IDENTIDADE OU IDENTIDADES PROFISSIONAIS?

REPENSANDO CONCEITOS NA CONTEMPORANEIDADE

 

 Ana Carolina Santos de Lima*

Mário Sergio Machado Souza**

                              Universidade Federal da Bahia, Salvador, Brasil

 

 

RESUMO: As mudanças da sociedade contemporânea tem gerado muitas discussões entre os mais variados meios no campo das ciências humanas e suas possíveis implicações para os sujeitos e suas relações sociais. Buscamos neste Trabalho estudar os diferentes conceitos de identidade dentro do campo do conhecimento da sociologia e psicologia, bem como os conceitos de identidade profissional e a crise desta identidade no contexto atual. Objetivamos compreender também, a relação entre identidade e cultura e seus reflexos na construção da identidade profissional dos sujeitos e como essa relação contribuiu também para a construção da autonomia, tendo em vista as condições de imprevistos vividas pelos sujeitos em seus ambientes de trabalho.

Fizemos inicialmente um apanhado sobre as mudanças na sociedade e seus impactos no mundo do trabalho tendo como aporte teórico as idéias de Giddens, Offe e Frigotto. Para o estudo de cultura nos baseamos nas idéias de Laraia e Geertez e sobre cultura profissional compartilhamos das reflexões de Telmo Caria ao afirmar que a cultura profissional esta relacionada a uma construção social, a identidades coletivas e estas com a reflexividade. Além disso, procuramos estabelecer uma relação entre os saberes e as identidades profissionais e em seguida as  nossas considerações finais, analisando a construção das identidades em meio a esta teia de complexidades, que é a contemporaneidade.

PALAVRAS-CHAVE: Trabalho; identidade; cultura; contemporaneidade.

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  As mudanças emergidas na sociedade nas últimas décadas do século XX têm gerado muitos debates a respeito de suas possíveis implicações no mundo produtivo e até mesmo nas relações sociais contemporâneas. Discute-se em que proporção essas mudanças na sociedade

atual se reconfiguram como um novo paradigma social, denominado por alguns de sociedade “pós-moderna”, por outros de sociedade “do conhecimento”, ou até mesmo de sociedade “da informação”.   

    A contemporaneidade trouxe consigo transformações econômicas, sociais, tecnológicas e geopolíticas em proporção mundial, que modificam as relações interpessoais bem como o modo de se portar dos atores sociais. Como exemplo concreto dessas transformações podemos citar a “mundialização da economia”, o ritmo frenético do crescimento científico-tecnológico e a intensa competição intercapitalista. Essas transformações produzem um contexto marcado por características como transitoriedade, efemeridade, descontinuidade e fluidez, que afetam algumas categorias analíticas chaves de compreensão da realidade social, dentre as quais trabalho, identidade e cultura.

Diante das transformações do mundo moderno, a condição do trabalho como categoria central de análise da vida social vem sendo cada vez mais questionada. Compartilhamos dos questionamentos de Offe (1989) sobre a descentralização do trabalho com relação a outras esferas da vida, ou seja, neste sentido o trabalho por si só não dá conta de explicar e interpretar os fenômenos sociais.

Como já dissemos anteriormente, o mundo moderno é marcado por momentos transitórios, efêmeros, descontinuistas e fluídos, que afetam inevitavelmente o mundo produtivo. Segundo Giddens (1991), “os modos de vida produzidos pela modernidade nos desvencilharam de todos os tipos tradicionais de ordem social, de uma maneira que não tem precedentes” (p.14). Neste mesmo trabalho, Giddens fala das descontinuidades que separam as instituições sociais modernas das ordens sociais tradicionais. Dentre as características envolvidas na identificação das descontinuidades está o ritmo de mudança. As mudanças acontecem cada vez mais rápidas no mundo do trabalho, principalmente devido ao considerável avanço tecnológico das últimas décadas, que obrigam o profissional a atualizar constantemente seus conhecimentos formais, a luz das exigências embutidas no modo de produção capitalista. Sobre essas exigências Frigotto (1999) argumenta que:

As políticas neoliberais e a hegemonia do capital especulativo de um lado e, de outro, o desenvolvimento produtivo centrado sobre a hipertrofia do capital morto – isto é – ciência e tecnologia, informação como forças de produção, acabam desenhando uma realidade onde encontramos: desestabilização dos trabalhadores estáveis, instalação da precariedade do emprego (FRIGOTTO, 1999, p.10).

