Resumo: Este artigo traz a relação da mulher contemporânea com as simbologias religiosas antigas, a persona da bruxa e os efeitos dessa relação sobre a mulher. Na sociedade atual, a mulher, na busca de seus valores é regida por diversos papeis sociais tais como mãe, filha, esposa e profissional. Observam-se na natureza feminina, aspectos profundos da alma que são colocados à sombra. Para Jung, o uso das máscaras, através de experiências transpessoais, contribui com o processo de individuação. A integração da sombra coletiva feminina e sua iluminação individual atingida através da simbologia antiga da bruxa pode ser uma experiência curadora e libertadora do estigma feminino, dos mecanismos de culpa criados a partir da repressão da energia psíquica e promotora da experiência da individuação e do Si-mesmo.

Palavras-chave: bruxa, máscara, integração, Si-mesmo (ing. Self, al. Selbst), individuação.

Introdução

 

Ouçam as palavras das bruxas, e os segredos que ocultamos na noite, quando negra era a senda do nosso destino, que agora trazemos à luz. Misteriosos a água e o fogo, a terra e o ar que nos envolve; Por quintessência oculta nós conhecemos e ansiamos, silenciamos e ousamos o nascer e renascer de toda natureza... (Doreen Valiente, Witchcraft for Tomorrow)

O propósito desse artigo é devolver o arquétipo da bruxa ao seu lugar de direito à psique feminina. Do lugar de reconhecimento natural nos mistérios femininos, esse arquétipo foi destronado pelas reações primitivas de medo e preconceito das máscaras civilizatórias no momento de seu mergulho nas sombras coletivas. A Idade Média não pediu perdão por sua imolação e por ter devorado uma parte significativa da alma da mulher.

Ainda hoje a palavra bruxa vem carregada de preconceitos, medo e horror. Horror que as fogueiras e torturas a relegou. Medo, por ter sido impregnada de sombras e vícios, atirada profundamente no inconsciente coletivo, tamanha foi a histeria da época. A mulher não fez as pazes com a bruxa interior, o homem a teme e o resultado são de almas que se ausentam e se desintegram na busca desse mistério que não pode ser nomeado e recuperado sem conflito.

O autor Jeffrey Burton Russell explica a etimologia da palavra bruxa em seu livro “A História da Bruxaria”, conforme a seguir:

 

A origem recuada da palavra inglesa witch é a raiz indo-europeia: weik, a qual se relaciona com religião e magia. Weik produziu quatro famílias de derivados:

1. wih, que originou o inglês arcaico wigle: feitiçaria, e wiglera: feiticeiro. E através do francês arcaico e medieval, o inglês moderno guile. Também o inglês arcaico wil, o inglês medieval moderno wile.

2. O norueguês arcaico wihl: astúcia.

3. Wik: santo, sagrado, donde o alto-alemão antigo wihen e o alemão moderno weihen: consagrar, o alto-alemão medieval wich: santo; e o latim victima: sacrifício.

4. Wikk: magia, feitiçaria, donde o alemão medieval wikken: predizer, e o inglês arcaico wicca, wicce, bruxo/bruxa, e wiccian, fazer bruxaria, sortilégio, feitiço. De wicca deriva o inglês medieval witche e o moderno witch e a derivação deles é weik: dobrar, submeter, donde o inglês arcaico wican: dobrar, do qual deriva o inglês moderno weak: fraco, dócil, e witch-elm, olmo escocês, popularmente chamado olmo-de-bruxa.

Relacionados com wican estão o saxão antigo wikan, o alto-alemão clássico wichan e o norueguês arcaico vikja, significando dobrar ou desviar. (RUSSELL, 2007)

 

Nesse sentido, bruxa ou witch, por definição da etimologia da palavra, é aquela que submete, molda e gira as forças da natureza (interna e externa). Assim, podemos entender a bruxa como aquela que sabe moldar as energias em nível intrapsíquico. Reconhecidas também como parteiras, curandeiras, sacerdotisas e conhecedoras dos mistérios femininos que eram passados de mãe para filha, as bruxas compreendiam os ciclos da natureza por meio de seus próprios ciclos menstruais, que – na ausência de luz artificial – seguem o ritmo da lua e das marés.

