SER OU PARECER SER? EIS A QUESTÃO!

Autor: Ruy Matos, Psicólogo

De volta ao Self

“O self é a fronteira de contato (do organismo com o ambiente) em funcionamento; sua função é formar figuras e fundos”. (Perls, F. 1997:49). Neste processo relacional flexível com o seu ambiente, o “self” define a identidade essencial e potencial, do ser humano.

Por outro lado, “a personalidade é o sistema de atitudes adotadas nas relações interpessoais”. (Perls, F. 1997:187)

Em outras palavras, a personalidade é formada pelo conjunto dinâmico de “personas” que o ser humano usa para construir sua identidade social ao comunicar-se e ao interagir com os demais seres humanos, criando culturas específicas. (Persona é a denominação das máscaras que os atores gregos usavam para representar os personagens no teatro de arena).

As pessoas vivem em um mundo psicológico e social cada vez mais automatizado, constituído por “personas”, que vestem e desvestem, como se estivessem vivenciando um grande e cotidiano drama ou comédia coletiva, ora como protagonistas, ora como coadjuvantes.

E nesta representação de papéis, as pessoas se mostram em diversas facetas, às vezes contraditórias, diante de seus interlocutores. E neste afã representativo, se afastam cada vez mais de suas essências pessoais, de seus “selfes”. Em consequência disso, muitos se perdem na miríade de personagens que criaram para si, tentando sobreviver na torre de Babel em que suas vidas se transformaram.

Neste processo interativo, tentando ser aceitos e admirados, muitos se desgarram de seus “selfes” e, entrando no modo neurótico, que é automático e inconsciente, passam a sofrer de transtornos emocionais, tais como depressão, ansiedade, pânico, entre tantos outros.

Por exemplo, um artista ou um esportista, ao fomentar e amplificar sua persona, buscando alcançar a fama, vai se tornando cada vez mais prisioneiro e dependente de seus fãs, que o consomem como se fosse um objeto de prazer.

Porém, em menor escala, muitas pessoas também criam imagens públicas que serão usadas para “se venderem” e, com isto, se sentirem mais aceitas pelos outros, tanto nas relações presenciais quanto, cada vez mais, nas relações virtuais construídas nas diversas redes sociais da internet.

Neste jogo, passam a se relacionar não mais com a sua pessoa real, isto é, com seu “self”, mas com as inúmeras personas que, como máscaras, vão sendo afiveladas aos seus rostos e aos seus corpos, que também se transformam e se adaptam, conforme as circunstâncias e os circundantes.

As pessoas são treinadas, desde a infância, para alcançar êxito e ser aceitas na sociedade, por meio de diversos papéis que irão desempenhar ao longo de suas vidas: o papel de cônjuge, de pai ou mãe, o papel profissional, os papéis sociais, que se desmembram em diversas nuances, tais como o de colega, amigo, companheiro de partido, irmão fiel de uma seita ou religião, torcedor de um time, grupo de fãs de determinados artistas ou esportistas etc.

Com o tempo e a repetição do desempenho dos papéis, muitas pessoas vão se transformando neles, tornando cada vez mais difícil desafivelar e retirar a máscara do rosto. Até que chega um dia em que o uso da máscara deforma o rosto, como uma grotesca tatuagem.

Neste processo de socialização, instrumentalização e reificação das pessoas, que se transformam em funcionárias, trabalhadoras, gestoras, cientistas, professoras, psicólogas, médicas, generais, soldados e tantos outras profissões e funções, o “self” vai se atrofiando gradativamente, dando lugar a pessoas institucionalizadas, mantidas prisioneiras de roteiros e de processos repetitivos e automatizados.

Em consequência deste condicionamento disciplinador, que busca modelar as pessoas enquanto artefatos produtivos, sociáveis e consumíveis, a saúde emocional e física pode ser seriamente abalada.

O sistema mente/corpo entra em disfunção, que se manifesta de diversas formas, tais como depressão, síndrome de pânico, ansiedade aguda, irritabilidade, angústia, além de diversos vícios, tais como alcoolismo, tabagismo, consumismo etc.

O filme “Um sonho de liberdade” retrata este problema, mostrando um detento que se recusa a ser libertado, pois sente-se incapaz de voltar a viver “lá fora”. Como ele é obrigado a ser livre, pois já cumpriu sua pena, ao sair ele comete suicídio algumas semanas depois.

Em menor grau, este comportamento desajustado é observado após a aposentadoria de funcionários que trabalharam mais de trinta anos em uma instituição. Muitos deles se sentem como se tivessem perdido o sobrenome que usavam em seu papel profissional, pois eram conhecidos como “o João do Banco” ou “a Maria do INSS”. Ao sair, estas pessoas se sentem perdidas, pois não podem mais usar suas antigas identidades funcionais.

Este processo de desconexão dos papéis sociais e profissionais, pode fazer o corpo expressar seu sofrimento e dor por meio de diversos sintomas, que é a linguagem silenciosa que sabe usar. As dores se tornam mais frequentes: na cabeça, no pescoço, nas costas, nos pés, no estômago. As tonturas e enjoos começam a incomodar, a pressão arterial fica descompensada, os pulmões começam a falhar, com suas constantes bronquites, a gordura abdominal vai se acumulando, resultando em obesidade.

Todos estes desequilíbrios fisiológicos podem até mesmo resultar em doenças mais sérias, como o AVC, o infarto, a úlcera e o câncer. 

Consideramos que os distúrbios emocionais ou “mentais”, são rupturas ou desconexões que ocorrem nas fronteiras de contato que a pessoa estabelece com o ambiente, e que se manifestam em nível inconsciente e automático em forma de atitudes, comportamentos e sentimentos, disparados e mantidos por programações ou rotinas cerebrais automatizadas.

Deste modo, quando a pessoa aprende a manter a “awareness”, (estado de consciência ou atenção plena),  em suas fronteiras de contato com o ambiente, reavivando-as e fortalecendo-as, tais distúrbios emocionais são descontinuados.

Portanto, é tempo de acordar e de fortalecer o “self”, como forma de desmascarar a pessoa, de desencantá-la, isto é, de desfazer o “encantamento” que tornou sua vida centrada na produção e no consumo, na fama e no fanatismo religioso, político ou artístico.

Assim, é preciso exercitar diariamente a awareness do aqui e agora, focando este estado de despertar na observação dos pensamentos, das emoções, do corpo e do ambiente.

Estar consciente é manter-se são. Ao entrar no estado de awareness, de despertar, de alerta psicológico, desliga-se o piloto automático que aciona os comportamentos neuróticos e psicóticos.