A desestabilização dos trabalhadores citada por Frigotto dá-se pela intensidade na exploração e pela permanente ameaça de perda do emprego. A garantia do pleno emprego estabelecida nos “anos dourados do capitalismo” já não predomina mais na atualidade já que o conceito de empregabilidade, o qual responsabiliza o trabalhador pela garantia de seu próprio emprego está cada vez mais presente.  Por sua vez, a terceirização, a flexibilização do trabalho bem como o trabalho temporário, são formas de precarização do emprego acentuadas pelas mudanças no modo de produção que influenciam na garantia dos direitos trabalhistas já que com esta precarização, os empregados muitas vezes por falta de opção, são “obrigados” a aceitar empregos com essas características. A alocação desses trabalhadores nos contextos  precários deve-se a grande demanda de mão de obra, que por sua vez ocasiona a escassez dos postos de trabalhos socialmente protegidos.

Em conseqüência dos fatores supracitados podemos destacar a exigência do trabalhador polivalente. A polivalência é uma das características principais (se não a principal) do modelo econômico vigente, o qual se pauta na ideia de aquisição de competências e habilidades como forma de inserção no mercado de trabalho. O trabalhador, neste sentido, tornar-se cada vez mais multifuncional, dinâmico e aberto as constantes mudanças do cenário sócio-econômico.

Tendo em vista todas essas discussões que estão permeando o mundo do trabalho, e mais especificamente aquelas que estão relacionadas às inúmeras competências e funções bem como a adaptação aos diferentes ambientes e culturas de trabalho, ocasionada pela intensa rotatividade mercadológica, surge, para nós, a emergência de fazer a seguinte reflexão: poderíamos falar apenas em identidade profissional em meio a essa gama de aspectos a serem apreendidos pelos sujeitos neste processo, ou poderíamos falar em identidades profissionais, já que é cada vez mais escasso começar e terminar sua trajetória profissional em um mesmo lugar e desempenhando a mesma função? Discutimos essa problemática nos próximos momentos de nosso trabalho, onde tratamos mais de perto da identidade e de todas as questões que a permeiam.

 O conceito de identidade sobre múltiplos olhares

    Para compreendermos o conceito de identidade precisamos relacionar essa categoria a vários significados, uma vez que esse conceito não se esgota apenas em uma perspectiva, mas está relacionado e definido sobre a ótica de vários campos do conhecimento. Primeiramente buscamos o sentido dessa palavra no dicionário Aurélio.

   Identidade de acordo com o dicionário Aurélio (2006) significa qualidade de idêntico; os caracteres próprios e exclusivo de uma pessoa: nome, idade, estado, profissão, sexo etc. Pode-se perceber que identidade nesse contexto tem um sentido amplo, diz respeito às qualificações pessoais de gênero, naturalidade e a profissão que o sujeito exerce na sociedade e que definem sua condição enquanto ser social. Com isso entendemos que a identidade expressa à singularidade da pessoa, o papel que essa pessoa exerce no contexto em que vive e no modo como se relaciona com o outro.

Vale ressaltar que a noção de identidade não é nova e já era trabalhada por, Erikson (1976), Oliveira (1976), entre outros. Segundo Oliveira (1963), “a noção de identidade contém duas dimensões: a pessoal (individual) e a social (ou coletiva)” (p. 4). Porém, a identidade social não se descarta da identidade pessoal, pois esta também de algum modo é um reflexo daquela.

Enquanto membro da sociedade, o sujeito, ao mesmo tempo, exterioriza seu modo de ser no mundo e o interioriza, por meio de processos de socialização primária e secundária Berger & Luckmann (apud COUTINHO; KRAWULSKI; SOARES, 2007, p. 30). Outros campos do conhecimento como a Psicologia Social utilizam o termo identidade social, que  de acordo com Jacques (apud COUTINHO; KRAWULSKI; SOARES, 2007, p. 30) referir-se como à pertença a grupos sociais e ao lugar ocupado por estes na constituição identitária de cada um. Na Sociologia Sainsaulieu (apud COUTINHO; KRAWULSKI; SOARES, 2007, p. 31) busca compreender a interdependência entre as identidades individuais que emergem nas relações interpessoais, e as coletivas, derivadas das posições sociais ocupadas por individuas que tem em comum a mesma lógica. Desta forma compreende a identidade como “... um tipo de sequência cultural da ação, a toda uma interiorização da experiência social, sob forma de modelos tornados inconscientes e que governam as condutas e jogos relacionais pelo viés de representações eles induzem” (p. 30). 