O arquétipo do Xamã e os ritos de passagem

O arquétipo do Xamã, segundo Jung, era ligado à caça, aos animais, às magias de cura e à proteção. O Xamã era, dessa forma, divino e reunia em si mesmo a prece e o templo, a divindade e o adorador. Ademais, relacionava-se com a agricultura por meio da observação da migração dos animais e das estações do ano. Ele exercia um papel social que dependia do prestígio e do reconhecimento da sua relação com a tribo, preparando outro iniciado em seus mistérios para substituí-lo no futuro. Xamã era também um atributo que as bruxas poderiam carregar como função em sua tribo, quando seus mistérios ultrapassavam o âmbito feminino e ingressavam nos mistérios masculinos.

A bruxa, segundo Raven Grimassi (2001), ligava-se a agricultura nas fases lunares e era guardiã dos mistérios de nascimento, sexo e morte. O resultado de seu conhecimento lhe dava um lugar de poder em seu grupo social, mas a bruxa não era um apenas uma função exercida para a comunidade, era uma capacidade das mulheres que a sabedoria lhes outorgava. De acordo com Robert Fletcher (1896), as mulheres contribuíram com a fitoterapia catalogando e transmitindo conhecimento sobre ervas e suas funções. São, em muitas tribos, responsáveis por preparar as ervas alucinógenas usadas em beberagens ritualísticas para obtenção do estado de transe.

Ao longo de seu desenvolvimento mental, as mulheres mergulhavam num mundo intrapsíquico, resgatando imagens do inconsciente coletivo, cheio de simbolismo da memória ancestral, já que entravam frequentemente em transe. Isso ocorria, pois as tarefas destinadas a elas eram funções autônomas, guiadas pelo subconsciente, como cuidar dos bebês, amamentar, fiar e cozinhar, uma vez que possuíam corpos menos preparados para caçadas pelo desgaste do parto e do ciclo menstrual. Com o transe utilizavam-se da regressão de memória para comunicar-se com os mortos e descolocavam-se no tempo pela progressão de memória, antevendo os acontecimentos. Todos esses conhecimentos lhes permitiram o epíteto de senhora da natureza e da magia, reforçando a etimologia da palavra bruxa como sagrada e misteriosa. Neste uso de sua faculdade psíquica, a bruxa tem a função de intermediadora dos deuses e une a sua essência ao arquétipo da sacerdotisa.

Nas tribos primitivas, os ritos de iniciação não eram relegados a pessoas especiais, eles eram executados nos momentos de transição de cada componente da tribo e apenas se distinguiam de acordo com a função da pessoa no grupo. Esses ritos de passagem ainda se fazem presentes nas tribos indígenas e aborígenes e marca a mudança das seguintes fases: do infante ao caçador; da menina para a mulher – pela menarca –; da donzela à mãe – pela amenorreia –; da mãe à anciã – pela menopausa –; do guerreiro ao chefe da tribo; e do curandeiro ou curandeira ao xamã. A importância dos ritos de passagem ou iniciação aos mistérios, segundo Jung, é a função transcendente – que, de acordo com a psicologia analítica, promoveria maior integração da psique do indivíduo.

Os ritos de passagem, unindo aspectos coletivos e individuais em uma sociedade, marcam a história da humanidade. Evocam o simbolismo do sagrado, nas funções diárias exercidas pelo indivíduo dentro de seu grupo.  Agregando novos elementos na psique Os ritos de passagem são sustentadores da cultura de todos os povos, sejam antigos ou modernos.

