A partir das hipóteses de Foucault, podemos dizer que a forma pela qual a instituição escolar se implantou no século XX se articulou às normas disciplinares, com uma concepção de valor do que seria ser “bem educado”, e começou a produzir desigualdades, diferenças e distinções.

Desde seus inícios, a instituição escolar exerceu uma ação distintiva, cuja função foi separar os sujeitos, tornando aqueles que nela entravam distintos dos outros, e dos que a ela tinham acesso daqueles que não os tinha. Ela dividiu também, internamente, os que lá estavam, através de múltiplos mecanismos de classificação, ordenamento e hierarquização.

Alguns desses mecanismos de poder presentes no âmbito educacional, que abordarei, resumidamente, a seguir.

I-             DISTRIBUIÇÃO DO INDIVÍDUO NO ESPAÇO

               Uma das técnicas utilizadas no âmbito escolar para produzir o sujeito normalizado é ‘a distribuição do indivíduo no espaço, onde cada indivíduo ocupa um lugar, e em cada lugar, há um indivíduo. O espaço é utilizado de modo flexível e detalhado, distribuindo e inserindo os indivíduos em locais determinados, articulados e classificatórios, como a posição na fila nas escolas, a cadeira escolar do aluno, etc.; Segundo Foucault, uma das grandes transformações técnicas do ensino elementar foi a organização de um espaço serial, pois, “ao determinar os lugares individuais, tornou possível o controle de cada um e o trabalho simultâneo de todos. Organizou-se uma nova economia do tempo e da aprendizagem, fez funcionar o espaço escolar como uma máquina de ensinar, mas também de vigiar, de hierarquizar, de recompensar” ‘.

      “As disciplinas, organizando as “celas”, os “lugares” e as “fileiras” criam espaços complexos: ao mesmo tempo arquiteturais funcionais e hierárquicos”. [1] São espaços que realizam a fixação e permitem a circulação do indivíduo; marcam lugares e indicam valores; garantem a obediência, mas também uma melhor economia do tempo e dos gestos. ‘O espaço disciplinar estabelece as presenças e as ausências, sabe onde e como encontrar os indivíduos, instaura comunicações úteis e interrompe as outras, pode a cada instante vigiar o comportamento de cada um, apreciá-lo, sancioná-lo, analisar as qualidades e os méritos. Portanto, a disciplina a organiza como um espaço que se torna um procedimento para conhecer, dominar e utilizar’.[2]

II-            ORGANIZAÇÃO DO TEMPO

  A segunda técnica presente na escola é a organização do tempo, que tem como objetivo constituir um tempo integralmente útil e, para obter esse controle, a disciplina utiliza a seguinte tática: ‘relaciona a atividade ao tempo e ao corpo, e este ao objeto que o indivíduo manipula. Decompõe-se o ato em seus elementos, define-se a posição do corpo, dos membros, das articulações, enfim, ”o tempo penetra o corpo e com ele todos os controles minuciosos do poder”. [3]  Além desse mecanismo, é preciso que cada um dos gestos que compõem o ato esteja na melhor relação possível com a atitude do corpo e com o objeto que esse manipula; assim, favorece o controle e aumenta a eficiência; e a cada manipulação realizada sobre o objeto corresponde um gesto capaz de efetua-lá, e o que rege o controle das atividades é a utilização exaustiva do tempo e do corpo’. [4]

III-           ORGANIZAÇÃO DAS CAPACIDADES

   E aparece também, a técnica da organização das capacidades, esta função busca ‘relacionar de modo proveitoso as relações do tempo, dos corpos e das forças, tendo em vista uma acumulação da duração dos próprios indivíduos em seus corpos e capacidades, de forma a torná-lo passível de utilização e controle’. [5]  Para realizar essa tarefa, as disciplinas utilizam quatro processos:

 primeiro: elas dividem o tempo em segmentos, que são sucessivos e paralelos;

segundo, combinam as atividades numa complexidade crescente, colocando cada segmento em série, com vista à realização do exercício previsto;

terceiro, promove a fixação do término de cada segmento através de uma avaliação, cujo objetivo é indicar o nível que cada indivíduo alcançou;

por último, acrescentar a essas séries outras séries para obter uma rede de realizações que são múltiplas, individuais e pontuais

‘O caso da escola será, na sociedade moderna, um “aparelho de examinar”[6]. O exame combina as técnicas da hierarquia que vigia e as de sanção que normaliza, cuja função é aplicar uma vigilância que permite qualificar, classificar e punir. Estabelece sobre os indivíduos uma visibilidade através da qual eles são diferenciados e sancionados. È por isso que em todos os dispositivos de disciplina o exame é altamente ritualizado.