        O fato é que essa discussão vem se intensificando e causando uma possível desconstrução da ideia de uma identidade única e integral devido às inúmeras transformações sociais, políticas, econômicas, entre outras, ocorridas no cenário contemporâneo. Essas mudanças na estrutura social estão fragmentando as relações sócio-econômico-culturais e dando nova ênfase as noções de identidade e cultura. Autores como Giddens (1991) e Hall (2006) já trabalham com esta perspectiva “mutável” da identidade. Para Hall (2006), “o sujeito, previamente vivido como tendo uma identidade unificada e estável, está se tornando fragmentado; composto não de uma única, mas de várias identidades algumas vezes contraditórias ou não-resolvidas” (p.12).

A construção da identidade é também influenciada pela linguagem, esta que fornece os conceitos e as formas de organização do real e estabelece a mediação entre o sujeito e o objeto do conhecimento. Dessa forma, compreende-se que a interação e a linguagem são também elementos decisivos para o desenvolvimento e construção do conhecimento profissional, conseqüentemente da identidade profissional. A linguagem corresponde ao sistema simbólico dos grupos humanos, representando um salto qualitativo na evolução da espécie. É por meio da linguagem que há a transmissão e mobilização de conhecimento e ela, na espécie humana, é um dos fatores que diferencia o homem do animal inferior. Nesse sentido tudo que envolve também o sujeito fora do seu contexto de trabalho está relacionado à construção da identidade profissional.  

As identidades profissionais são categorias construídas ao longo da vida a partir das interações, das experiências e da maneira como cada sujeito vai interpretando o que lhe vai acontecendo, essa construção se estabelece a partir de um percurso de uma trajetória que está para além dos limites do trabalho. Essa condição explica o fato de que algumas pessoas dentro de uma mesma empresa constroem identidades diferentes.

[...] Nessa interação mediada por uma pluralidade de linguagens – verbais magnéticas, míticas, rituais, mímicas, gráficas, musicais, plásticas... - e de referenciais de leitura de mundo – o conhecimento sistematizado, o saber popular, o senso comum... -os sujeitos intersubjetivamente, constrói, reconstrói a si mesmo, o conhecimento produzido e que produzem, as suas relações entre si e com a realidade, assim como pela ação (tanto na dimensão do sujeito individual quanto social) transformam essa realidade num processo multiplamente cíclico que contém em si próprio tanto a face da continuidade como a da construção do novo (BURNHAM, 1998, p. 37).

Quando dizemos que as identidades profissionais são categorias construídas ao longo da vida, das experiências, é por que a entendemos aqui, como algo do campo subjetivo, implícito, particular e pessoal. Nas palavras de Bondía (2002), “a experiência é o que nos passa, o que nos acontece, o que nos toca. Não o que se passa, não o que acontece, ou o que toca” (p. 21).

E é por ser algo que “nos acontece”, é que a experiência não pode ser confundida com trabalho. O trabalho é uma atividade que deriva da pretensão de conformar tanto o mundo “natural” quanto o mundo “social” e “humano”. Neste sentido o sujeito moderno é motivado a crer que pode fazer tudo o que propõe. Para Bondía, é por isso, “porque sempre estamos querendo o que não é, porque estamos sempre em atividade, porque estamos sempre mobilizados, não podemos parar. E, por não podermos parar, nada nos acontece” (p. 24).

Essa situação de incerteza vigente no contexto social tem provocado uma crise na identidade profissional. Essa identidade anteriormente, segundo Dubar (2001), era resultado apenas de um processo coletivo onde as relações que estavam mais presentes eram sindicato e patronato e as negociações estabelecidas por esse grupo era validada pelo Estado. O profissional anteriormente saía da sua formação inicial com uma identidade profissional reconhecida e que normalmente o acompanhava desde o início da sua carreira até a sua aposentadoria, vale ressaltar que nesse processo existam as exceções.