Jung define o conceito de função transcendente da seguinte forma: "Por função transcendente não se deve entender algo de misterioso e por assim dizer suprassensível ou metafísico, mas uma função que por sua natureza pode-se comparar com uma função matemática de igual denominação, e é uma função de números reais e imaginários. A função psicológica e transcendente resulta da união dos conteúdos conscientes e inconscientes" (JUNG, 1981).

A mitologia e o arquétipo das Bruxas

 

Não resta dúvida que nas épocas mais remotas da história do homem a força mágica e misteriosa da fêmea era tão maravilhosa quanto o próprio universo; e isso atribuiu a mulher um poder prodigioso, poder esse que tem sido uma das principais preocupações da parte masculina dos povos – como quebrá-lo, dominá-lo e usá-lo em seus próprios fins. (MISTÉRIOS DO DESCONHECIDO, 1995, p.11)

A mulher era reconhecida por seus mistérios naturais como deusa. Assim como as deusas eram influenciadas não por aspectos da natureza em si, mas em comparação com a natureza da mulher. E a própria Terra foi também comparada aos ciclos femininos. Na transição do homo neanderthalensis ao homo sapiens, a mulher foi honrada e reverenciada com temor e curiosidade. Desde o desenvolvimento da psique na era paleolítica, quase todas as esculturas eram de corpos femininos e, apesar de também haver referência arqueológica de homens usando máscaras nas pinturas rupestres, estes não foram encontrados em esculturas. As esculturas chamadas de Vênus de Willendorf exaltam os atributos da mulher. Elas são geralmente nuas, com quadris, seios e triangulo púbico de tamanho exagerado e às vezes mostram o ventre grávido. Campbell (1959) salienta que foram esculpidas em lugares semelhantes a altares, sem pés sugerindo que poderiam ser postas em posição de adoração sobre o solo. Entre 4500 a 3500 a.C., as estatuetas da Vênus foram encontradas em todo continente europeu, em sua maioria, em altares para uso doméstico (MISTÉRIOS DO DESCONHECIDO, 1995).

A arte sacra antiga continha, entre outras figuras, imagens de deusas ofertando os seios, apontando os genitais e parindo de cócoras. Ressalta-se que nos tempos primitivos não havia ligação entre o ato sexual e a chegada dos bebês, tudo era um mistério insondável, dando origem a diversos mitos. Algumas deusas portavam serpentes e animais ferozes, sendo encontradas, sob a forma de estatuetas, em terrenos agrícolas e túmulos. Em diversas mitologias as deusas são associadas às bruxas – a exemplo do mito hebraico de Lilith, Ísis, Circe, Hécate, Medéia, das Ninfas de Dionísio, Inanna, da Feyja germânica e tantas outras que detinham o poder da magia.  Estas deusas sempre foram associadas a atributos femininos, tais como: uso de caldeirão; de poções de cura; de poções de envenenamento para armas e flechas; de beberagens psíquicas alucinógenas. Representavam, igualmente, em seus arquétipos, os mistérios da sedução e do sexo, da tecelagem, do plantio, dos ritos de passagem e da sabedoria. Revelavam, também, poderes maternais, ocultos, estelares e celestiais, assim como mortais, sombrios e ctônicos.  A bruxa reúne em si aspectos numinosos da alma: é sombria e iluminada, guardiã de mistérios, ponte entre o inconsciente e o consciente e tem como principal função psicanalítica marcar a passagem do tempo pela psique feminina, fixando os ritos de passagem.

