

[73] Cf. BORDONI, Marcello; CIOLA, Nicola. Gesù, nostra speranza, p. 102.

[74] Cf. BORDONI, Marcello; CIOLA, Nicola. Gesù, nostra speranza, p. 102.

[75] Cf. RATZINGER, Joseph. Escatologia: morte e vita eterna, p. 159.

[76] Ibidem.

[77] Cf. BORDONI, Marcello; CIOLA, Nicola. Gesù, nostra speranza, p. 105.

[78] Cf. CONGAR, Yves. Fins dernières, p.463-484. In: BORDONI, Marcello; CIOLA, Nicola. Gesù nostra speranza, p. 106.

[79] Cf. BORDONI, Marcello; CIOLA, Nicola. Gesù, nostra speranza, p. 105.

[80] Ibidem, p. 107.

[81] BORDONI, Marcello; CIOLA, Nicola. Gesù, nostra speranza, p. 108: “Nella concezione escatologica protestante giocano um ruolo essenziale alcuni luoghi teologici fondamentali como la teoria della giustificazione, il rapporto tra storia e storia salvifica, la possibilità o meno di dialogo tra la parola di Dio e le culture, qualsiasi esse siano”.

[82] Cf. BORDONI, Marcello; CIOLA, Nicola. Gesù, nostra speranza, p. 107.

[83] Ibidem, p. 122.

[84] Cf. SCHNEIDER, Theodor. Manual de dogmática, p. 367, v. II.

[85] Cf. SCHNEIDER, Theodor. Manual de dogmática, p. 367, v. II.