Para compreendermos a crise da identidade profissional é importante percebermos a distinção que existe entre identidade profissional e identidade no trabalho. A identidade profissional expressa o modo do indivíduo se situar não apenas no campo profissional, mas também na sua vida social, ela continua a influenciar toda a existência desse sujeito fora do ambiente do trabalho, mesmo diante das incertezas.       

         A crise da identidade profissional é a expressão de uma passagem das relações ‘comunitárias’ a relações ‘societárias’ (DUBAR, 2001, p.152).  Para esse autor é preciso interpretar essa crise á luz do processo de modernização em curso na sociedade atual. Esse processo de modernização é caracterizado por um movimento que substitui o ‘nós’ pelo ‘eu’, gerando formas individualizantes, diferenciadoras e, sobretudo competitivas, o que provoca a necessidade de uma postura “reflexiva”. Assume-se uma postura reflexiva a partir do momento em que, o pertencimento “inabalável” a grupos sociais e categorias profissionais é colocado em dúvida. Neste momento, torna-se necessário refletir, argumentar, propor novas definições e alternativas para si, baseadas nos novos paradigmas. Na modernidade os indivíduos precisam explicar a si mesmo como constroem sua prática, suas experiências, sua influência no contexto em que vive. Essa distância critica (reflexividade) quando ocorre, define a autonomia dos atores tornando-os sujeitos já que os mesmos não podem ser enclausurados no seu papel. 

Em meio a este contexto de redefinições e de repensar alternativas para as recomposições das identidades profissionais, surge à necessidade de abordar outro aspecto, o qual consideramos indissociável de toda essa questão, que é a formação profissional. Embora tenhamos que reconhecer que as tendências descritas acima, refletem, de um modo global, as transformações produzidas no campo da formação é preciso entender os sentidos embutidos nestas transformações.

Por um lado, é importante reconhecer à crescente importância social atribuída a educação permanente, à “reciclagem” e à “reconversão” profissional. Por outro lado, nem sempre esta interferência educacional produziu efeitos transformantes nas práticas e nos sistemas de formação. Segundo Correia (2003):

Ao nível do sistema educativo são, com efeito, preocupantes os sintomas de subordinação da lógica da escola pública à lógica da gestão privada e à lógica do mercado, bem como a tendência para que a relação que a escola estabelece com as comunidades locais seja uma relação de clientes com os pais que melhor dominam a “linguagem escolar”, isto é uma relação em que os clientes privilegiados são também os protagonistas e os interpretes privilegiados (CORREIA, 2003, p.24).

Acrescenta-se a isto o aparecimento de tendências para subordinar o campo da formação aos interesses imediatistas do mundo empresarial, com valorização das especializações e outros métodos que melhor asseguram uma formação para obediência deste mundo. O fato é que a forma com que é organizada esta formação já, não garante a entrada no mundo produtivo para os mais jovens, ou a reintrodução daqueles que foram excluídos, não lhes são mais assegurados, por intermédio da formação, um emprego estável, e sim tende a ser banalizada a instabilidade e a flexibilização.

Mesmo sabendo que tanto a formação, reflexividade, experiência, linguagem, e outros conceitos discutidos até aqui, fazem parte de uma amalgama que nos ajuda a entender o(s) processo(s) de formação (ões) identidade(s), gostaríamos  de acrescentar a essa discussão a importância da cultura nestes processos, o que faremos a seguir.

 

 

 

 

A cultura como elemento definidor na construção da identidade profissional

 

 

O conceito de cultura foi fragmentado por numerosas reformulações ao longo do tempo. Inicialmente o termo germânico Kultur era utilizado para simbolizar todos os aspectos espirituais de uma comunidade, em quanto à palavra francesa civilization referia-se principalmente às realizações materiais de um povo. Ambos os termos foram sintetizados por Edward Taylor em 1871 no vocábulo inglês Culture, que em seu sentido amplo, é o conjunto de aspectos tais como conhecimentos, crenças, arte, moral, leis, costumes ou qualquer outra capacidade ou hábitos adquiridos pelo homem como membro de uma sociedade. Uma das tarefas da antropologia moderna tem sido reconstruir o conceito de cultura, já tão fragmentado. Dentre as abordagens mais modernas que tentam conceituar a cultura, nos interessa mais de perto a que considerar a cultura como sistemas simbólicos. Segundo Laraia (2009), esta posição foi desenvolvida nos Estados Unidos principalmente por dois antropólogos: o já conhecido Clifford Geertz e David Schineider. (LARAIA, 2009, pp.61-62)

Embora contenha muitos pontos semelhantes David Schineider tem uma abordagem diferente à de Geertz. Deteremos-nos aqui a trabalhar com a abordagem de Geertz, já que acreditamos ser ela, a que mais se aproxima ou mais se relaciona com a noção de identidade profissional.