 

Considerações Finais

 

Se o inconsciente fosse apenas nefasto, seria simples: evitaríamos o mal e faríamos o bem. Mas o que é bom, o que é mau? O inconsciente não é apenas pernicioso, é também fonte de bens supremos. Não é apenas mau, é bom igualmente. Não é só animal, semi-humano, semidiabólico: é, outrossim, sobre-humano, espiritual e divino. (C. G. Jung)

 

O arquétipo da bruxa devolve a psique feminina aspectos transcendentes, no que tange à divindade, e imanentes – como regente dos mistérios do corpo, da mente e do espírito da mulher. Estes aspectos são representados da seguinte forma: com o uso da magia como capacidade de exercer influencia em si mesma e nos outros; resgate de poder pessoal através do parto e do sexo; e vivência dos mistérios femininos pelos ciclos menstruais que marcam as iniciações de reintegração da alma. É a bruxa a regente das forças catalizadoras de mudanças da natureza feminina (interna e externa). A capacidade sensitiva e simbiótica da mulher é melhor compreendida por meio deste arquétipo, uma vez que é rodeada de mistérios e tal arquétipo reintroduz o psiquismo na alma. Por meio da bruxa, a mulher abraça melhor seus conteúdos psíquicos nas sombras, aceita sua condição humana dual e se une ao Self pela identificação com a divindade interior.

Os conteúdos psíquicos são tão fortes que hoje, no mundo moderno, as bruxas são retratadas como a velha com caldeirão de possibilidades boas e ruins que entrega para beber como experiência de vida. Também são as belas feiticeiras que seduzem ou resolvem os problemas de todos e são as parteiras que trazem a vida ao mundo. São, do mesmo modo, conhecidas como carpideiras – as que velam a morte –, estão nas estórias infantis como a madrasta que transfere a condição de filha-esposa para mulher. Nesse sentido, ela é retratada e não foi esquecida.

A bruxa foi combatida na Idade das Trevas, reprimida na era moderna, mas não perdeu em poder, a mulher foi quem perdeu seu poder de ser unificada por meio dela. Incorporar e aceitar a bruxa na psique feminina é fazer as pazes com aspectos sombrios da alma feminina e resgatar do inconsciente o poder da mulher de se integrar e individuar. Ela exerce, como abordagem junguiana, a função da máscara que permite o contato com o transcendente poder de natureza feminina coletiva. Pois abre espaço para experiências de participação mística com o arquétipo do divino feminino, abstendo a mulher de seu papel comum da sociedade e elevando-a a um relacionamento direto com a divindade, que a leva à totalidade, liberando e organizando a energia psíquica criativa.

A totalidade é a realização do Si-mesmo (Self) e Jung explica que a imagem de Deus coincide com o arquétipo do Si-mesmo. É com a obediência ao Self que se realiza uma integração de todas as potencialidades psíquicas, surgindo uma personalidade superior. A alma feminina, se diferenciando através da experiência individual, percorre o caminho psíquico da mulher até a bruxa e desta até a deusa. Desta forma, pode a alma reatualizar os conteúdos psíquicos de forma harmoniosa e criativa, conduzindo o êxtase místico provocado pelo empoderamento do Si-mesmo para as relações cotidianas e as tarefas habituais, sem perder a transcendência de seu significado.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Referências Bibliográficas

CAMPBELL, Joseph. The Masks of God: Primitive Mythology. New York: The Viking Press, 1959.

MISTÉRIOS DO DESCONHECIDO. Bruxas e Bruxarias. Editora Abril, 1995.

FLETCHER, Robert M.D., The Witches Pharmacopoeia. Baltimore: Friedenwald, 1896.

GRIMASSI, Raven. Os Mistérios Wiccanos. 2ª Ed, São Paulo: Editora Gaia, 2001.

JUNG, G. Carl. – Dinâmica do Inconsciente. Vol. VIII. Petrópolis, Ed. Vozes, 1981 

MAIDANA, F. Dionísio. Apostila de psicanálise com abordagem Junguiana, Módulo 7. ANPC.

RUSSELL, Jeffrey Burton. A História da Bruxaria. Editora Aleph, 2007.

VALIENTE, Doreen. The Rebirth of Witchcraft. London. Robert Hale, 1989.

VALIENTE, Doreen. Witchcraft for Tomorrow. London: Robert Hale, 1978.