‘O exame é uma técnica utilizada nos processos da disciplinarização, onde ele manifesta a sujeição dos que são percebidos como objetos e a objetivação dos que se sujeitam. Com isso, permite uma análise sobre o modo com o qual as instituições disciplinares possibilitam a produção de um saber a partir das relações de poder, visando a individualização e a normalização dos indivíduos. E para realizar esse objetivo o exame apóia-se em três procedimentos:

I – INVERSÃO DA VISIBILIDADE DO PODER

O primeiro, refere-se ‘à inversão da visibilidade no exercício do poder, no qual o poder disciplinar se exerce tornando-se invisível; é um poder que se exerce através da invisibilidade. Entretanto, essa invisibilidade do exercício do poder não significa que ele deixe de atuar, pelo contrário, ao tornar-se invisível o poder determina uma visibilidade maior e detalhada dos que estão submetidos a ele. È o exercício de uma vigilância constante e hierarquizada que garante a sujeição do indivíduo’;[7]

II – ELABORAÇÃO DE UM CAMPO DOCUMENTÁRIO

O exame utiliza como o segundo procedimento ‘a elaboração de “um campo documentário”. Este consiste num arquivo cheio de detalhes e minúcias, cuja origem é a observação e o registro dos comportamentos dos indivíduos sobre os quais o poder disciplinar se exerce. Elabora-se uma quantidade de registros que captam e fixam o indivíduo numa rede de anotações escritas. Essa massa documental de registros, anotações, relatórios, prontuários, classifica, diferencia e identifica os indivíduos, conforme suas características singulares, as suas capacidades e aptidões. ’[8]

III – TRANSFORMAÇÃO DO INDIVÍDUO NUM “CASO”

O terceiro procedimento que decorreu dos procedimentos anteriores, onde o exame transforma cada indivíduo em um “caso”. O indivíduo é, ao mesmo tempo, “um objeto para o conhecimento e uma tomada de poder”. Enquanto um caso, o indivíduo “é o que pode ser mensurado, medido, comparado a outros em sua própria individualidade”. Mas é também aquele que deve ser “treinado ou retreinado, classificado, normalizado, excluído, etc.”. [9]

Devido ao exame, ‘a individualidade torna-se um objeto de descrição e documentação, procedimentos que viabilizam seu controle e dominação segundo um mecanismo ininterrupto de objetivação e sujeição.  A descrição se transforma numa forma de controle e num método de dominação.

Não há aqui pretensão de avaliar positivamente ou negativamente o que ocorre, apenas atentar para a trama de poderes que circulam em todas as instâncias e, em sua capilaridade, abrangem todas as esferas da escola e atingem todos os indivíduos. Aplicando as ferramentas foucaultianas à educação escolar e aos dispositivos pedagógicos, é possível realizar a característica fundamental da atitude crítica proposta por Foucault, que consiste em “tornar difícil os gestos mais fáceis”, ou seja, “a atitude crítica sacode o caráter de evidência das instituições,  visto que ela examina as relações entre o poder e os jogos da verdade sobre as quais as instituições são construídas”. [10] Esta atitude é, portanto, a análise do que “somos”, é a história do presente.



[1] Ibid. P. 126.

[2] Ibid. P.121.

[3] Ibid. P. 127

[4] Ibid. P. 127

[5] Ibid. P. 132-133.

[6] Ibid.P.155.

[7] Ibid.P. 156.

[8] FOUCAULT, M., Vigiar e Punir. P. 157.

[9] Ibid. P.159.

[10] FOUCAULT, M. O que é a Crítica? P.170-171.