Para Geertz (1978):

 A cultura é melhor vista não como um complexo de padrões concretos de comportamentos – costumes, usos, tradições, feixes de hábitos – como tem sido o caso até agora, mas como um conjunto de mecanismo de controle, planos, receitas, regras, instruções (o que os engenheiros da computação chamam de “programas”) para governar o comportamento (GEERTZ, 1978, p. 32).

     

O autor acrescenta ainda que “um dos mais significativos fatos sobre nós pode ser finalmente a constatação de que todos nascemos com um equipamento para viver mil vidas, mas terminamos no fim vivendo uma só!” Nesse sentido, ao nascermos estamos aptos a sermos socializados em qualquer cultura existente. Essa gama de possibilidades, entretanto, será limitada pelo contexto real e específico onde de fato ela crescer.

Partindo dessa idéia macro sobre o conceito de cultura é que poderemos nos direcionar a noção “micro” de cultura profissional. Segundo Caria (2009) cultura profissional é “uma construção social que conjuga práticas sociais com identidades coletivas e estas com a reflexividade sobre o uso do conhecimento” (p.7).

A cultura profissional é, em primeiro lugar, uma prática social ou uma construção social, na medida em que compreende uma ação e uma cognição de modo que seja possível desenvolver processos e rotinas de trabalho de forma autônoma e de improvisar de um modo subjetivo (tácito), para saber lidar com as pessoas do local de trabalho, e com os dispositivos envolvidos na ação. Em segundo lugar, é uma identidade coletiva capaz de interpretar funções sociais e técnicas em um determinado campo social, definindo fronteiras de exclusão e inclusão, formalizando linguagens inerentes ao campo específico e reproduzindo relações de poder. E em terceiro a cultura profissional é uma reflexividade sobre o conhecimento em uso, pois recontextualiza o conhecimento formal (explícito) na ação, além de possibilitar uma autonomia para negociar tarefas e problemas que são da competência exclusiva (compartilhada) de uma dada profissão.

Ao estabelecer-mos um paralelo com o conceito de cultura de Geertz e o conceito de cultura profissional de Caria, podemos fazer algumas inferências acerca de suas influências na construção de identidades profissionais. Partimos da ideia de que todo ambiente de trabalho, seja uma empresa ou uma indústria contemporânea é constituída de um conjunto de mecanismos, de controles, regras e instruções, que é diferente ou não  para cada instituição ocupacional.

O que teria mais ou menos diferenciado a cultura organizacional de cada instituição é justamente a forma com que a cultura profissional é expressa. Seja a construção social, a identidade coletiva, a reflexividade e grau de autonomia (maior ou menor a depender da cultura organizacional) traduzem-se na peculiaridade de cada profissão. Por conseqüência da instabilidade e precarização do trabalho/emprego e, portanto da rotatividade profissional, o mesmo passa por várias instituições as quais possuem culturas diferentes. Acreditamos que mesmo trazendo consigo uma cultura profissional “base”, ao entrar em contato com outra(s) cultura(s) profissional (is) sua identidade profissional deixa de ser pura e única.

Sobre isso, Caria (2009) argumenta que:

[...] uma cultura profissional constitui-se como uma dinâmica de interação social que se desenvolve de uma prática que reproduz uma identidade que no diálogo multicultural se problematiza para saber lidar com a complexidade, abrindo a profissão ao “outro” (CARIA, 2009, p.9).

  A interação que se estabelece nesse contexto define também a autonomia dos sujeitos envolvidos os ajudando a enfrentarem as zonas indeterminadas da prática profissional caracterizada pelas incertezas, conflitos de valores e que escapam aos cânones da racionalidade técnica (SHÖN, 2003), estabelecidos pelo conhecimento formal este que não dá conta de formar os profissionais para enfrentarem os imprevistos em situação de trabalho.

  Sendo assim, compartilhamos das ideias de Caria (2008) quando o mesmo afirma que:

“[...] Deste modo, a cultura profissional pode ser uma reflexividade local de resistência e oposição aos processos de racionalização instrumental e, portanto, periférica ao poder central em campos e organizações se apenas procurar a actualização das identidades estatutárias herdadas nos espaços sociais de autonomia profissional. Pode ser também uma reflexividade (local ou em rede, presencial ou virtual) de partilha de identidades narrativas convergentes nos espaços sociais de poder profissional estatutário se tiver em vista promover estratégias que permitam potenciar a autonomia profissional” (CARIA, 2008, p.769).  

Corroboramos com as ideias de Caria e acrescentamos que é neste processo, no interior dessas construções de atitudes reflexivas e da conquista de uma relativa autonomia dentro de uma dada cultura profissional, é onde são desenvolvidos os conhecimentos e os saberes. Desta forma, faz-se necessário discutir, também, o que viria a ser estes saberes e qual sua relação ou qual a sua influência na construção das identidades profissionais, o que pretendemos fazer a seguir.

 

Saberes Profissionais: resultado das múltiplas culturas e identidades profissionais

O termo saber vem do latim sapere, e pode significar conhecer; ter informação ou conhecimento de; compreender, entre outras tantas definições possíveis. A discussão sobre o saber, assim como a discussão sobre a identidade, não é nova e já era enfatizada por Sócrates quando disse: “conhece-te a ti mesmo”. O que desejamos aqui é tentar entender de que forma o saber ou saberes se relacionam, com as várias identidades dentro do contexto de diferentes culturas profissionais, no entanto, primeiramente, faz-se necessário dizer o que para nós significam os saberes.

Entendemos que os saberes são construções que se estabelecem não apenas no campo da objetividade  mas também  no da subjetividade (o que nos interessa mais de perto), uma vez que é a partir das suas experiências, das suas formas de estar e de atuar no e sobre o mundo é que o sujeito constrói e reconstrói saberes. Não queremos aqui estabelecer uma sobreposição do campo subjetivo ao objetivo, mas sim afirmar que existe um processo cíclico e complementar na construção dos saberes.  

      Para darmos continuidade às nossas reflexões, achamos pertinente a priori lançarmos um olhar sobre algumas diferenças entre conhecimentos e saberes.  Achamos relevante apresentar  essas distinções  sob a perspectiva da psicologia, onde acredita-se que a aprendizagem se estabelece primeiramente no campo cognitivo, estimulando os sentidos e significados, pelo sujeito que aprende e apreende.

 Durante a aprendizagem existe uma interação entre o sujeito e o objeto, sendo que consideramos importante nessa interação ressaltar o que vem do objeto e do sujeito.

O primeiro fornece os “estados”, o segundo as “transformações”. Todo o conhecimento apresenta-se, por conseguinte, como uma dialética entre os primeiros  e os segundos, um estado sendo produto de uma transformação e toda transformação produzindo estado. Dos estados triam-se os saberes, das transformações, os conhecimentos. Não há uns sem os outros e o conhecimento proporciona assim, a explicação dos estados. São, pois as transformações que produzem o conhecimento (DOLLE, 2008, p.8).

Numa perspectiva filosófica, a construção do conhecimento, para Polanyi, (apud FARTES 2000, p. 58) se dá a partir do envolvimento e compromisso pessoal que os sujeitos estabelecem com os objetos, o que ele denomina de “residir em”. Significa que saber algo é estar em constante processo de aprendizagem, e que esse processo não se esgota somente a partir dos conhecimentos técnicos científicos, mas também na formação de conceitos espontâneos ou cotidianos que ocorrem nas interações sociais.

Entretanto, o conhecimento segundo esse mesmo autor pode ser criado e representado de duas maneiras: a partir do conhecimento explícito, ou seja, o conhecimento expresso através da linguagem formal e sistemática, facilmente compartilhado e comunicado a partir de fórmulas cientifica ou princípios universais, e o conhecimento tácito, aquele conhecimento difícil de ser formulado e comunicado, em um determinado contexto.

Nesse processo de aprendizagem o sujeito vai dando sentido aquilo que aprende, mas para que a situação de aprendizagem tenha sentido é preciso que desperte prazer, desejo ao que se aprende, para resultar em uma compreensão e apreensão não só de saberes como também de si mesmo, uma vez que o sujeito é único, singular e indissociavelmente humano, (CHARLOT, 2005).

Uma vez que o sujeito transforma seus saberes, ele produz, reconstrói e os recontextualiza. Os conhecimentos ou informações são transmitidos de determinada maneira de uma instância para outra, entretanto, ao ser posto em prática nessa instância receptora, passa por modificações. Essa ação esta ligada ao fato de que em uma situação na prática o sujeito coloca seus conhecimentos de acordo com a realidade objetiva, com a necessidade real que lhe é exigida, ou seja, essas modificações são definidas por (BERNSTEIN, 1996) como recontextualização do conhecimento.

Essa construção/transformação de saberes resultam das identidades e das culturas profissionais, estas últimas como já dito antes, se caracterizam pela reflexividade, partilha de identidades e, sobretudo construção da autonomia. Tendo em vista todos os elementos que envolvem a construção do saber ou dos saberes, de um modo mais amplo, é que direcionamos nossos olhares para caracterização dos saberes profissionais. Para isso utilizaremos, das idéias de Tardif, o qual afirma que compreender a construção dos saberes profissionais:

[...] propõe um olhar a partir da epistemologia da prática profissional, é revelar esses saberes, compreender como são integrados concretamente nas tarefas dos profissionais e como estes o incorporam, produzem, utilizam, aplicam e transformam em função dos limites e dos recursos inerentes às suas atividades e de trabalho (TARDIF, 2000, p.11).   

Entende-se também, que os saberes profissionais são adquiridos através do tempo e que provém das histórias de vida do indivíduo, de sua vida profissional, onde fazem parte de dimensões identitárias e de socialização profissional. Por isso, nesse processo de socialização, ainda é comum o aprender fazendo,  o aprender com o outro, tão frequentes nos primeiros anos de prática profissional, e que se tornam decisivos na medida em que torna-se essencial a “aquisição do sentimento de competência e no estabelecimento das rotinas de trabalho, ou seja, na estruturação da prática profissional” (TARDIF, 2000, p.14).

Assim como as identidades e as culturas, os saberes profissionais, como produto destes, também não se constituem em um repertório unificado. Estes saberes são variados e heterogêneos, já que cada situação (imprevista ou não) exige do profissional táticas diferenciadas na resolução de problemas. Nas situações de trabalho o profissional precisa estar atento às condições que lhe serão exigidas tomadas de decisões, essas decisões estão relacionadas não apenas com os saberes específicos, adquiridos na escola ou na universidade, mas sim, também, com os saberes construídos de forma espontânea, não sistematizados e  acumulados durante sua trajetória de vida.

Nos processos e situações supracitadas, o sujeito/indivíduo o qual nos referimos é considerado um  sujeito contemporâneo (das identidades, da experiência, da formação, das culturas e agora dos saberes e do conhecimento), se constrói na e pela apropriação dos símbolos sociais, culturais e históricos da humanidade, além de sua mediação com o outro. Este sujeito/indivíduo não se define somente por sua posição na sociedade ou por uma determinação genética, ele tem uma história, passa por experiências e reflete sobre sua história e suas experiências, de modo a dar sentido a elas mesmo que de modo inconsciente. Segundo Charlot esse sujeito é indissocialvelmente social e singular, e é como tal que se deve estudar sua relação com o saber (CHARLOT, 2005, p.40).

Paradoxalmente, esse sujeito também age no mundo e sobre o mundo perseguindo seus objetivos e realizando suas ações. Existem os anseios pessoais, individuais ( e por isso há subjetividade), no entanto, esse anseios refletem e são refletidos pelo convívio social, global (portanto há também objetividade). Mesmo que haja um fato em comum, que é atingir os objetivos traçados, as ações nunca serão realizadas da mesma forma e nunca serão “fazer a mesma coisa”.

 Todo saber é construído a partir da relação com os outros, consigo mesmo e com o mundo. Nesta perspectiva o sujeito pode ser entendido como ser biopsicossocial, que responde aos seus estímulos e as convenções sociais. Por isso, acreditamos que a relação do sujeito/indivíduo com o saber, é fruto dessa grande quantidade de formas e maneiras, ora objetivas ora subjetivas (ou ambas ao mesmo tempo), que também são resultantes das diferentes linguagens, das diferentes experiências e dos processos de transformações identitárias e culturais em âmbito profissional ou fora dele. São as experiências (aquilo que nos toca, que nos passa, que nos acontece) dentro destes processos, que permitem nos formar e nos transformar, construindo novos saberes e novas identidades em culturas diferentes.

 

Considerações

Ao longo deste texto, destacamos a estrutura que atualmente dirige o mundo do trabalho, ressaltando a necessidade de refletir sobre a complexidade que está implícita e explícita nos processos identitários de uma classe trabalhadora cada vez mais inconsistente e ilimitada. Em meio a esta complexidade somos estimulados a buscar respostas para perguntas do tipo: como se constitui as identidades profissionais em meio a essas incertezas do mundo contemporâneo? Ou então: como fica a identidade dentro do atual contexto de desemprego e precariedade?

Procuramos apresentar e discutir diferentes conceitos de identidade dentro de abordagens sociais e psicanalíticas, bem como os conceitos de identidade profissional e a crise desta identidade no contexto atual. Chamamos a atenção também, para o papel da formação no modelo econômico vigente e seu grande reconhecimento social, entendendo que ela (a formação) deve ser vista de modo mais amplo, considerando não apenas os aspectos formais, escolarizados ou acadêmicos mas sim valorizando a “bagagem” de vida que todo sujeito traz consigo e atentando também para o fato de não utilizar a formação somente para os fins do capital, de modo mercadológico. Deve-se pensá-la como forma de emancipação, de conquista da autonomia, importante para a cultura profissional, para construção das identidades profissionais e dos saberes.

Reafirmamos a compreensão de  que as identidades, sejam elas individuais ou coletivas continuam a se constituir nas sociedades contemporâneas, mesmo que essas sociedades sejam marcadas por efemeridade, descontinuidade e fluidez. Continuamos procurando meios  de nos reordenar, de definir novos direcionamos para nossas vidas pessoais e profissionais, ocasionando assim, um “possível reestabelecimento” da continuidade. Acreditamos ainda, que os saberes profissionais construídos objetiva e subjetivamente sejam também fruto das construções identitárias e culturais desenvolvidas ao longo da vida profissional e fora dela.

É nesse contexto, que requer dos sujeitos que se identifiquem, a cada momento, com algo novo, com uma nova cultura, já que as corriqueiras situações de trabalho, onde o trabalhador muitas vezes  deixa de pertencer a um grupo específico de profissionais com rotinas e normas próprias os “obrigam” a serem “flexíveis”, é onde o sujeito continua procurando organizar suas experiências, utilizando os saberes construídos  em sua trajetória, reavaliando-os, e os recontextualizando de acordo com seus anseios e as necessidades de se manter útil e “competente” para as exigências do mercado de trabalho. Dito de outra forma, essa revisão de valores, conhecimentos, saberes, identidades e experiências, servem para que possamos dar sentido para nossa própria vida e para o mundo que nos cerca. É por essas razões que acreditamos em identidades como termo plural e não singular já que a contemporaneidade é marcada por instabilidades e pluralidade.

 

REFERÊNCIAS:

BONDÍA, Jorge Larrosa. Notas sobre experiência e o Saber de Experiência. Revista Brasileira de Educação, São Paulo p. 20-28, janeiro de 2002.

BURNHAM, Teresinha Fróes. Complexidade, Multirreferencialidade, Subjetividade: três referências polêmicas para a compreensão do currículo escolar. São Paulo: EDUFSCar, 1998.

CARIA, Telmo H. Notas para uma perpctivação do trabalho técnico –intelectual como cultura profissional. In: CARIA, Telmo H; GONÇALVES, Carlos M ; MARQUES, Ana Paula (orgs.). História, trabalho e conhecimento nas profissões. Porto: Livpsic, 2009. 

------------------------. O uso do conceito de cultura na investigação sobre profissões. Lisboa: Análise social, vol. XLIII(4º), 2008, pp.749-773.

CHARLOT, Bernard. Relação com o saber, formação dos professores e globalização: questões para a educação hoje. Porto Alegre: Artmed, 2005.

CORREIA, José Alberto. Formação e trabalho: Contributos para uma transformação dos modos de os pensar na sua articulação. In: ABREU, Wilson; et al. Formação e situações de trabalho. Porto: Porto Editora, 2003, pp.15-41.

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